quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (01)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



A bolsa

INTRODUÇÃO

     A bolsa (em francês, La Bourse) começa ainda nesse ambiente artístico de Paris onde Balzac nos introduziu em Ao “Chat-qui-pelote”; mas depressa nos faz passar do ateliê do pintor Hipólito Schinner ao apartamento de suas vizinhas, que será o cenário de todo o enredo. Cenário reproduzido, aliás, com todas as minúcias, que até se poderiam achar excessivas se o autor não tomasse o cuidado de o descrever através da visão justamente de um pintor; de olhos acostumados a distinguir os pormenores, este, logo em sua primeira visita, os percebe e avalia melhor do que o faria qualquer outro observador, reconstituindo pelo conjunto deles a essência latente da vida de suas vizinhas, isto é, a pobreza escondida.
     Toda essa introdução é urdida com extrema habilidade; as minúcias da descrição, como o relato das impressões do pintor, preparam uma atmosfera de mistério que chega ao clímax com o episódio da bolsa. Fareja-se um segredo, aliás propositadamente sugerido pelo autor quando diz: “Nenhum pintor de costumes se animou, talvez por pudor, a nos iniciar na intimidade de certas existências parisienses, no segredo dessas moradias de onde saem tão frescas, tão elegantes toilettes, mulheres tão brilhantes que, exteriormente ricas, deixam em tudo os sinais de uma fortuna equívoca”. Essa expectativa, porém, fica insatisfeita; o happy end um pouco forçado de que Balzac se socorre não fornece resposta a todas as perguntas que ele mesmo formulou ou insinuou.
     Poder-se-ia notar também que o enxerto da novela no conjunto de A comédia humana não se opera com a mesma perfeição que na maioria das obras. Só ao chegar ao fim é que o autor parece ter se lembrado de que não explicara satisfatoriamente a ligação que existe entre duas das personagens; daí, nas últimas frases, um esclarecimento precipitado, que antes serve para desorientar o leitor, desviando-lhe a atenção do desfecho da própria novela. O trabalho do alinhavo é, aqui, por demais visível.

Paulo Rónai 



a SOFKA[1]

Não notou, senhorita, que ao colocarem duas figuras em adoração ao lado de uma bela santa, os pintores ou escultores da Idade Média sempre lhes davam uma semelhança filial? Ao ver seu nome entre os que me são caros e sob cuja proteção eu ponho minhas obras, lembre-se desta comovente harmonia, e aqui encontrará menos uma homenagem do que a expressão do afeto fraternal que lhe consagra

seu servidor
Balzac 


     Existe para as almas, facilmente expansivas, uma hora deliciosa que sobrevém no instante indeciso, em que ainda não é noite, mas em que já não é dia; a penumbra crepuscular projeta suas tintas imprecisas, ou seus estranhos reflexos, sobre todos os objetos, favorecendo um devaneio que se combina vagamente com os efeitos da luz e da sombra. O silêncio, que quase sempre reina nesse momento, torna-o mais particularmente caro aos artistas que se concentram, se colocam a alguns passos de suas obras, nas quais não podem mais trabalhar e as julgam, embriagando-se com o assunto cujo sentido íntimo se revela então aos olhos interiores do gênio. Aquele que não permaneceu pensativo, junto a um amigo, durante esse momento de sonhos poéticos, dificilmente compreenderá seus indizíveis benefícios. Graças ao claro-escuro, os ardis materiais, empregados pela arte, a fim de dar a impressão de realidade, desaparecem completamente. Se se trata de um quadro, as personagens que ele representa parecem falar e caminhar; a sombra torna-se sombra, e o dia, dia, a carne adquire vida, os olhos se movem, o sangue circula nas veias, e os estofos cintilam. A imaginação contribui para a realidade de cada detalhe e nada mais vê a não ser a beleza da obra. É a hora em que a ilusão reina despoticamente; talvez se erga com a noite! Não é a ilusão, para o pensamento, uma espécie de noite que povoamos de sonhos? A ilusão abre então as asas, transportando a alma para o mundo da fantasia, mundo fértil em caprichos voluptuosos, no qual o artista esquece o mundo positivo, o dia anterior, o dia seguinte, o futuro, tudo, até mesmo suas misérias, tanto as boas como as más.
     Nessa hora de magia, um jovem pintor, homem de talento, e que na arte nada mais via do que a própria arte, estava trepado numa escada dupla que lhe servia para pintar uma grande e alta tela, quase terminada. Nessa posição, criticando-se, admirando-se, de boa-fé, vogando na corrente de seus pensamentos, ele mergulhava numa dessas meditações que encantam a alma, ampliando-a, acariciando-a e consolando-a. Seu devaneio durou sem dúvida muito tempo. Caiu a noite. Ou fosse porque ele quisesse descer da escada, ou porque tivesse feito um movimento imprudente, por julgar já estar no chão — o acontecimento não lhe permitiu ter uma lembrança exata das causas do seu acidente —, caiu, batendo com a cabeça numa banqueta, perdeu os sentidos e ficou imóvel durante um lapso de tempo, cuja duração ignorou. Uma voz doce tirou-o da espécie de entorpecimento no qual se achava mergulhado. Quando abriu os olhos, uma luz intensa fez com que rapidamente os tornasse a fechar; mas, através do véu que lhe embotava os sentidos, ouviu o murmúrio de duas mulheres e sentiu duas mãos moças, tímidas, entre as quais sua cabeça repousava. Não tardou em voltar a si e pôde distinguir, ao clarão de uma dessas velhas lâmpadas chamadas de dupla corrente de ar, a mais deliciosa cabeça de moça que jamais vira, uma dessas cabeças que passam muitas vezes por um capricho do pincel, mas que, de súbito, materializou para ele as teorias desse belo ideal que cada artista imagina para si mesmo e do qual procede o seu talento. O semblante da desconhecida pertencia, digamos assim, ao tipo fino e delicado da escola de Proudhon e possuía também aquela poesia que Girodet [2] dava às suas figuras fantásticas. A suavidade juvenil das têmporas, a regularidade das sobrancelhas, a pureza das linhas, a virgindade fortemente impressa em todos os traços daquela fisionomia faziam da moça uma criatura perfeita. O talhe era flexível e delgado, as formas eram delicadas. Suas vestes, conquanto simples e asseadas, não revelavam nem fortuna nem miséria. Ao voltar a si, o pintor exprimiu sua admiração com um olhar de surpresa e balbuciou agradecimentos confusos. Sentiu na testa um lenço e reconheceu, não obstante o olor particular dos ateliês, o cheiro forte do éter, que sem dúvida fora usado para o tirar de seu desmaio. Viu, finalmente, uma mulher velha, parecida com as marquesas do Antigo Regime, a qual segurava a lâmpada, dando conselhos à jovem desconhecida.

— Senhor — respondeu a moça, a uma das perguntas feitas pelo pintor que ainda se achava atordoado pela queda —, minha mãe e eu ouvimos o barulho causado pelo seu corpo ao cair no chão e julgamos ter escutado um gemido. O silêncio que se seguiu ao tombo assustou-nos, e subimos apressadamente. Como achássemos a chave na porta, tivemos a feliz ideia de entrar e o vimos estendido no chão, sem movimento. Minha mãe foi buscar o necessário para fazer uma compressa e reanimá-lo. O senhor está ferido na testa, aí, sente?

— Sim, agora sim — disse ele.

— Oh! Isso não será nada — disse a velha senhora. — Por felicidade sua cabeça bateu nesse manequim. 

— Sinto-me muitíssimo melhor — murmurou o pintor —, de nada mais preciso além de um carro para regressar a casa. A porteira irá buscar um. 

     Quis renovar os agradecimentos às duas desconhecidas, mas, a cada frase, a velha senhora o interrompia dizendo: 

— Amanhã, senhor, não se esqueça de pôr umas sanguessugas ou de se fazer sangrar, beba algumas taças de vulnerário e tome cuidado consigo, porque as quedas são perigosas. 

     A moça olhava de soslaio para o pintor e para os quadros do ateliê. Sua atitude e seus olhares revelavam uma decência perfeita; sua curiosidade assemelhava-se à distração, e seus olhos pareciam exprimir esse interesse que as mulheres manifestam, com graciosa espontaneidade, por tudo quanto é desgraça em nós. As duas desconhecidas pareciam esquecer as obras do pintor, diante o sofrimento do artista. Depois que ele as tranquilizou sobre o seu estado, elas saíram examinando-o com uma solicitude igualmente despida de ênfase e de familiaridade, sem lhe fazer perguntas indiscretas nem tentar inspirar-lhe o desejo de conhecê-las. Seus atos tiveram um cunho de fina naturalidade e bom gosto. Suas maneiras nobres e simples causaram, a princípio, pouco efeito no pintor, porém mais tarde, quando relembrou todas as circunstâncias do acontecimento, ficou profundamente impressionado. Ao chegarem ao andar inferior ao do ateliê, a velha senhora exclamou suavemente. 

— Adelaide, deixaste a porta aberta.

— Foi para me socorrer — respondeu o pintor com um sorriso de gratidão.

— Mamãe, a senhora desceu faz pouco — replicou a moça corando.

— Quer que o acompanhemos até lá embaixo? — perguntou a mãe ao pintor. — A escada é escura.

— Agradeço-lhe, minha senhora, já me sinto melhor. 

— Agarre-se ao corrimão.

     As duas mulheres ficaram no patamar para iluminar o caminho ao jovem, enquanto ouviam o ruído de seus passos.

continua pág 391...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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Leia também:
"Chat-Qui-Pelote"
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (57)
A bolsa
Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (01)
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[1] A Sofka da presente dedicatória é uma bela russa da alta sociedade parisiense, Sophie Koslowsky, filha do príncipe Koslowsky, aventureiro bem conhecido; foi ela que introduziu Balzac em várias famílias aristocráticas. Segundo as curiosíssimas memórias manuscritas, devidas a um contemporâneo, já citadas na introdução de Memórias de duas jovens esposas, cujo autor anônimo relata todos os diz que diz que malévolos que corriam sobre Balzac, as duas figuras em adoração de que se trata no prefácio seriam o próprio romancista e a srta. Sofka; a bela santa seria a condessa Guidoboni-Visconti, anteriormente — segundo o anônimo — amante do príncipe Koslowsky, amiga de sua filha Sophie e, no momento da dedicatória, amante de Balzac.
[2] Pierre Proudhon (1758-1823) e Anne-Louis Girodet de Roussy (1767-1824): pintores famosos da época.

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