sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XVI — Quot libras in duce?

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XVI Quot libras in duce?

     
     O combate de Waterloo é um enigma. É tão obscuro para os que a ganharam, como para os que o perderam. 
     Para Napoleão é um pânico.[1] Blucher não viu nela senão fogo, Wellington nem de leve a compreendeu. Vede os relatórios. Os boletins são confusos, os comentários intrincados. Estes balbuciam, aqueles gaguejam. 
     Jomini divide a batalha de Waterloo em quatro momentos. Mufling corta-a em três peripécias; Charras, conquanto em alguns pontos apreciemos as coisas de outro modo, foi o único que soube abranger, com o olhar penetrante que se lhe nota, os lineamentos característicos daquela catástrofe do génio humano a braços com o acaso divino. Todos os outros historiadores parecem vítimas de certo deslumbramento que os fez andar às apalpadelas. 
     Jornada fulgurante, com efeito, desmoronamento da monarquia militar, que com grande espanto dos reis, arrastou todos os reinos; queda da força, derrota da guerra. 
     Neste acontecimento impregnado de necessidade sobrenatural é nula a parte tomada pelos homens.
     Tirando Waterloo a Wellington e a Blucher, tira-se alguma coisa à Inglaterra e à Alemanha? Não. Nem essa ilustre Inglaterra, nem essa augusta Alemanha entram no problema de Waterloo. Graças ao céu, os povos são grandes fora das lúgubres aventuras da espada. Nem a Alemanha, nem a Inglaterra, nem a França, tiram a sua grandeza de uma bainha. 
     Na época em que Waterloo não era mais do que o tinir de sabres, tinha a Alemanha acima de Blucher, Goethe. E a Inglaterra acima de Wellington, Byron. 
     É próprio do nosso século o vasto aparecimento de ideias, e dessa aurora produzem a Inglaterra e a Alemanha um clarão magnífico. São majestosas porque pensam. A elevação de nível que trazem à civilização é-lhes intrínseca, provêm-lhes de si mesmas, e não de um acidente. O que elas têm de engrandecimento no século XIX, não lhes brotou de Waterloo. Só os povos bárbaros têm súbitas indigestões depois de uma vitória.
     É a vaidade passageira das torrentes engrossadas pela tempestade. 
     Os povos civilizados, sobretudo nos tempos em que estamos, não se elevam nem se rebaixam pela boa ou má fortuna de um capitão. O seu peso específico no género humano resulta de alguma coisa superior a um combate. A sua honra, a sua dignidade, luzes e génio, graças a Deus!, não são algarismos, que esses jogadores, conquistadores e heróis, possam arriscar na lotaria das batalhas. Muitas vezes uma batalha perdida é um progresso adquirido. Menos glória, mais liberdade. Cala-se o tambor, cabe a palavra à razão. É o jogo em que ganha quem perde. Falemos, pois, de Waterloo, friamente por ambos os lados. Demos ao acaso o que é do acaso e a Deus o que é de Deus. O que foi Waterloo? Uma vitória? Não. Uma partida de jogo. Jogo ganho pela Europa e pago pela França.
     Não valia muito a pena de colocar ali um leão. 
     Quanto ao resto, Waterloo é o mais extraordinário encontro que figura na história. Napoleão e Wellington. Não eram dois inimigos eram dois caracteres opostos. 
     Deus, que se apraz com as antíteses, nunca produziu mais frisante contraste, ou confronto mais extraordinário. De um lado a exatidão, a previsão, a geometria, a prudência, a retirada segura, as reservas poupadas, um inalterável sangue-frio, um método imperturbável que se aproveita do terreno, a tática que equilibra os batalhões, a carnificina alinhada a cordão, a guerra dirigida de relógio na mão, coisa alguma entregue voluntariamente ao acaso, a velha coragem clássica e a correção absoluta; do outro a intuição, a predição, a excentricidade militar, o instinto sobrenatural, a flamejante certeza da vista, o não sei quê, que olha como a águia e fere como o raio, uma arte prodígio numa impetuosidade desdenhosa, todos os mistérios de uma alma profunda, a associação com o destino; o rio, a planície, a floresta e a colina empregados, e de certo modo obrigados a obedecer, o déspota tiranizando até o campo de batalha; a fé numa estrela de envolta com a ciência estratégica, engrandecendo-a.
     Wellington era o Bareme da guerra. Napoleão o seu Miguel Ângelo; e desta vez o génio foi vencido pelo cálculo. 
     De ambos os lados se esperava por alguém. Foi o calculista exato o bem sucedido. Napoleão esperava Grouchy, não apareceu. Wellington esperava Blucher, não deixou de vir. 
     Wellington é a guerra clássica tomando a sua desforra. Bonaparte, ainda na sua aurora, encontrando-a na Itália, Abatera-a soberbamente. A velha coruja fugira diante do novel abutre. A táctica velha, fora não somente fulminada, mas escandalizada.
     Quem era esse corso de vinte e seis anos, o que significava o ignorante esplêndido, que tendo tudo contra si, sem víveres, sem munições, sem artilharia, sem calçado, quase sem exército, com um punhado de homens contra enormes massas, precipitando-se sobre a Europa coligada e ganhando absurdamente vitórias impossíveis? Quem era esse recém-chegado à guerra, mostrando a arrogância de um astro? A escola académica militar excomungava-o cedendo-lhe o terreno. Daqui um implacável rancor do velho contra o novo cesarismo, do sabre correto, contra a espada flamejante e do xadrez contra o gênio. 
     No dia 18 de Junho de 1815, esse rancor soltou a sua última expressão, e por baixo de Lodi, de Montebelo, de Montenotte, de Mantua, de Marengo e de Arcole, escreveu Waterloo.
     Triunfo dos medíocres, agradável às maiorias. O destino consentiu esta ironia. 
     Napoleão, na decadência, encontrou diante de si Wurmser moço. 
     Com efeito, para se ter Wurmser, basta embranquecer os cabelos de Wellington. 
     Waterloo é uma batalha de primeira ordem, ganha por um general de segunda. O que é indispensável admirar na batalha de Waterloo, é a Inglaterra; é a firmeza, a resolução e o sangue inglês; o que a Inglaterra ali tem de soberbo, não lhe desagrada, é ela mesma. Não é o seu capitão, é o seu exército. Wellington, extravagantemente ingrato, declara numa carta a lord Bathurst que o seu exército que combateu no dia 18 de Junho de 1815, «era detestável».
     O que pensará disto a sombria acumulação de ossadas no solo de Waterloo? 
     A Inglaterra foi demasiadamente modesta em presença de Wellington. Fazer Wellington tão grande, é tornar a Inglaterra pequena, Wellington não é mais do que um herói como qualquer outro.
     Os escoceses pardos, as guardas a cavalo, os regimentos de Maitland e de Mitchell, a infantaria de Pack e Kempt, a cavalaria de Ponsomby e de Somerset, os Highlanders, tocando a gaita de foles debaixo da metralha, os batalhões de Rylandt, os recrutas completamente novatos, que sabiam apenas o manejo da arma resistindo aos velhos corpos de Essling e de Rivoli, eis o que é grande. 
     Wellington mostrou-se tenaz, foi esse o seu mérito, não lhe contestamos, mas o último dos seus peões ou dos seus cavaleiros mostrou-se tão firme como ele.
     O iron soldado valeu bem o iron duque. Quanto a nós, dirigimos toda a nossa glorificação ao soldado inglês, ao exército inglês e ao povo inglês. 
     Se há troféu pertence à Inglaterra. A coluna de Waterloo seria mais justa, se em vez da figura de um homem, sustentasse entre as nuvens a estátua de um povo. Mas essa grande Inglaterra irritar-se-á, decerto, com o que aqui dizemos. Depois do seu 1688 e do nosso 1789, conserva ainda a sua ilusão feudal. A Inglaterra crê na hereditariedade e na hierarquia.
     Esse povo, que nenhum outro ultrapassa em poder e glória, estima-se como nação, e não como povo. Enquanto povo, subordina-se voluntariamente e toma um lord por uma cabeça. Workman deixa-se açoitar. Todos se recordam da batalha de Inkermann, onde um sargento, que, segundo parece, salvara o exército, não pôde ser mencionado por lord Raglan, porque a hierarquia militar inglesa não permite que se faça menção alguma de qualquer herói, que não seja oficial, ao menos subalterno. 
     O que admirámos acima de tudo, num conflito do gênero de Waterloo, é a prodigiosa habilidade do acaso.
     Chuva noturna, muro de Hougomont, azinhaga de Ohain, Grouchy surdo à artilharia, Napoleão enganado pelo guia, Boulow esclarecido pelo seu; todo este cataclismo é admiravelmente conduzido. 
     Em conclusão, digamo-lo: em Waterloo houve mais carnificina do que batalha. 
     Waterloo é, de todas as batalhas campais, a que apresentou mais limitada frente com tal número de combatentes.
     Napoleão, três quartos de légua, Wellington, meia légua; de cada lado setenta e dois mil combatentes; foi de tão grande espessura que proveio a mortandade. 
     Fez-se este cálculo e estabeleceu-se esta proporção, sobre a perda de homens: Em Austerlitz, franceses, catorze por cento; russos, trinta por cento, austríacos, quarenta e quatro por cento.
     Em Wagram, franceses, treze por cento; austríacos catorze. 
     Na Moskow, franceses, trinta e sete por cento; russos quarenta e quatro por cento. 
     Em Bautzen, franceses, treze por cento; russos e prussianos, catorze por cento. 
     Em Waterloo, franceses, cinquenta e seis por cento; aliados trinta e um por cento. 
     Total em Waterloo, quarenta e um por cento. 
     Cento e quarenta e quatro mil combatentes; sessenta mil mortos. 
     O campo de Waterloo apresenta hoje o sossego peculiar à terra, impassível sustentáculo do homem, e assemelha-se a todas as planícies.
     Contudo, durante a noite, destaca-se dele uma espécie de nevoeiro fantástico, e se algum viajante que por ali passa, olha, escuta e sonha como Virgílio nas funestas planícies de Philippes, é atacado pela alucinação da catástrofe. 
     O medonho 18 de Junho revive; a falsa colina monumento desaparece, esse leão qualquer dissipa-se, o campo da batalha volta à realidade, linhas de infantaria ondulam na planície, galopes furiosos atravessam o horizonte; o sonhador assustado chega a ver o relampejar dos sabres, o cintilar das baionetas, o flamejar das bombas, o monstruoso cruzar do trovão, qual estertor saído de um túmulo, o clamor vago da batalha-fantasma; essas sombras, são os granadeiros; esses clarões são os couraceiros; esse esqueleto é Napoleão, esse outro esqueleto é Wellington; nada disto existe já, e tudo se embate e combate ainda; os barrancos tingem-se de púrpura, as árvores estremecem, a poeira chega até às nuvens, e nas trevas, todas as ferozes elevações, Mont-Saint-Jean, Hougomont, Frischemont, Papelotte e Plencenoit, aparecem coroadas por turbilhões de espectros exterminando-se.

continua na página 269...
______________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________


Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XVI — Quot libras in duce?
_______________________
 
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
____________________

[1] «Uma batalha terminada uma jornada concluída, reparação de medidas mal tomadas a certeza do melhor bom êxito no dia seguinte tudo se perdeu por um momento de terror pânico.» («Napoleon», Dictees de Saint-Helene).

Nenhum comentário:

Postar um comentário