em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(n) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
Uma vez nos campos, não mais os deixávamos durante todo o resto do passeio que se dava para as bandas de Méséglise. Eram perpetuamente percorridos, como por um invisível caminheiro, pelo vento, que era para mim o gênio local de Combray. Todos os anos, no dia de nossa chegada, para sentir que estava mesmo em Combray, eu subia ao encontro do vento que corria pelos valados e me fazia correr atrás dele. Tínhamos sempre o vento ao nosso lado, para as bandas de Méséglise, sobre aquela planície convexa onde durante léguas não encontra nenhum acidente de terreno. Eu sabia que a filha de Swann costumava seguidamente passar alguns dias em Laon, e embora Laon se achasse a várias léguas, como a distância era compensada pela ausência de qualquer obstáculo, quando, por aquelas tardes cálidas, eu via um mesmo sopro, vindo do extremo do horizonte, curvar os trigos mais afastados, propagar-se como uma vaga por sobre toda a imensa extensão, e vir deitar-se tépido e murmurante a meus pés, entre os sanfenos e os trevos, aquela planície que nos era comum a ambos parecia aproximar-nos, unir-nos, e eu pensava que aquele vento havia passado junto dela, que era alguma mensagem dela que ele me sussurrava sem que eu a pudesse compreender, e eu beijava-o na passagem. À esquerda ficava uma aldeia que se chamava Champieu (Campus Pagani, segundo o cura). Para a direita, avistavam-se, além dos trigais, as duas torres cinzeladas e rústicas de Santo André dos Campos, também elas afiladas, escamosas, imbricadas de alvéolos, guilhochadas, amarelecidas e grumosas, como duas espigas.
A intervalos simétricos, no meio da inimitável ornamentação de suas folhas que não
se pode confundir com a folhagem de nenhuma outra árvore frutífera, abriam as
macieiras suas largas pétalas de cetim branco ou suspendiam os tímidos ramos de seus
botões enrubescidos. Para os lados de Méséglise foi que notei pela primeira vez a
sombra redonda que as macieiras projetam na terra ensolarada, e também essas sedas de
ouro impalpável que o poente tece obliquamente sob as folhas, e que eu via meu pai
interromper com a bengala, sem jamais fazê-las desviar.
Às vezes pelo céu da tarde passava a lua branca como uma nuvem, furtiva, sem
brilho, como uma atriz que ainda não está na hora de entrar em cena e que, da plateia, em
toalete comum, olha um momento suas camaradas, apagando-se, indesejosa de chamar a
atenção. Eu gostava de reencontrar sua imagem nos quadros e nos livros, mas essas
obras de arte eram muito diferentes — pelo menos durante os primeiros anos, antes que
Bloch acostumasse meus olhos e meus pensamentos a harmonias mais sutis — daquelas
em que a lua hoje me pareceria mais bela, e que então não me diziam nada. Era, por
exemplo, algum romance de Saintine, uma paisagem de Gleyre, em que ela recorta
nitidamente sobre o céu uma foice de praia, dessas obras ingenuamente incompletas
como eram minhas próprias impressões e que as irmãs de minha avó tanto se
indignavam de ver-me apreciar.[1] Pensavam elas que se deveriam mostrar às crianças
as obras de arte que, quando chegados à maturidade, admiramos definitivamente, e que
as crianças darão prova de bom gosto se as admirarem desde já. Sem dúvida era porque
imaginavam os méritos estéticos como objetos materiais que um olhar atilado não pode
deixar de perceber, sem necessidade de amadurecer lentamente seus equivalentes dentro
do próprio coração.
Era para os lados de Méséglise, em Montjouvain, propriedade situada junto a um
grande pântano e encostada a um talude cheio de vegetação, que morava o sr. Vinteuil.
De maneira que cruzávamos seguidamente na estrada com sua filha, que conduzia um
cabriolé a toda a velocidade. A partir de certo ano, já não a encontrávamos sozinha, mas
com uma amiga de mais idade, que tinha má fama na região e que um dia se instalou
definitivamente em Montjouvain. Diziam: “Esse pobre Vinteuil deve estar mesmo muito
cego de carinho para que não se dê conta do que falam e permitir que a filha leve para
casa uma mulher daquelas, ele que se escandaliza com uma palavra imprópria. Diz ele
que é uma mulher superior, um grande coração e que teria disposições extraordinárias
para a música se as tivesse cultivado. Pode estar certo de que não é de música que ela se
ocupa com a sua filha”. O sr. Vinteuil o dizia; e é com efeito notável como uma pessoa
sempre provoca a admiração por suas qualidades de espírito e coração, por parte da
família de qualquer outra pessoa com quem tenha relações carnais. O amor físico, tão
injustamente difamado, obriga de tal modo toda criatura a manifestar até as mínimas
partículas de bondade e desprendimento que tenha em si, que essas virtudes acabam
resplandecendo aos olhos das pessoas mais próximas. O dr. Percepied, cujo vozeirão e
grossas sobrancelhas lhe permitiam desempenhar quanto quisesse o papel de pérfido, de
que não tinha o físico, sem comprometer em nada sua inabalável e imerecida reputação
de casmurro bondoso, sabia fazer rir até as lágrimas o cura e todo mundo, dizendo em
um tom rude: “Sim! Sim! Parece que a senhorita Vinteuil faz música com a sua amiga.
Acham estranho? Não sei. Mas foi o velho Vinteuil quem ainda ontem me disse isto.
Afinal de contas, essa moça tem todo o direito de gostar de música. Longe de mim
contrariar as vocações artísticas dos jovens. Nem Vinteuil tampouco, ao que parece. E
depois ele também faz música com a amiga da filha. Arre! Fazem uma música naquela
casa! Mas de que estão rindo? O fato é que aquela gente faz música demais. No outro dia
encontrei o velho Vinteuil perto do cemitério. Ele não podia se aguentar nas
pernas”.[2]
Para aqueles que, como nós, viram naquela época o sr. Vinteuil evitar os
conhecidos, desviar-se quando os avistava, envelhecer em poucos meses, absorver-se
em seu desgosto, tornar-se incapaz de qualquer esforço que não tivesse diretamente por
objetivo a felicidade da filha, passar dias inteiros diante do túmulo da mulher, seria
difícil não compreender que ele morria de pesar, e supor que não se desse conta das
murmurações que corriam. Conhecia-as, talvez até lhes desse crédito. Não há talvez uma
pessoa, por maior que seja sua virtude, que a complexidade das circunstâncias não possa
levar um dia a viver na familiaridade do vício que mais formalmente condena — sem
que aliás o reconheça de todo sob o disfarce de fatos particulares de que esse vício se
reveste para entrar em contato com ela e fazê-la sofrer: palavras estranhas, uma atitude
inexplicável, certa noite, de uma criatura a quem de resto tem tantos motivos para querer
bem. Mas para um homem como o sr. Vinteuil, devia entrar mais de sofrimento que
para qualquer outro, na resignação a uma dessas situações que erroneamente se
consideram apanágio exclusivo do mundo da boêmia: sempre se operam cada vez que
um vício busca o lugar e segurança que lhe são necessários, vício este que a própria
natureza desenvolve em uma criança, muitas vezes apenas mesclando as qualidades do
pai e da mãe, como a cor dos olhos. Mas de que o sr. Vinteuil conhecesse talvez a
conduta da filha, não se segue que seu culto por ela houvesse diminuído. Os fatos não
penetram no mundo em que vivem nossas crenças, não as fizeram nascer, não as
destroem; podem infligir-lhes os mais constantes desmentidos sem enfraquecê-las, e
uma avalanche de desgraças ou doenças que se sucedam ininterruptamente em uma
família não a fará duvidar da bondade de seu Deus ou da competência de seu médico.
Mas quando o sr. Vinteuil pensava na filha e em si mesmo do ponto de vista da
sociedade, do ponto de vista de sua reputação, quando procurava se situar com ela no
lugar que ocupavam na estima pública, esse julgamento de ordem social, ele o formulava
então tal como o faria o habitante de Combray que lhe fosse mais hostil, via-se com sua
filha colocado no último degrau, e com isso sua atitude tomara ultimamente essa
humildade, esse respeito para com os que se achavam acima dele e a quem via de baixo
(por mais inferiores que os considerasse até então), essa tendência a procurar subir até
eles, que é uma resultante quase mecânica de todos os descalabros. Um dia em que íamos
com Swann por uma rua de Combray, entrava por outra o sr. Vinteuil, que de súbito se
viu a nossa frente, quando já era tarde para evitá-lo; e Swann, com essa caridade
orgulhosa do homem de sociedade que, no meio da dissolução de todos os seus
preconceitos morais, não vê na degradação de outra pessoa senão um motivo para lhe
demonstrar benevolência, cujos testemunhos tanto mais afagam o amor-próprio daquele
que a dispensa, quanto mais precioso os sente para aquele que os recebe, conversara
longamente com o sr. Vinteuil, a quem até então não dirigia a palavra, e perguntou-lhe
antes de despedir-se se não mandaria um dia sua filha passear em Tansonville. Era um
convite que dois anos antes teria indignado ao sr. Vinteuil, mas que agora o enchia de tal
reconhecimento que se julgava obrigado a não cometer a indiscrição de aceitá-lo. A
amabilidade de Swann para com sua filha era por si só um apoio tão honroso, tão grato,
que mais valia não utilizá-lo para ter a platônica doçura de o conservar.
— Que homem distinto! — disse-nos ele quando Swann nos deixou, e com a
mesma entusiástica veneração que mantém inteligentes e lindas burguesinhas sob o
domínio e a fascinação de uma duquesa, por mais tola e feia que seja. — Que homem
distinto! É pena que tenha feito um casamento tão desigual.[3]
E então, como as pessoas mais sinceras têm sempre algo de hipocrisia e, ao falar
com um terceiro, se despojam da opinião que têm a seu respeito, expressando-a logo
que o outro se retira, os meus deploravam com o sr. Vinteuil o casamento de Swann, em
nome de princípios e conveniências, os quais (por isso mesmo os invocavam em comum
com ele, como boa gente da mesma classe) pareciam subentender que não eram
infringidos em Montjouvain. O senhor de Vinteuil não mandou a filha à casa de Swann.
E este foi o primeiro a lamentá-lo. E cada vez que deixava o sr. Vinteuil, lembrava-se de
que tinha de informar-se com ele a propósito de uma pessoa do mesmo nome e que
supunha ser algum parente seu. E daquela vez se propusera não esquecê-lo, quando o
sr. Vinteuil mandasse a filha a Tansonville.
Como o passeio do lado de Méséglise era o menos longo dos dois que fazíamos
pelos arredores de Combray, ficava reservado para quando o tempo se mostrava incerto;
o clima dessa região era muito chuvoso e nunca perdíamos de vista a orla dos bosques
de Roussainville, em cuja espessura nos poderíamos abrigar.
Muitas vezes o sol se ocultava atrás de uma nuvem que lhe deformava o oval e cujas
bordas ele amarelava. Ficava o campo sem brilho, mas não sem claridade, e toda vida ali
parecia suspensa, enquanto a aldeia de Roussainville esculpia sobre o céu o relevo de
suas arestas brancas, com uma precisão e um acabado aflitivo. Um sopro de vento fazia
voar um corvo que ia retombar lá longe, e, contra o céu esbranquiçado, mais azul
parecia a lonjura dos bosques, como que pintada nesses camafeus que decoram os
tremós das moradias antigas.
Mas outras vezes começava a tombar a chuva com que nos ameaçava o capuchinho
que o oculista tinha em sua vitrine; as gotas d’água, como aves de arribação que se põem
a voar todas juntas, desciam do céu em apertadas filas. Não se separam, não vão ao léu
em sua rápida travessia, mas, cada qual em sua posição, atrai para ela a que a segue, e o
céu fica mais escurecido do que na partida das andorinhas. Nós nos refugiávamos no
bosque. Quando parecia finda sua viagem, algumas, mais débeis, mais lentas, ainda
chegavam. Mas saíamos de nosso abrigo, porque as gotas se comprazem nas folhagens,
e a terra já estava quase seca quando mais de uma se demorava a brincar nas nervuras de
uma folha, e suspensa à ponta, descansada, refulgindo ao sol, deixava-se de súbito
despencar de toda a altura do ramo e nos tombava sobre o nariz.
Muitas vezes também nos íamos abrigar, de mistura com os Santos e Patriarcas de
pedra, debaixo do pórtico de Santo André dos Campos. Como era francesa aquela
igreja! Acima da porta, os Santos, os reis-cavaleiros com uma flor-de-lis na mão, cenas
de núpcias e de funerais, eram apresentados como o podiam ser na alma de Françoise. O
escultor também havia narrado certas anedotas relativas a Aristóteles e a Virgílio, do
mesmo modo como Françoise, na cozinha, falava à vontade de são Luís, como se o
tivesse conhecido pessoalmente e, em geral, para envergonhar, com a comparação, meus
avós, que eram menos “justos”. Sentia-se que as noções que o artista medieval e a
camponesa medieval (sobrevivente no século XIX) possuíam da história antiga ou cristã, e
que se distinguiam por tanto de inexatidão quanto de bonomia, eles as haviam tirado,
não dos livros, mas de uma tradição ao mesmo tempo antiga e direta, ininterrupta, oral,
deformada, irreconhecível e viva. Outra personagem de Combray a quem eu descobria,
virtual e profetizada, nas esculturas góticas de Santo André dos Campos, era o moço
Théodore, empregado de Camus. Françoise o considerava aliás tão de seu tempo e de
sua terra que, quando tia Léonie se achava muito doente para que ela pudesse sozinha
virá-la no leito ou levá-la até a poltrona, não querendo deixar que a criada de cozinha
subisse “para se mostrar” a minha tia, preferia chamar Théodore. Ora, esse jovem que
passava, com razão, por um mau sujeito, estava tão penetrado da alma que inspirara as
decorações de Santo André dos Campos e especialmente do respeito que Françoise
julgava devido aos “pobres doentes”, a sua “pobre patroa”, que tinha, para soerguer a
cabeça de minha tia no travesseiro, a fisionomia ingênua e zelosa dos anjinhos dos
baixos-relevos, apressurando-se, com um círio na mão, em torno da Virgem
desfalecente, como se os rostos de pedra esculpida, grisáceos e nus como os bosques no
inverno, estivessem apenas adormecidos, em reserva, prontos para reflorir na vida em
inumeráveis rostos populares, reverendos e manhosos como o de Théodore, iluminado
do rubor de uma maçã madura. Não mais aplicado sobre a pedra como aqueles anjinhos,
mas destacada no pórtico, de uma estatura mais que humana, de pé sobre um soco como
sobre um tamborete que lhe evitava pousar os pés no solo úmido, uma santa apresentava
as faces cheias, o colo firme que lhe enfunava as vestes como um racimo maduro em um
saco de crina, a fronte estreita, o nariz curto e teimoso, as pupilas profundas, o ar forte,
insensível e corajoso das camponesas da região. Essa parecença, que insinuava na estátua
uma brandura que eu não lhe buscara, era muita vez comprovada por alguma rapariga
do campo, que viera se abrigar como nós e cuja presença, como a dessas folhagens
parietárias que cresceram ao lado das folhagens esculpidas, parecia destinada a fazer-nos
avaliar, por um confronto com a natureza, a verdade da obra de arte. Diante de nós, ao
longe, terra prometida ou maldita. Roussainville, em cujos muros jamais penetrei,
Roussainville que, quando a chuva já havia cessado para nós, continuava a ser castigada
como uma aldeia da Bíblia por todas as lanças da tempestade que flagelavam
obliquamente as moradas de seus habitantes, ou então já perdoada por Deus Padre que
fazia descerem sobre ela, desiguais em comprimento, como os raios de um ostensório de
altar, as franjadas hastes de ouro do sol reaparecido.
Algumas vezes o tempo se estragava de todo, tínhamos de voltar e ficar encerrados
em casa. Aqui e ali, pelo vasto campo, que a escuridão e a umidade tornavam
semelhantes ao mar, casas isoladas, ao flanco de uma colina mergulhada na treva e na
água, brilhavam como pequenas barcas que arriaram as velas e ficam imóveis ao largo
por toda a noite. Mas que importava a chuva, que importava a tormenta? No verão, o
mau tempo não é mais que um mau humor passageiro, superficial, do bom tempo
subjacente e fixo, muito diverso do bom tempo instável e fluido do inverno e que, ao
contrário deste, instalado na terra, onde se solidificou em densas folhagens por sobre as
quais pode escorrer a chuva sem lhes comprometer a resistência de sua permanente
alegria, içou por toda a estação, até nas ruas da aldeia, nos muros das casas e dos jardins,
seus pavilhões de seda violeta ou branca. Sentado na salinha, onde esperava, a ler, a hora
do jantar, eu ouvia a água correr de nossos castanheiros, mas sabia que toda aquela
chuva não fazia mais que lhes envernizar as folhas e que eles prometiam ficar ali, como
penhores do verão, por toda a noite tempestuosa, assegurando a continuidade do bom
tempo; que por mais que chovesse, amanhã, acima da cerca branca de Tansonville,
ondulariam, igualmente numerosas, pequenas folhas em forma de coração; e era sem
nenhuma tristeza que eu via o choupo da rua de Perchamps dirigir à tormenta súplicas e
curvaturas desesperadas; era sem nenhuma tristeza que eu ouvia ao fundo do jardim os
derradeiros rolos da trovoada arrulhando entre os lilases.
Se o tempo se apresentava assim ruim desde manhã, meus pais desistiam do passeio
e eu não saía de casa. Mas depois tomei o hábito de sair sozinho, nesses dias, para os
lados de Méséglise-la-Vineuse, durante o outono em que tivemos de vir a Combray, por
motivo do testamento de tia Léonie, pois ela afinal morrera, dando razão aos que
sustentavam que seu regime debilitante acabaria por matá-la, e não menos razão aos que
sempre haviam garantido que ela sofria de uma doença nada imaginária, mas orgânica, a
cuja evidência os céticos se veriam obrigados a render-se quando ela sucumbisse; sua
morte não causou grande abalo senão a uma criatura, mas este foi terrível. Durante os
quinze dias que durou a enfermidade final de tia Léonie, Françoise não a abandonou um
só instante, não se despiu, não permitiu que ninguém lhe prestasse cuidado algum, e só
deixou seu corpo quando ele foi entregue à sepultura. Então compreendemos que aquela
espécie de temor em que vivera Françoise, das palavras mal-humoradas, das suspeitas,
das cóleras de minha tia, desenvolvera nela um sentimento que tomávamos por ódio e
que era veneração e amor. Sua verdadeira ama, de decisões impossíveis de prever, de
manhas difíceis de contornar, de bondoso coração tão fácil de enternecer, sua soberana,
seu misterioso e todo-poderoso monarca não mais existia. E, junto a ela, éramos bem
pouca coisa. Longe iam os tempos de nossas primeiras férias em Combray, em que para
Françoise possuíamos tanto prestígio como minha tia. Naquele outono, ocupados com
formalidades e entrevistas com os notários e rendeiros, meus pais não dispunham de
lazer para passeios, que aliás o tempo não permitia, e deixavam então que eu fosse
passear sem eles para os lados de Méséglise, envolto em um grande plaid que me
protegia da chuva e que eu, com tanto maior gosto, lançava aos ombros por sentir que
suas listras escocesas escandalizavam a Françoise, em cujo espírito não podia entrar a
ideia de que a cor da roupa nada tinha com o luto e a quem aliás pouco agradava o pesar
que sentíamos pela morte de tia Léonie, visto que não tínhamos dado banquete fúnebre,
não tomávamos um tom de voz especial para falar nela e eu até cantarolava uma vez que
outra. Estou certo de que em um livro — e nisso eu mesmo era bem como Françoise —
essa concepção do luto segundo a Canção de Rolando e o pórtico de Santo André dos
Campos me seria simpática.[4] Mas logo que Françoise se achava perto de mim, não
sei que demônio me impelia a desejar que ela se encolerizasse, e eu aproveitava o mínimo
pretexto para lhe dizer que sentia a morte de tia Léonie porque ela era uma boa mulher,
apesar de seus ridículos, e não porque fosse minha tia, pois bem poderia ser minha tia e
parecer-me odiosa e sua morte não me haver causado nenhum pesar — frases estas que
em um livro me pareceriam tolas.
Se então Françoise, invadida, como um poeta, de uma vaga de pensamentos
confusos sobre o sofrimento, sobre as lembranças de família, escusava-se de não saber
responder a minhas teorias, dizendo: “Eu não sei exprimir-me”, eu tripudiava sobre essa
confissão com um bom senso irônico e brutal digno do dr. Percepied; e se ela
acrescentava: “Em todo caso há a geologia, sempre existe o respeito devido à geologia”, eu
dava de ombros e dizia comigo: “Sou um tolo em discutir com uma ignorante que fala
dessa maneira”, adotando assim, para julgar Françoise, o mesquinho ponto de vista
desses homens a quem os que mais os desprezam na imparcialidade da meditação são
muito capazes de imitar quando desempenham uma das cenas vulgares da vida.
continua na página 109...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Uma vez nos campos - n)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
[1] Joseph-Xavier Boniface, vulgo Saintine, era autor do romance Picciola. CharlesGabriel Gleyre, pintor suíço, cujo quadro Le soir ou les illusions perdues encontra-se no
Museu do Louvre. Em outros textos, Proust os associa às paixões artísticas típicas da
infância. [n. e.]
[2] A notícia do amor homoerótico entra no livro com o tom de fofoca e brincadeira
difamatória. Esse tema ganhará tal densidade que influenciará a vida amorosa do herói,
que, como a própria grandeza artística de Vinteuil, é dos temas principais da obra. [n.
e.]
[3] O contato de Swann com Vinteuil prefigura outro dos temas principais do livro: o
descompasso entre a vida e a arte — Swann, apaixonado por uma composição de
Vinteuil, não conseguirá acreditar que ambas pudessem estar separadas por tal abismo.
[n. e.]
[4] Na Canção de Rolando, do verso 2397 ao 2442, Carlos Magno e seu exército
deploram a morte de Rolando. [n. e.]
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