volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(k) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
Em um domingo em que minha tia tivera a visita simultânea do cura e de Eulalie e em seguida fizera repouso, tínhamos todos subido para lhe dar boa-noite, e minha mãe lhe apresentava condolências pela má sorte que sempre trazia seus visitantes à mesma hora:
— Sei que as coisas não marcharam bem outra vez, Léonie — disse-lhe com
brandura —, pois todas as suas relações vieram ao mesmo tempo.
O que minha tia-avó interrompeu com: “O que é bom nunca é demais…” pois,
desde que sua filha estava doente, julgava-se no dever de animá-la — apresentando-lhe
tudo pelo lado melhor. Mas meu pai tomou a palavra:
— Agora que toda a família está reunida, aproveito para contar-lhes uma coisa, sem
ter de o repetir a cada um. Receio que estejamos estremecidos com Legrandin: ele mal
me cumprimentou esta manhã.
Não fiquei para ouvir a narrativa de meu pai, pois estava em sua companhia após a
missa, ao encontrarmos o sr. Legrandin, e desci à cozinha para ver o que tínhamos para
o jantar, coisa que me distraía todos os dias como as notícias de um jornal e me excitava
como um programa de festas. Quando passava por nós, à saída da missa, ia o sr.
Legrandin ao lado de uma castelã das vizinhanças, a quem conhecíamos de vista, e meu
pai lhe fizera um cumprimento ao mesmo tempo amistoso e reservado, sem se deter; o
sr. Legrandin mal havia respondido, com um ar de espanto, como se não nos
conhecesse, e com essa perspectiva do olhar própria das pessoas que não querem se
mostrar amáveis e que, do fundo subitamente recuado de seus olhos, parecem divisar-nos ao fim de um caminho interminável, e a tamanha distância que se contentam em nos
dirigir um minúsculo aceno de cabeça, para o proporcionar a nossas dimensões de
marionete.
Ora, a dama que Legrandin acompanhava era uma pessoa virtuosa e considerada;
impossível se tratar de alguma aventura e que lhe desagradasse serem vistos juntos, e
meu pai indagava consigo o que poderia ter feito para descontentar a Legrandin. “E
tanto mais sinto que esteja incomodado”, disse meu pai, “porque ele, em meio de toda
essa gente endomingada, com seu casaco simples, sua gravata solta, tem um aspecto tão
pouco afetado, tão verdadeiramente simples, um ar quase ingênuo, que o torna bastante
simpático.” Mas o conselho de família decidiu unanimemente que meu pai estava a
imaginar coisas, ou que Legrandin, naquele instante, devia estar distraído em algum
pensamento. De resto, o receio de meu pai se dissipou na tarde seguinte. Como
voltássemos de um grande passeio, avistamos perto da Ponte Velha a Legrandin, que
permanecia vários dias em Combray por causa das festas. Veio ao nosso encontro com a
mão estendida: “Conhece, senhor ledor”, perguntou-me ele, “este verso de Paul
Desjardins?:
Les bois sont déjà noirs, le ciel est encor bleu.[1]
Que o céu permaneça sempre azul para você, meu jovem amigo; e mesmo na hora, que para mim vem chegando, em que o bosque é já sombrio e a noite cai depressa, você há de consolar-se, como eu o faço, olhando para o lado do céu”. Tirou um cigarro do bolso, e ficou a olhar longamente o horizonte. “Adeus, meus camaradas”, disse-nos de súbito, e foi embora.
Que o céu permaneça sempre azul para você, meu jovem amigo; e mesmo na hora, que para mim vem chegando, em que o bosque é já sombrio e a noite cai depressa, você há de consolar-se, como eu o faço, olhando para o lado do céu”. Tirou um cigarro do bolso, e ficou a olhar longamente o horizonte. “Adeus, meus camaradas”, disse-nos de súbito, e foi embora.
Àquela hora em que eu descia à cozinha para saber o que se preparava, o serviço já tinha
começado, e Françoise, dominando as forças da natureza transformadas em auxiliares
suas, como nessas representações mágicas em que os gigantes servem de cozinheiros,
mexia o carvão, entregava ao vapor umas batatas para estufá-las e fazia o fogo levar ao
devido ponto as maravilhas culinárias, preparadas primeiro em recipientes de cerâmica,
desde as grandes tinas, marmitas, sopeiras e travessas, as terrinas para caça, às formas
para empadas e tigelinhas de creme, passando por uma coleção completa de caçarolas de
todas as dimensões. Parava para olhar em cima da mesa, onde a criada de cozinha
acabava de as debulhar, as ervilhas alinhadas e contadas como bolitas verdes em um
jogo; mas todo o meu encantamento era para os aspargos, empapados de ultramar e
rosa, e cujo talo, delicadamente estriado de azul e malva, se degrada insensivelmente até a
base — ainda suja do solo onde estivera — com irisações que não são da terra. Parecia-me que aqueles matizes celestiais traíam as deliciosas criaturas que se haviam divertido
em metamorfosear-se em legumes e que, através do disfarce de sua carne comestível e
firme, deixavam transparecer naquelas cores frescas de aurora, naqueles esboços de
arco-íris, naquele desmaio de tardes azuis, a mesma preciosa essência que eu ainda
reconhecia quando essas criaturas, durante a noite que se seguia a um jantar em que eu
comera aspargos, divertiam-se em suas farsas poéticas e grosseiras como uma féerie de
Shakespeare, em transformar meu vaso noturno em vaso de perfume.[2]
A pobre Caridade de Giotto, como a chamava Swann, encarregada por Françoise de
os pelar, tinha-os perto de si em uma cesta, e conservava um ar doloroso, como se
sentisse todos os males da terra; e as leves coroas azuis que cingiam os aspargos por
cima de suas túnicas róseas estavam nitidamente desenhadas, estrela por estrela, como se
desenham, no afresco, as flores que engrinaldam a fronte ou pontilham a corbelha da
Virtude de Pádua. Enquanto isso, Françoise rodava no espeto um daqueles frangos,
como só ela os sabia assar, que haviam espalhado em Combray o odor de seus méritos e
que, quando os servia, faziam com que predominasse a doçura em minha concepção
especial de seu caráter, pois o aroma daquela carne que ela sabia tornar tão untuosa e
tenra não eram para mim senão o próprio perfume de uma de suas virtudes.
Mas o dia em que desci à cozinha enquanto meu pai consultava o conselho de
família a respeito do encontro com Legrandin era um daqueles em que a Caridade de
Giotto, muito abalada por seu parto recente, não podia se levantar; e Françoise, privada
de ajudante, estava atrasada no serviço. Quando cheguei embaixo, estava ela na copa que
dava para o galinheiro, matando um frango que — com sua resistência desesperada e
muito natural, mas acompanhada dos gritos de “Excomungado!”, “Excomungado!”
que soltava Françoise, fora de si, enquanto procurava cortar-lhe o pescoço por baixo da
orelha — punha a santa doçura e a unção de nossa criada um pouco menos em evidência
do que haveria de fazê-lo no jantar do dia seguinte, com sua pele bordada a ouro como
uma casula e sua graxa preciosa a gotejar como de um cibório. Morto o animal,
Françoise recolheu o sangue que ia escorrendo sem lhe afogar o rancor, e ainda em um
acesso de cólera, olhando o cadáver de seu inimigo, disse uma última vez:
“Excomungado!”. Subi todo trêmulo; desejaria que despachassem Françoise
imediatamente. Mas quem havia de me preparar almôndegas tão quentinhas, café tão
cheiroso, e até mesmo… frangos como aquele?… E na verdade, esse covarde cálculo,
todos já o haviam feito como eu. Pois tia Léonie sabia — o que eu ainda ignorava —
que Françoise, capaz de dar a vida, sem uma queixa, por sua filha ou seus sobrinhos,
era de singular dureza para com as outras criaturas. Apesar disso, minha tia a
conservava, pois se lhe reconhecia a crueldade, apreciava seus serviços. Pouco a pouco
me apercebi de que a doçura, a compunção, as virtudes de Françoise ocultavam tragédias
de copa, como nos revela a história que os reinados dos Reis e Rainhas representados de
mãos postas nos vitrais das igrejas se assinalaram por incidentes sangrentos. Descobri
que, fora do círculo de seus parentes, tanto mais compaixão lhe provocavam os
humanos com suas desgraças quanto mais afastados viviam dela. As torrentes de
lágrimas que vertia ao ler nos jornais os infortúnios de desconhecidos, logo se
estancavam se podia imaginar de maneira um pouco precisa a pessoa que lhes servira de
objeto. Em uma das noites seguintes ao parto da criada de cozinha, foi esta acometida de
atrozes cólicas; mamãe ouviu-a gemer, ergueu-se e despertou Françoise que, insensível,
declarou que aquilo tudo não passava de comédia e que a outra queria era “fazer de
senhora”. O médico, que receava tais crises, marcara, em um livro de medicina que
possuíamos, a página em que elas vêm descritas, recomendando que a consultassem para
achar a indicação dos primeiros cuidados de emergência. Minha mãe mandou Françoise
buscar o livro, dizendo-lhe que não deixasse cair a marca. Passou uma hora, e nada de
Françoise; mamãe, indignada, julgou que ela tivesse ido deitar-se e me disse que fosse
eu mesmo buscar o livro na biblioteca. Ali encontrei Françoise, que, tendo querido ver
o que estava assinalado, lia, soluçando, a descriação clínica da crise, agora que se tratava
de um enfermo-tipo, para ela desconhecido. A cada sintoma doloroso mencionado pelo
autor, exclamava: “Nossa Senhora! Será possível que o bom Deus queira fazer sofrer
dessa maneira uma infeliz criatura humana? Ai!, a coitadinha!”.
Mas depois que a chamei e ela voltou para junto da Caridade de Giotto, suas
lágrimas logo deixaram de correr; não pôde descobrir nem aquela agradável sensação de
piedade e enternecimento que tão bem conhecia e tantas vezes lhe havia proporcionado a
leitura dos jornais, nem prazer algum do mesmo gênero, no aborrecimento e irritação de
se haver levantado no meio da noite por causa da criada de cozinha, e, à vista dos
mesmos sofrimentos cuja descrição a fizera chorar, não teve mais que resmungos de
mau humor, e até cruéis sarcasmos, dizendo, quando julgou que tínhamos partido e não
mais podíamos ouvi-la: “Era só ela não ter feito o que é preciso para acontecer uma
coisa dessas! Se fez é porque gostou! E agora não venha com manhas! Arre! É preciso
que um homem esteja mesmo muito por baixo para se engraçar com isto. É bem como
diziam na terra de minha pobre mãe:
Quem suspira ante o rabo de um cão,
Só vê nele uma rosa em botão.
Se, quando o neto estava um pouco resfriado, ela partia à noite, mesmo doente, em vez de se deitar, para ver se ele não tinha necessidade de nada, fazendo quatro léguas a pé, antes do amanhecer, para não perder o dia de serviço, por outro lado esse mesmo amor aos seus e o desejo de assegurar a grandeza futura de sua casa traduzia-se, em sua política para com os outros criados, pela norma constante de jamais deixar um só deles implantar-se na casa de minha tia, da qual, com zeloso orgulho, não deixava ninguém se aproximar, preferindo, até quando enferma, levantar-se para lhe dar sua água de Vichy, a permitir que a criada de cozinha entrasse no quarto de sua patroa. E como esse himenóptero observado por Fabre,[3] a vespa fossadora, a qual para que os filhos, após sua morte, disponham de carne fresca, chama a anatomia em auxílio da crueldade e, capturando gorgulhos e aranhas, lhes fere com maravilhosa ciência e habilidade o centro nervoso de que depende o movimento das patas, mas não as outras funções da vida, a fim de que o inseto paralisado junto ao qual deposita os ovos forneça às larvas, quando eclodirem, uma caça dócil, inofensiva, incapaz de fuga ou resistência, mas nada deteriorada, assim Françoise achava, para cumprir seu constante empenho de tornar a casa inabitável a qualquer criado, artimanhas tão sábias e impiedosas que só muitos anos mais tarde viemos a saber que, se naquele verão havíamos comido aspargos quase todos os dias, era porque seu cheiro dava à pobre rapariga encarregada de os pelar crises de asma de tal violência que ela afinal não teve outro remédio senão ir-se embora.
Se, quando o neto estava um pouco resfriado, ela partia à noite, mesmo doente, em vez de se deitar, para ver se ele não tinha necessidade de nada, fazendo quatro léguas a pé, antes do amanhecer, para não perder o dia de serviço, por outro lado esse mesmo amor aos seus e o desejo de assegurar a grandeza futura de sua casa traduzia-se, em sua política para com os outros criados, pela norma constante de jamais deixar um só deles implantar-se na casa de minha tia, da qual, com zeloso orgulho, não deixava ninguém se aproximar, preferindo, até quando enferma, levantar-se para lhe dar sua água de Vichy, a permitir que a criada de cozinha entrasse no quarto de sua patroa. E como esse himenóptero observado por Fabre,[3] a vespa fossadora, a qual para que os filhos, após sua morte, disponham de carne fresca, chama a anatomia em auxílio da crueldade e, capturando gorgulhos e aranhas, lhes fere com maravilhosa ciência e habilidade o centro nervoso de que depende o movimento das patas, mas não as outras funções da vida, a fim de que o inseto paralisado junto ao qual deposita os ovos forneça às larvas, quando eclodirem, uma caça dócil, inofensiva, incapaz de fuga ou resistência, mas nada deteriorada, assim Françoise achava, para cumprir seu constante empenho de tornar a casa inabitável a qualquer criado, artimanhas tão sábias e impiedosas que só muitos anos mais tarde viemos a saber que, se naquele verão havíamos comido aspargos quase todos os dias, era porque seu cheiro dava à pobre rapariga encarregada de os pelar crises de asma de tal violência que ela afinal não teve outro remédio senão ir-se embora.
Mas devíamos mudar definitivamente de opinião acerca de Legrandin.[4] Em um dos
domingos seguintes ao encontro da Ponte Velha, após o qual tivera meu pai de
confessar seu engano, ao terminar a missa, quando, com o sol e o rumor de fora,
entrava na igreja algo de tão pouco sagrado que a sra. Goupil e a sra. Percepied (todas as
pessoas que momentos antes, quando eu chegava um pouco atrasado, tinham
permanecido de olhos baixos, absortas em suas orações e que eu poderia julgar que não
me viam se não houvessem afastado com o pé o banquinho que me estorvava a
passagem) começavam a conversar conosco em voz alta sobre assuntos inteiramente
temporais como se já estivéssemos na praça, vimos à entrada deslumbrante do pórtico, e
dominando o variegado tumulto do mercado, o sr. Legrandin, que o marido daquela
dama com quem ultimamente o encontráramos estava apresentando à esposa de outro
grande proprietário de terras das vizinhanças. O rosto de Legrandin exprimia uma
animação, um zelo extraordinários; fez uma profunda saudação, seguida de uma
inclinação secundária para trás que levou bruscamente seu dorso para além da posição
inicial, e que deveria ter aprendido com o esposo de sua irmã, a sra. de Cambremer.
Esse rápido reerguimento fez refluírem, em uma espécie de onda impetuosa e
musculada, as ancas de Legrandin, que eu não supunha tão carnudas; e não sei por que
essa ondulação de pura matéria, essa vaga toda carnal, sem expressão de espiritualidade e
que uma solicitude cheia de baixeza furiosamente fustigava, despertaram de súbito em
meu espírito a possibilidade de um Legrandin completamente diverso daquele que
conhecíamos. A dama lhe pediu que dissesse qualquer coisa a seu cocheiro, e, enquanto
ele se encaminhava para o carro, ainda lhe persistia no rosto a expressão de devotada e
tímida alegria que lhe dera a recente apresentação. Sorria, enlevado em uma espécie de
sonho; depois voltou apressuradamente para a dama e, como andava mais depressa que
de costume, seus ombros oscilavam ridiculamente de um lado e outro e ele assim
parecia, de tal modo se lhe entregava, indiferente ao resto do mundo, o joguete inerte e
mecânico da felicidade. Saíamos do pórtico e passamos por ele; Legrandin era bastante
educado para não desviar a cabeça, mas fixou o olhar, subitamente carregado de
profunda cisma, em um ponto tão longínquo do horizonte que não nos pôde ver, e não
teve assim de nos cumprimentar. Seu rosto permanecia ingênuo, ao alto do casaco
folgado e simples que parecia desambientado entre aquele odioso luxo que o cercava. E
sua lavallière de pintinhas continuava a flutuar ao vento da praça como a flâmula de seu
altivo isolamento e nobre independência. Quando chegávamos em casa, mamãe viu que
esquecera de encomendar a torta e pediu a meu pai que voltasse comigo para dizer que a
mandassem em seguida. Perto da igreja, cruzamos com Legrandin, que conduzia a
mesma dama a seu carro. Passou por nós sem interromper a conversa com a
companheira e fez-nos, com o rabo do olho, um sinal de certo modo independente das
pálpebras e que, não acionando os músculos do rosto, pôde passar despercebido a sua
interlocutora; mas, procurando compensar com a intensidade do sentimento o campo
um pouco estreito em que circunscrevia sua expressão, fez cintilar, naquele cantinho
azulado que nos reservava, toda a sua benevolência que, ultrapassando a jovialidade,
raiava pela malícia; apurou as finezas da amabilidade até os piscamentos da conivência, às
meias palavras, aos subentendidos, aos mistérios da cumplicidade; e finalmente exalçou
as garantias de amizade até os protestos de ternura, até a declaração de amor, iluminando
então só para nós, de um langor secreto e invisível à castelã, uma pupila enamorada em
um rosto de gelo.
Justamente na véspera havia ele pedido a meus pais que me mandassem em sua casa
aquela noite: “Venha fazer companhia ao seu velho amigo — dissera-me ele. — Como o
buquê que um viajante nos envia de uma terra a que não mais voltaremos, faça-me
respirar, da lonjura da sua adolescência, as flores das primaveras que eu também
atravessei há tantos anos. Venha com a primavera, a barba-de-capuchinho, a concha de
ouro, venha com o sédum de que é feito o buquê predileto da flora balzaquiana,[5] com
a flor da Ressurreição, a margarida e a bola-de-neve dos jardins que começa a perfumar
as alamedas de sua tia quando ainda não se fundiram as derradeiras bolas de neve das
saraivadas da Páscoa. Venha com a gloriosa veste de seda do lírio, digna de
Salomão,[6] e o esmalte policromo dos amores-perfeitos, mas venha, sobretudo, com
a brisa ainda fresca das últimas geadas e que vai entreabrir, para as duas borboletas que
desde esta manhã esperam à porta, a primeira rosa de Jerusalém”.
Indagavam em casa se depois daquilo ainda deveriam enviar-me a jantar com o sr.
Legrandin. Mas minha avó recusou-se a acreditar que ele tivesse sido descortês. “Vocês
mesmos reconhecem que ele se apresenta aqui com toda a simplicidade, sem nada de
mundano.” Declarava ela que em todo caso e se, na pior das hipóteses, ele fora mesmo
descortês, melhor seria fingir que o não percebêramos. Na verdade, até meu pai, que era
quem estava mais irritado com a atitude que tomara Legrandin, conservava talvez uma
última dúvida quanto ao sentido que ela pudesse comportar. Ela era como toda atitude
ou ação em que se revela o caráter profundo e oculto de alguém: não tem ligação com
suas palavras anteriores, não podemos confirmá-la com o testemunho do culpado, que
nada confessará; ficamos adstritos ao testemunho de nossos sentidos e perguntamo-nos,
ante essa lembrança isolada e incoerente, se estes não teriam sido joguete de alguma
ilusão; de sorte que tais atitudes, as únicas que possam ter importância, nos deixam
muitas vezes algumas dúvidas.
continua na página 93...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Em um domingo - k)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] “Os bosques já estão escuros, o céu ainda está azul.” Verso extraído do livro escrito
por um dos professores de Proust na Escola de Ciências Políticas, Paul Desjardins, em
homenagem ao poeta Lamartine, intitulado Celui qu’on oublie. [n. e.]
[2] Proust cita várias vezes em sua correspondência essas “féeries” de Shakespeare. Em particular, Sonhos de uma noite de verão e A tempestade. O parágrafo é um pastiche do texto La mer, de Michelet, que trata de medusas. [n. e.]
[2] Proust cita várias vezes em sua correspondência essas “féeries” de Shakespeare. Em particular, Sonhos de uma noite de verão e A tempestade. O parágrafo é um pastiche do texto La mer, de Michelet, que trata de medusas. [n. e.]
[3] Referência ao livro Souvenirs entomologiques, em que Jean-Henri Fabre descreve os
métodos de neutralização e conservação das vítimas por um himenóptero. [n. e.]
[4] Ler Em busca do tempo perdido é entrar em contato com o que Proust definirá como “psicologia no espaço”: é aprender a dar inúmeras voltas em torno de suas personagens, criando uma série de visões e perspectivas, tendendo à máxima complexidade e, por vezes, à contradição. [n. e.]
[4] Ler Em busca do tempo perdido é entrar em contato com o que Proust definirá como “psicologia no espaço”: é aprender a dar inúmeras voltas em torno de suas personagens, criando uma série de visões e perspectivas, tendendo à máxima complexidade e, por vezes, à contradição. [n. e.]
[5] Alusão aos romances As ilusões perdidas e O lírio do vale, em que a flor de sédum tem
papel simbólico: no primeiro, quando do encontro de Vautrin e Lucien de Rubempré;
no segundo, quando dos encontros de Félix de Vandenesse com a sra. de Mortsauf.
Não deixa de ser sugestiva a associação homoerótica entre Vautrin e Rubempré e o
futuro de Legrandin no livro junto do garoto Théodore, coroinha na igreja de
Combray. [n. e.]
[6] Referência ao Evangelho segundo são Mateus, vi: 28-29. [n. e.]
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