terça-feira, 29 de outubro de 2024

Os Bruzundangas - Capítulo VIII: A Constituição

Os Bruzundangas


Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo VIII

A Constituição

     QUANDO se reuniu a Constituinte da República da Bruzundanga, houve no país uma grande esperança. O país tinha, até aí, sido governado por uma lei básica que datava de cerca de um século e todos os jovens julgavam-na avelhentada e já caduca. Os militares do Exército, iniciados nas sete ciências do Pitágoras de Montpellier, — criticavam-na da seguinte forma: “Qual! Esta constituição não presta! Os que a fizeram não sabiam nem aritmética; como podiam decidir em sociologia?”
     Escusado é dizer que isto não era verdade, mas o critério histórico deles e o seu orgulho escolar pediam fosse.
     Os outros doutores também achavam a Constituição monárquica absolutamente tola, porque, desde que ela fora promulgada, havia surgido um certo jurista alemão ou aparecido um novo remédio para erisipelas. A nova devia ser uma perfeição e trazer a felicidade de todos.
     Reuniu-se, pois, a Constituinte com toda a solenidade. Vieram para ela, jovens poetas, ainda tresandando à grossa boêmia; vieram para ela, imponentes tenentes de artilharia, ainda cheirando aos “cadernos” da escola; vieram para ela, velhos possuidores de escravos, cheios de ódio ao antigo regime por haver libertado os que tinham; vieram para ela, bisonhos jornalistas da roça recheados de uma erudição à flor da pele, e também alguns dos seus colegas da capital, eivados do Lamartine, História dos girondinos, e entusiastas dos caudilhos das repúblicas espanholas da América. Era mais ou menos esse o pessoal de que se compunha a nova Constituinte.
     Tinham entrado no ritual da nova República os banquetes pantagruélicos; e, nas vésperas da reunião, houve um de estrondo.
     À sessão inaugural, prestou guarda de honra uma brigada; mas, bem contando, era unicamente um batalhão.
     Quando saíram os constituintes, Z., um deles, perguntava de si para si:

— Que vou propor eu?

     H. excogitava:

 — Devo ser pelo divórcio? Esses padres...

     B. meditava:

— Antes não me metesse nisto. O imperador pode voltar e é o diabo...

     Quase todos, porém, consideravam com toda a convicção, com todo o acendramento, com um recolhimento religioso:

— Qual a Constituição que devemos imitar?

     Em geral, eles esperavam ser escolhidos para a comissão dos vinte e um que tinha de redigir o projeto da futura lei básica, e era justo que tivessem semelhante preocupação absorvente:

— Qual a constituição que devemos imitar?

     Votado o regimento interno da grande assembleia e tomadas todas as outras disposições secundárias, a comissão dos vinte e um membros, encarregada de redigir o projeto, foi escolhida; e, em reunião, houve entre os seus membros caloroso debate a respeito de quem deveria ser o relator ou os relatores.
     Escolheram, afinal, três sumidades: Felício, Gracindo e Pelino, todos eles — ben — qualquer cousa.
     O resto pôs-se a descansar e os três, em sala separada, no dia seguinte, juntaram-se e trataram dos moldes em que devia ser elaborada a nova Magna Carta.
     Pelino foi de parecer que a constituição futura devia ser vazada no cadinho em que fora a do país dos Houyhhnnms.

— É um país de cavalos! exclamou Gracindo.

— Que tem isto? retrucou Pelino. Nós somos bastante parecidos com eles.

— Não, não queremos, objetaram os dous outros.

— Então, como vai ser? perguntou Pelino. Se não querem à moda dos cavalos, não podemos achar outro modelo, pois o país dos camelos não tem constituição.

— Façamos a constituição aos modos da de Lilliput, fez Felício.

— Não me serve! exclamou Pelino. Semelhante gente não pesa, é muito pequena! 

— Então ao jeito da de Brobdingnag, o país dos gigantes.

      Todos acharam justa a proposta e começaram a redigir o projeto de constituição da Bruzundanga republicana, conforme o paradigma da do país dos gigantes.
     Quando Gulliver lá esteve (creio que os senhores se lembram disso), figurou como um verdadeiro brinquedo. Ninguém o levava a sério como homem; era antes um boneco que dormia com as moças e tinha outra: intimidades que, se não foram contadas, podem ser adivinhadas.
     A população da Bruzundanga, tirante um atributo ou outro, não era composta de pessoas diferentes do doutor Gulliver; eram minúsculos bonecos, portanto, que queriam possuir uma constituição de gigantes.
     Felizmente, porém, já na grande comissão, já no plenário, a imitação foi modificada; e, em muitos pontos, a Carta da Bruzundanga veio a afastar-se da de Brobdingnag.

— Houve mesmo disposições originais que merecem ser citadas. Assim, por exemplo, a exigência principal para ser ministro era a de que o candidato não entendesse nada das cousas da pasta que ia gerir.

     Por exemplo, um ministro da Agricultura não devia entender cousa alguma de agronomia. O que se exigia dele é que fosse um bom especulador, um agiota, um judeu, sabendo organizar trusts, monopólios, estancos, etc.
     Os deputados não deviam ter opinião alguma, senão aquelas dos governadores das províncias que os elegiam. As províncias não poderiam escolher livremente os seus governantes; as populações tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias, aparentadas pelo sangue ou por afinidade.
     Havia artigos muito bons, como por exemplo o que determinava a não acumulação de cargos remunerados e aquele que estabelecia a liberdade de profissão; mas, logo, surgiu um deputado prudente que estabeleceu o seguinte artigo nas disposições gerais: “Toda a vez que um artigo desta Constituição ferir os interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica subentendido que ele não tem aplicação no caso”.
     Na constituinte, todos esperavam ficar na “situação”, de modo que o artigo acima foi aprovado unanimemente.
     Com este artigo a Lei Suprema da Bruzundanga tomou uma elasticidade extraordinária. Os presidentes de província, desde que estivessem de acordo com o presidente da república, — na Bruzundanga chama-se mandachuva — faziam o que queriam.
     Se algum recalcitrante, à vista de qualquer violação da Constituição, apelava para a Justiça (lá se chama Chicana), logo a Corte Suprema indagava se feria interesses de parentes de pessoas da situação e decidia conforme o famoso artigo.
     Um certo governador de uma das províncias da Bruzundanga, grande plantador de café, verificando a baixa de preço que o produto ia tendo, de modo a não lhe dar lucros fabulosos, proibiu o plantio de mais um pé que fosse da “preciosa rubiácea”.
     Era uma lei colonial, uma verdadeira disposição da carta régia. Houve então um cidadão que pediu habeas corpus para plantar café. A Suprema Corte, à vista do tal artigo citado, não o concedeu, visto ferir os interesses do presidente da província, que pertencia à “situação”.
     Como todo o mundo não podia pertencer à “situação”, os que ficavam fora dela, vendo os seus direitos postergados, começavam a berrar, a pedir justiça, a falar em princípios, e organizavam, desta ou daquela maneira, masorcas.
     Se eram vitoriosos, formavam a sua “situação” e começavam a fazer o mesmo que os outros.
     Havia apelo para a “Chicana”, mas a Suprema Corte, considerando bem o tal artigo já citado, decidia de acordo com a “situação”. Era tudo a “situação”.
     Todos os partidos que não pertenciam a ela, pregavam a reforma da constituição; mas, logo que a ela aderiam, repeliam a reforma como um sacrilégio.
     A constituição afirmava que ninguém podia ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude de lei. Não havia lei que permitisse as províncias deportar indivíduos de uma para outra, mas o Estado do Kaphet, graças ao tal artigo, deportava quem queria e ainda encomendava aos jornais que o chamassem de província modelo.
     A constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do mandachuva, isto é, o presidente.
     Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
     Nessa parte a constituição foi sempre obedecida.
     A república dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos. Têm passado pela curul presidencial nada menos do que seis mandachuvas, e não houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.
     A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.
     No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e interpretações de modo a não me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que quisesse escrever um livro de seiscentas páginas.

Os Bruzundangas - Capítulo VIII: A Constituição
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

* Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord foi um político e diplomata francês. Ele ocupou em quatro ocasiões diferentes o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros e também foi o primeiro Primeiro-Ministro da França entre julho e setembro de 1815 sob Luís XVIII depois da restauração francesa.

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