quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / X — A planura do Mont-Saint-Jean

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

A planura do Mont-Saint-Jean
     
     Ao mesmo tempo que os couraceiros deram com o barranco, depararam diante de si com a bateria oculta, que os fulminava à queima-roupa com as suas sessenta peças, e à qual o intrépido general Delord fez a saudação militar. Ao fogo da bateria juntava-se o dos quadrados.  
     A artilharia volante inglesa entrara toda a galope para dentro dos quadrados, sem que os couraceiros Ɵvessem um momento de espera. O desastre da azinhaga dizimara-os, mas não lhes fizera perder o ânimo. Eram desses homens que crescem no coração, diminuindo no número. 
     Só a coluna Wathier é que tinha sofrido acidente; a de Delord chegara inteira por Ney a ter feito ladear à esquerda, como se pressentisse a emboscada.
     Os couraceiros arrojaram-se contra os quadrados ingleses, galopando à rédea solta, de sabre traçado nos dentes e pistolas nas mãos. Tal foi o ataque. 
     Ocasiões há nas batalhas em que a alma endurece o homem, a ponto de o mudar de soldado em estátua e de massa de carne em massa de granito. Os batalhões ingleses, assaltados desvairadamente, não se moveram.
     Deu-se então uma coisa horrorosa. 
     As faces dos quadrados ingleses foram atacadas todas ao mesmo tempo e envolvidas num como rodopio frenético. Aquela fria infantaria ficou impassível. A primeira fileira recebia-os de joelho em terra nas pontas das baionetas, a segunda espingardeava-os, e por trás desta os artilheiros carregavam as peças, abria-se a frente do quadrado para deixar passar uma erupção de metralha e tornava a fechar-se. Os couraceiros respondiam esmagando. Os seus grandes cavalos empinavam-se, saltavam as fileiras, pulavam por cima das baionetas e caíam como gigantes no meio daquelas quatro paredes vivas. As balas faziam abertas nos couraceiros, os couraceiros abriam brechas nos quadrados. Desapareciam filas de homens esmigalhadas pelos pés dos cavalos, enterravam-se as baionetas no ventre daqueles centauros. Era uma deformidade de feridas, que talvez nunca se visse em parte nenhuma. Os quadrados dizimados por aquela cavalaria enfurecida estreitavam-se sem demora e continuavam a fazer explosão no meio dos assaltantes, com inesgotável metralha. Era monstruoso o aspecto daquele combate. Os quadrados não eram batalhões, eram crateras; os couraceiros uma tempestade, não uma cavalaria. Era cada quadrado um vulcão atacado por uma nuvem; a lava a combater com o raio.
     O quadrado extremo da direita, formado pelo 75.º regimento de «highlanders», que era o mais exposto, por estar em movimento, ficou quase aniquilado aos primeiros choques. Enquanto em redor tudo era extermínio, o tocador de gaita de fole, sentado num tambor, com o seu pibroch [1] debaixo do braço, tocava as modas das montanhas, descaído em profunda abstração com o olhar melancólico, cheio do reflexo das florestas e dos lagos. Os escoceses morriam a pensar em Ben Lothian, como morriam os gregos no meio das recordações de Argos. Porém, o sabre de um couraceiro fez cessar o canto, cortando o pibroch e o braço que o sustentava e matando o cantor. 
     Os couraceiros, relativamente pouco numerosos, porque haviam minguado com o desastre do barranco, tinham contra si quase todo o exército inglês, porém, multiplicavam-se, porque cada homem valia dez. Todavia, alguns batalhões hanoverianos sucumbiam. Wellington, que o viu, lembrou-se da sua cavalaria, e se Napoleão se lembrasse também naquela ocasião da sua infantaria, teria ganho a batalha. Este esquecimento foi uma falta fatal para ele. 
     De súbito, os couraceiros, que eram os que assaltavam, sentiram-se assaltados; tinham pela retaguarda a cavalaria inglesa. Na frente os quadrados, na retaguarda Somerset, isto é, os mil e quatrocentos dragões-guardas, com a cavalaria ligeira alemã, comandada por Domberg, à direita e à esquerda Trip, com os carabineiros belgas. Os couraceiros, pois, atacados de lado, por diante e por trás, pela infantaria e pela cavalaria, tiveram de fazer frente por todos os lados. Que lhes importava aquele turbilhão? A sua bravura tornou-se inexprimível.
     Além disto, tinham ainda pela retaguarda a bateria troando sempre. Só assim é que aqueles homens podiam ser feridos nas costas. Entre a coleção do museu de Waterloo acha-se uma couraça, com um buraco na omoplata esquerda, feito por uma bala de biscainho. 
     Para franceses assim, só ingleses como aqueles. 
     Aquilo não foi uma refrega, foi uma sombra, uma fúria, um arrebatamento vertiginoso de armas e coragens, um furacão de espadas-relâmpagos. Dentro de um instante, os mil e quatrocentos dragões-guardas ficaram reduzidos a oitocentos e o seu tenente Fuller caiu morto. Acudiu Ney com os lanceiros e os caçadores de Lefebvre-Desnouettes, e a planura do Mont-Saint-Jean foi tomada, retomada e tornada a tomar; os couraceiros deixando a cavalaria para se voltarem contra a infantaria, os quadrados resistindo sempre; era uma barafunda formidável, melhor diremos assim, junta num só grupo, sem que uns se desenvencilhassem dos outros. Nesta refrega, que durou duas horas, durante as quais se deram doze assaltos, mataram quatro cavalos a Ney e metade dos couraceiros ficou na planura.
     Esta luta, porém, abalou profundamente o exército inglês. Para nós é fora de dúvida que, se o desastre da azinhaga não lhe tivesse enfraquecido o primeiro ímpeto, os couraceiros teriam destruído o centro e assim decidido a vitória. Wellington, quase vencido, admirava como herói aquela cavalaria extraordinária que petrificara Clinton, Clinton que vira Talavera e Badajoz, e dizia a meia voz:

— Sublime!

     Sete quadrados aniquilaram os couraceiros de treze que eram; tomaram ou encravaram sessenta peças de artilharia, e arrebataram aos regimentos ingleses seis bandeiras, que três couraceiros e três caçadores foram levar ao imperador, o qual se achava em frente da herdade da Belle Alliance. 
     A situação de Wellington piorara. Aquela estranha batalha era um como encarniçado duelo entre dois feridos, que, ao passo que iam combatendo e resistindo, iam cada qual, pela sua parte, perdendo o sangue que lhe restava. Qual será o que há de cair primeiro? 
     Na planície continuava a luta.
     Até onde chegaram os couraceiros é coisa que ninguém poderá dizer. O que é certo, porém, é que no dia seguinte ao da batalha foi encontrado morto um couraceiro com o seu cavalo no Mont-Saint-Jean, junto ao madeiramento da balança onde são pesadas as carruagens, mesmo no sítio em que se cruzam as quatro estradas de Nivelles, Genappe, La Hulpe e Bruxelas. 
     O cavaleiro tinha atravessado as linhas inglesas. Ainda vive no Mont-Saint-Jean um dos homens que levantaram aquele cadáver. Chama-se Dehaze e tinha então dezoito anos. 
     Estava próxima a crise. Wellington sentia-se enfraquecer.
     Os couraceiros não tinham tirado resultado do seu esforço, por que o centro conservava-se firme. Sendo a planície de todos, não era de ninguém, mas em suma, a maior parte pertencia aos ingleses. Wellington apossara-se da aldeia e da planície dominante; Ney estava senhor do alto e da encosta. Parecia cada qual arraigado àquele solo fúnebre. 
     O enfraquecimento dos ingleses tornava-se, porém, irremediável. Era horrível a hemorragia daquele exército. Kempt, na ala esquerda, reclamava reforço.

— Não o há! — respondia Wellington. — Que se deixe matar!

     E quase ao mesmo tempo, singular paralelo que pinta a prostração dos dois exércitos, Ney pedia infantaria a Napoleão e Napoleão exclamava: 

— Infantaria? Onde a tenho para lhe mandar? Quer que me desfaça nela? 

     O exército inglês, todavia, era o que estava mais enfermo. Os ímpetos furiosos daqueles grandes esquadrões de couraças de ferro e peitos de aço haviam esmagado a infantaria. O lugar de um regimento era denotado apenas por alguns homens em volta de uma bandeira; batalhões havia que eram comandados por um capitão ou tenente; a divisão de Alten, já tão maltratada em Haie-Sainte, estava quase destruída; os intrépidos belgas da brigada de Van-Kluze juncavam os campos de centeio, ao longo da estrada de Nivelles; dos granadeiros holandeses, que em 1811, na Espanha, combatiam contra Wellington, ao nosso lado, e que em 1815 combatiam contra Napoleão, ao lado dos ingleses, quase nada restava. A isto devemos acrescentar a perda dos oficiais, que era considerável. Lord Uxbridge, que no dia seguinte mandou enterrar a perna, tinha o joelho quebrado. Se nesta luta dos couraceiros, da parte dos franceses estavam fora de combate Delord, Lhêritier, Colbert, Dnop, Travers e Blancard, da parte dos ingleses Alten e Barne tinham sido feridos, Delancey, Van Merlen e Ompteda mortos, o estado-maior de Wellington dizimado, de modo que a Inglaterra era a de pior partido naquele sanguinolento equilíbrio. O segundo regimento dos guardas a pé perdera cinco tenentes-coronéis, quatro capitães e três alferes; o primeiro batalhão do 30.º de infantaria perdera vinte e quatro oficiais e mil e duzentos soldados, o 79.º de montanheses tinha vinte e quatro oficiais feridos, dezoito mortos e cento e cinquenta soldados mortos. Os hussardos hanoverianos de Cumberland, isto é, um regimento inteiro, comandado pelo coronel Hacke, que mais tarde tinha de ser julgado e condenado, retiraram à vista do combate e refugiaram-se na floresta de Soignes, semeando a derrota até Bruxelas. As carretas, os cabos de puxar as peças, as bagagens, os carros cheios de feridos, ao ver ganhar terreno aos franceses, que se aproximavam da floresta, fugiam diante deles, e os holandeses, acutilados pela cavalaria francesa, soltavam gritos de terror! 
     Segundo dizem testemunhas que ainda existem, desde Vert-Coucou até Groenendael, numa extensão de perto de duas léguas na direção de Bruxelas, os fugitivos eram tantos, que atulhavam a estrada. Tal foi o pânico que nem o príncipe de Conde em Malines, nem Luís XVIII em Gand lhe escaparam. À exceção da ténue reserva formada por trás da ambulância estabelecida na herdade do Mont-Saint-Jean, e das brigadas de Vivian e Vandeleur, que flanqueavam a ala esquerda, Wellington já não tinha cavalaria. Grande número de baterias jaziam desmontadas. É isto que narra Siborne; Pringle, porém, exagerando o desastre, chega a dizer que o exército anglo-holandês estava reduzido a trinta e quatro mil homens. O duque-de-ferro estava sereno, mas tinha os lábios descorados. O comissário austríaco Vincent e o comissário espanhol Alava, que assistiram à batalha, fazendo parte do estado-maior inglês, julgavam o duque perdido. Às cinco horas, Wellington puxou pelo relógio e ouviram-lhe esta sombria frase:

— Ou Blucher ou a noite! 

     Foi então que para a parte de Frischemont se viu uma linha longínqua de baionetas a brilhar no alto de uma colina.
     É aqui a peripécia deste drama gigante.

continua na página 260...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - X — A planura do Mont-Saint-Jean
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira
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[1] «Pibroch» é o canto guerreiro dos escoceses, mas a palavra é aqui empregada pelo autor, indicando o fole do instrumento.

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