Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 7
as revoluções brasileiras
§ 65 – Os escravocratas submergidos
A primeira campanha abolicionista, nascida de Tavares Bastos e Castro Alves, logo adotada por Luiz Gama, Rui Barbosa, Saldanha Marinho, José Bonifácio, o moço... teria feito a redenção dos cativos, se não fora o passe de 1871, que, desiludindo uns, acalentando outros, desorientando todos os abolicionistas, suspendeu a propaganda por uns cinco ou seis anos; não de todo, que Rui Barbosa, na Bahia, em 1874, pronuncia aquelas duras palavras contra o embuste de 1871. Dali mesmo parte, com o pronunciamento de Jerônimo Sodré, em 1879, o movimento que, logo propagado, e distintamente conduzido, veio até a vitória definitiva;
... do movimento abolicionista de 1879-88... Jerônimo Sodré foi quem pronunciou o fiat... O movimento começou na Câmara, em 1879, e não... na Gazeta da Tarde, de Ferreira de Menezes, que é de 1880... Esse pronunciamento vem resolvido da Bahia, e rebenta na Câmara como uma manga d’água repentinamente... Ao ato de Sodré, continua Nabuco, filia-se cronologicamente a minha atitude dias depois... Mais tarde é que entraram Rebouças, Patrocínio, Gusmão Lobo, Ferreira de Menezes, Joaquim Serra...[1]
[1] Minha Formação, págs. 230-231.
Essa data – 1879, notada, assim, nos fulminantes efeitos que se lhe seguem, só tem um valor: mostrar que, antes, apesar do aparente silêncio, a ideia difundia-se e iluminava os corações. De outro modo, como explicar que o efeito daquela simples referência – Já é tempo de tratarmos, de novo, da emancipação... bastasse para desencadear a campanha que bateu os escravocratas? Fala Sodré em meados de 1879; em 1880, funda-se a primeira Sociedade Brasileira contra a escravidão, cujo presidente é Joaquim Nabuco, com expressiva presidência de honra do antigo abolicionista Saldanha Marinho. No dia seguinte, 10 de julho, sai a Gazeta da Tarde, de Ferreira de Menezes e Joaquim Serra, e que já é um ostensivo clarim de batalha. Pelo mesmo tempo, na Gazeta de Notícias, o jornal das grandes simpatias cariocas, José do Patrocínio solta a sua voz, que será, por toda a campanha, a mais potente e revoltada. Nesse mesmo mês de julho chega ao Rio de Janeiro Carlos Gomes, em plena glória, e o seu prestígio sobre as almas brasileiras é sabiamente aproveitado pelos abolicionistas, que combinam as festas em sua honra a manifestações em favor dos escravos. Os jornais tratam dessas festas sob a rubrica – festas da liberdade. A campanha abolicionista é nimiamente orgânica; já está adotado o processo de formarem-se pecúlios para libertação imediata de cativos apontados à simpatia pública: faz-se coleta no desembarque do grande maestro, e, na sua primeira gala de teatro, Carlos Gomes entrega a carta de liberdade ao escravo Tito... Como característica do movimento, este se divide em: emancipação, como o pretende Nabuco, seguido pela generalidade dos políticos mais liberais; e abolição, imediata e incondicional, como o entende Patrocínio e os mais ativos na propaganda de imprensa. Multiplicam-se as sociedades libertadoras, que, em vista do radicalismo da Gazeta da Tarde (já de Patrocínio), logo se dividem também, em simples emancipadoras e as abolicionistas radicais. Para acentuar bem os propósitos e distribuir razoavelmente os esforços, os abolicionistas, que já se estendem em associações por todo o Brasil, criam a sua confederação abolicionista, cuja alma era Patrocínio, completado pela ação segura e impávida de João Cllap. Nabuco, bem inspirado, desiste do simples emancipacionismo, e junta-se aos abolicionistas.
Em 1883, já tudo isto está assim distribuído, e prossegue a campanha, que degenerará em franca batalha. Tudo que era pensamento vibrante e livre, na nação brasileira, estava, em cheio, com a Abolição – de Luiz Delfino a Raul Pompeia e Bilac, de Ferreira de Araújo a Julio de Castilhos... Não tardou que os exploradores da escravidão percebessem o perigo, para logo tratarem de organizar-se em sociedades de resistência ao movimento conduzido por Patrocínio: o expressivo Centro do Café, aliado ao Centro da Lavoura, presidido pelo característico negociante Ramalho Ortigão, aceitou a incumbência de dispor os grupos dessa resistência... Foi debalde, apesar de que a política imperial estava ostensivamente com a mesma resistência. Fase única, na vida do Brasil: foi quando se viu bem a nação distinta, e tomada de asco dos seus ignóbeis dirigentes. Sucedem-se os ministérios, ironicamente liberais, para resistir ferrenhamente ao esforço pela libertação, e, com isto, mais se avoluma o movimento: Saraiva (1880-81), não cogita da questão servil; Martinho de Campos – (1881), ensoberba-se de ser escravocrata da gema; Paranaguá (1881-1883), já é forçado a transigir com a propaganda, e admite um imposto sobre vendas de escravos, com a proibição do tráfico entre as províncias (medida reclamada, aliás, pelos senhores do Norte); Lafaiete, 1883-84 – reage como pode contra a propaganda, reduzindo o imposto de transmissão de escravos à insignificância de cinco tostões... Enquanto isto, a vaga, alastrada a todo país, já tem lavado completamente o Ceará – 24 de março de 1883, e, logo a seguir, o Amazonas – 24 de maio. Para que fique patente o ânimo da política governamental, Alminio Afonso, funcionário fiscal, porque representa uma sociedade abolicionista cearense em festa pública, é demitido pelo gabinete de então; Teodureto Souto, que se acha como presidente do Amazonas, na data da libertação, e comparece às respectivas festas, é também demitido, pelo ministério Lafaiete; o Coronel Madureira, diretor da Escola Militar, porque recebe ali, solenemente, o célebre jangadeiro Nascimento, uma das energias da libertação do Ceará, é demitido pelo ministério Cotegipe.
Não seriam tais valentias que deteriam a revolução a precipitar-se, e Pedro II, sempre acima da generalidade dos que o serviam, chamou ao governo o conselheiro Dantas, chefe liberal, emancipador de prestígio, um dos poucos sinceros entre os políticos dirigentes. O imperador bem o disse: pretendia fazer um ensaio, isto é, se Dantas conseguisse do parlamento a aceitação do seu projeto – libertação dos sexagenários, esse reforço de emancipação seria um novo passo – a solução adiada, por quantos anos, ainda?... Mas o parlamento do Império, nem essa miséria de liberdade quis conceder... Acreditava-se que Pedro II, como fizera com Paranhos, sustentava de fato o gabinete Dantas, e foi a ocasião, então, de, sem nenhuma consideração, Ferreira Viana desfechar o seu tão repetido quarenta anos de usurpações... de liberdade constitucional suprimida... Cesar Caricato... [2] Todo o seu latim não lhe dava, a Ferreira Viana, para sentir a realidade; o imperador estava sondando as coisas, ao mesmo tempo que dava uma qual satisfação à ideia emancipadora: “Por mim estou pronto... Mas, veem? – o parlamento não quer...” E, com isto, não dando a dissolução a Dantas, ele preferiu descer do conceito em que ainda o tinham os abolicionistas, mesmo os republicanos, [3] e veio nivelar-se aos ideais de Paranaguá, Meira e Vasconcelos, Camargo, Fleury... Foi quando Rui Barbosa se sentiu com razão para clamar: “Eis que de novo o africanismo sobe os degraus do trono, para mais uma vez sentar-se entre as instituições do país...” Depois, à Câmara que votou contra Dantas, ele repetiu a formidável apóstrofe de Wendel, aos escravocratas norte-americanos: “Um capitólio cheio de covardes e traidores, para oprimirem e arruinarem os homens de bem!...” Como já se esperava, Saraiva, chamado para emancipar, reduziu a mínima emancipação anunciada àquela ímpia liberdade aos inválidos de 65 anos: os senhores, que desfrutaram deles toda uma existência de trabalho, achavam-se, depois disto, desobrigados de mantê-los e de enterrá-los. E como ainda era preciso dar alguma coisa de bem explícito aos senhores, a nova lei de Saraiva manda fazer nova matrícula onde se incluísse como escravo alguém que houvesse escapado da primeira, ao mesmo tempo que elevava a um conto de réis a multa contra quem açoitasse escravos... Eles supunham dar, com isso, o grande golpe nas instituições abolicionistas que facilitavam a fuga de cativos. Era assim a coisa; no entanto, um Sr. Cons. Antonio Prado ainda se opôs a esse projeto, e propunha restrições. Fracos de imaginação aqueles homens não descortinavam nem os próprios destinos: Prado e Ferreira Viana não previram que viriam a ser os abolicionistas radicais e absolutos apenas dois anos depois! Cotegipe dizia-se, com mais pitoresco do que precisão – a junta do coice da política nacional; mas em face à Abolição, como se precipitava em 1887-88, a junta do coice afrouxou e, sobretudo, desnorteou. Por um lado recorria ao processo falho, apenas útil aos propagandistas, de mandar despedaçar jornais abolicionistas, e mantinha autoridades estreitamente reacionárias (rapa-coco), sem adotar uma política possível na corrente das ideias que, literalmente, avassalavam a nação.
[2] Andrade Figueira, com todo seu monarquismo, chegou a ameaçar o trono, com uma desforra como a do parlamento inglês contra... o coroado que perdeu coroa e cabeça.
[3] Ao anunciar a liberdade do Ceará, o abolicionista republicano João Cordeiro telegrafou aos companheiros do Rio: “... Cientifique o imperador, cujo abolicionismo respeitamos, que, apesar da perseguição do governo, o Ceará está livre”. Rui assentava a sua figura de retórica num edital pelo Diário Oficial, onde se anunciava a venda, em hasta pública, entre caldeirões furados e vacas magras, de vários africanos que, pela idade, não podiam ter chegado às nossas costas antes de 1831, isto é, eram legitimamente homens livres.
As sociedades abolicionistas disseminadas, bem organizadas, em perfeita solidariedade, repetiam os processos de libertação imediata e de sublevação da opinião. O Rio Grande do Sul também se libertara; cada capital de província, cada cidade importante, era um centro de multiplicada atividade abolicionista, até que, em 1887-88 a nação brasileira se assoberba na preamar da libertação. Os escravos abandonavam desassombradamente as casas dos senhores, cientes de que na primeira esquina, na primeira volta de caminho, encontrariam o refúgio seguro, a sonhada alforria, e que já não se chamava senão – liberdade, como as criaturas não se tratavam de escravos, mas de escravizados. Finalmente, é em São Paulo, cujas fazendas dão o tom a essa política – de El-Rei Café, como pitorescamente a crismou Rui Barbosa, que as próprias fazendas de café se despovoavam de cativos, levantados em busca de Cubatão da profecia do seu poeta. O governo Cotegipe desatina de mais em mais; já está no caminho a célebre questão militar, e os homens da ordem lembram-se de mandar batalhões do Exército – apanhar negros fugidos... Qualquer que seja a ideia que se tenha de governo e ordem, é de convir que, naquele momento, ninguém podia esperar cumprimento de tais determinações: os militares se negaram a prender as criaturas que a nação brasileira queria livres, e foi o fim da escravidão, revolucionariamente, em última instância, por desobediência do Exército, desobediência provocada pelos dirigentes – estonteados, espavoridos... E Cotegipe abandonou o poder.
Veio João Alfredo, com fumaças de emancipador, que, em rapaz, fora do gabinete Paranhos. Havia uma imprensa escravocrata – junta do coice; João Alfredo é recebido aos gritos de: protetor... suspeito, e desnorteia também. No seu gabinete, há Ferreira Viana, Antonio Prado, Rodrigues Silva, escravocratas de papo amarelo, dizia-se. Os príncipes já fazem acrósticos contra Cotegipe, mas, de fato, a regente não sabe que fazer; nem mesmo o governo. A 7 de março, a pingo de chamar João Alfredo, o trono não tem ideia justa da situação. O mesmo João Alfredo fora intransigente adversário do ministério Dantas, assim como apoiara em tudo o gabinete Cotegipe; chamado a substituir o seu chefe Cotegipe, não trazia nenhum pensamento de fazer abolição imediata. Afirma o Sr. Nabuco, em meados de abril (menos de um mês antes), que ninguém sabia a resolução definitivamente assentada... Nem era possível que o soubessem: João Alfredo ainda estava a deslindar-se das palavras que pronunciara um ano antes:
“...todas as razões de Estado, os interesses econômicos, os interesses industriais, aconselham que se faça (a emancipação) com a máxima prudência, com o mínimo de prejuízo das fortunas adquiridas em boa-fé”.
O Sr. Antonio Prado, segunda cabeça do ministério, andava lá por São Paulo, a bestuntar uma forma possível de abolição, respeitando isto mesmo que preocupava João Alfredo, tanto que, no dia 7 de abril publicaram os jornais do Rio o telegrama: “O projeto do conselheiro Prado determina que, ficará positivamente extinta a escravidão no dia 25... do corrente ano”. Quanto à regente, estava nas vascas de um caso de consciência que pôs em jogo ou duelo o prestígio e a habilidade diplomática de Joaquim Nabuco e de Cotegipe: compreendeu aquele que para levar a augusta princesa a decidir-se pelos infelizes escravos seria preciso a intervenção do Santo Padre, condenando a instituição; foi a Roma e arranjou a coisa; mas, desde que teve notícia do caso, pela própria fanfarronice de Nabuco, a junta do coice pôs em ação o seu valimento, e tanto fez demorar a manifestação de S. S. que ela só veio depois do 13 de Maio, cujo comovente pitoresco teve de guardar a irrisão – Ferreira Viana, o de 1885, beijando um negro escravo...
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O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 57 – Romanticamente patriotas - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 60 – Incruentas e falhas... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 63 – O movimento nacional em favor dos escravizados - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim
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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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