quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XIV — O último quadrado

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XIV O último quadrado
     
     No meio da torrente da derrota, porém, conservaram-se imóveis até à noite, alguns quadrados, como rochedos no meio da água que se despenha. Sobrevinda a noite e a morte também, arrostaram-se com essa dupla sombra e deixaram-se envolver por ela, inabaláveis no seu posto. Ali, cada regimento morria isolado dos outros, porque já não havia laços que os prendessem ao exército, por todas as partes desbaratados. Para travarem esta derradeira ação, uns tinham tomado posição nas eminências de Rossomme, outros na esplanada do Mont-Saint-Jean, onde, abandonados, vencidos, terríveis, agonizavam formidavelmente aqueles quadrados escuros. É que com eles morriam Ulm, Wagram, lena, Friedland.
     Ao escurecer, por volta das nove horas, restava um, no fundo da esplanada do Mont-Saint-Jean, comandado por um oficial obscuro chamado Cambronne, lutando ainda debaixo dos fogos convergentes da artilharia inimiga vitoriosa, debaixo de uma densidade terrível de projéteis naquele vale funesto, junto a essa encosta por onde treparam os couraceiros, e agora inundada pelas massas inglesas. A cada descarga, o quadrado diminuía, mas respondia estreitando de contínuo as suas quatro paredes e replicando à metralha com descargas de espingardaria, cujo troar sombrio e decrescente ao longe os fugitivos açodados paravam por um momento a escutar no meio das trevas.
     Quando, porém, aquela legião não era mais do que um punhado, quando a bandeira flutuava rasgada em tiras, quando as espingardas se lhes tornaram inúteis por não terem balas, quando o montão de cadáveres se tornou maior que o grupo vivo, houve entre os vencedores um como terror sagrado em volta daqueles moribundos sublimes e a artilharia inglesa calou-se para tomar fôlego. Foi uma espécie de pausa.
     Aqueles combatentes tinham em roda de si um como formigueiro de espectros, uma multidão de sombras de homens a cavalo, visto de lado; o perfil escuro das peças, o céu branco divisando-se por entre as rodas e as carretas; a colossal cabeça de morte, que os heróis entrevem sempre nas nuvens de fumo de uma batalha, avançava com os olhos fixos neles. Ouviram carregar as peças por entre a sombra crepuscular, viram em volta das cabeças um círculo luminoso produzido pelo clarão dos morrões acesos, que brilhavam como os olhos de um tigre na obscuridade, aproximaram-se das peças todos os morrões das baterias inglesas, e então um general inglês, segundo uns, Colville, segundo outros, Maitland, gritou comovido, segurando o último minuto suspenso sobre a cabeça daqueles homens:

— Bravos franceses, rendei-vos!

     Cambronne respondeu: 

— Merda!

continua na página 264...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XIV — O último quadrado
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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