em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(m) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
Paramos um momento diante da cerca. Aproximava-se o fim do tempo dos lilases; alguns expandiam ainda em altos lustres malvas as cúpulas delicadas de suas flores, mas em muitas partes da folhagem onde uma semana antes rebentava seu embalsamado musgo, agora desandava, apoucada e enegrecida, uma espuma oca e sem perfume. Meu avô mostrava a meu pai o que naqueles lugares permanecia o mesmo e o que havia mudado, desde o passeio que ele dera com o sr. Swann no dia da morte de sua esposa; e aproveitou o ensejo para contar mais uma vez aquele passeio.
Diante de nós, uma alameda marginada de capuchinhas subia em pleno sol para o
castelo. À direita, pelo contrário, o parque estendia-se em terreno plano. Ensombrado
pelas grandes árvores que o cercavam, havia um tanque mandado construir pelos pais de
Swann; mas, em suas criações mais artificiais, é sobre a natureza que o homem trabalha;
há lugares que assentam seu império particular e arvoram suas insígnias imemoriais no
meio de um parque como o fariam longe de toda intervenção humana, em uma solidão
que sempre volta a cercá-los, provinda das necessidades de sua exposição e superposta à
obra humana. É assim que, ao pé da alameda que dominava o tanque, se compusera em
duas fiadas entretecidas de miosótis e pervincas a coroa natural, delicada e azul que cinge
a fronte claro-escura das águas, e a palma-de-santa-rita, deixando pender seus gládios
com um real abandono, espalhava sobre os eupatórios e os rainúnculos de pé molhado
as rotas flores-de-lis, roxas e amarelas, de seu cetro lacustre.
A partida da filha de Swann, que — tirando-me a terrível possibilidade de vê-la
surgir em uma alameda, de ser conhecido e desprezado pela privilegiada menina que
tinha Bergotte como amigo e ia com ele visitar as catedrais — tornava indiferente a
contemplação de Tansonville na primeira vez em que me era permitida, mas parecia
acrescentar a essa propriedade, aos olhos de meu avô e de meu pai, certas comodidades,
um encanto passageiro, como nos proporciona, em uma excursão às montanhas, um céu
inteiramente sem nuvens, e lhes tornava aquele dia excepcionalmente propício para um
passeio por aquelas bandas; eu desejaria que seus cálculos fracassassem, que um milagre
fizesse aparecer tão perto de nós a srta. Swann com seu pai que não tivéssemos tempo de
o evitar e fôssemos obrigados a travar conhecimento com ela. Assim, quando avistei de
súbito na relva, como um sinal de sua possível presença, um cestinho esquecido ao lado
de uma linha de pescar cuja boia flutuava na água, apressei-me em desviar para outro
lado os olhares de meu pai e de meu avô. Aliás, como Swann nos dissera que não lhe
ficava bem se ausentar, pois tinha hóspedes em casa, a linha podia pertencer a algum
convidado. Não se ouvia nenhum rumor de passos nas alamedas. A meia altura de uma
árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse breve o dia,
explorando com uma nota prolongada a solidão circundante, mas recebia desta uma
réplica tão unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e imobilidade que dir-se-ia que ele acabava de parar para sempre o instante que procurava fazer passar mais
depressa. Tão implacável tombava a luz de um céu imobilizado que a gente desejaria
subtrair-se à sua atenção, e a própria água parada, cujo sono os insetos perpetuamente
irritavam, sonhando decerto com algum Maelstrom imaginário, vinha aumentar a
perturbação em que me lançara o flutuador de cortiça, parecendo arrastá-lo a toda a
velocidade sobre as silenciosas extensões do céu que nela se refletia; o flutuador se
achava quase vertical, como que prestes a mergulhar, e eu me perguntava, sem levar em
conta o desejo e o temor que tinha de conhecê-la, se não seria meu dever prevenir a filha
de Swann de que o peixe estava picando quando me foi preciso sair correndo para
alcançar meu pai e meu avô, que me chamavam, espantados de que eu não os tivesse
acompanhado pela estradinha que subia para o campo e por onde eles já haviam seguido.
Achei-a toda sussurrante de odor dos pilriteiros. A sebe formava como que uma
sequência de pequenos altares que desapareciam sob as flores amontoadas; abaixo, o sol
pousava na terra um quadriculado de luz, como se acabasse de passar por um vitral; o
perfume difundia-se tão untuoso, tão delimitado em sua forma como se eu me achasse
ante o altar da Virgem; e as flores, assim ataviadas, sustinham distraidamente seu
fulgurante ramo de estames, finas e radiantes nervuras de estilo flamboyant, como as que
na igreja alumiavam a rampa da galeria ou as travessas do vitral e que se expandiam em
alva carnação de flor de morangueiro. Que ingênuas e campônias, em comparação, não
pareceriam as eglantinas que, dali a semanas, subiriam também em pleno sol o mesmo
caminho rústico, com seus ruborosos corpinhos de seda lisa que com um sopro se
desfazem!
Mas por mais que eu ficasse diante dos pilriteiros a respirar, a apresentar a meu
pensamento que não sabia o que fazer com ele, a perder, a reencontrar, seu invisível e
fixo odor, a integrar-me no ritmo que lançava aqui e ali suas flores, em um ímpeto
juvenil e a intervalos inesperados como certos intervalos musicais, ofereciam-me
indefinidamente o mesmo encanto, em inesgotável profusão, sem me deixar no entanto
aprofundá-lo mais, como essas melodias que executamos cem vezes seguidas sem
penetrar mais fundo em seu segredo. Desviava-me delas um momento, para abordá-las
em seguida com forças mais frescas. Eu perseguia até no talude, que, por detrás da sebe,
subia em forte aclive para o campo, alguma papoula perdida, algumas centáureas que
tivessem ficado preguiçosamente para trás, que o decoravam aqui e ali com suas flores,
como a orla de uma tapeçaria onde surge esparsamente o motivo agreste que triunfará
em todo o pano; raros ainda, espaçados como as casas isoladas que anunciam a
aproximação de uma aldeia, anunciavam-me elas a imensa extensão onde os trigais
ondeiam e as nuvens se arrebanham, e a vista de uma única papoula, içando ao alto de
sua cordoalha e fazendo palpitar ao vento sua flâmula rubra, acima de sua boia oleosa e
negra, fazia-me bater o coração, como ao viajante que vê em um terreno baixo uma
primeira barca virada que um calafate está consertando, e exclama, antes mesmo de o ter
avistado: “O Mar!”.
Depois voltava para junto dos pilriteiros como para junto dessas obras-primas que
a gente pensa ver melhor depois que deixou um momento de contemplá-las; mas de
nada me servia fazer uma pantalha com as mãos para não ter outra coisa ante os olhos,
pois o sentimento que me despertavam permanecia obscuro e vago, sem conseguir
desprender-se de mim para se unir às flores. Estas não ajudavam a esclarecer meu
sentimento e eu não podia pedir a outras flores que o satisfizessem. Dando-me então
essa alegria que experimentamos ao ver uma obra de nosso pintor favorito que difere
das que conhecíamos, ou quando nos levam ante um quadro de que apenas tínhamos
visto um esboço a creiom, ou quando um trecho apenas escutado ao piano nos aparece
em seguida revestido de todas as cores da orquestra, meu avô me chamou e, apontando
para a sebe de Tansonville, disse-me: “Tu, que gostas dos pilriteiros, repara neste
pilriteiro cor-de-rosa; como é bonito!”. Com efeito, era um pilriteiro, mas róseo, mais
belo ainda que os brancos. Também estava vestido de festa — de festa religiosa, as
únicas festividades verdadeiras, pois não há um capricho contingente que as aplique,
como as festas mundanas, a um dia que não lhes é destinado especialmente e que nada
tem de essencialmente festivo —, porém com uma veste ainda mais rica, pois as flores
ligadas ao ramo, umas acima das outras, não deixando um só lugar que não fosse
decorado, como os pompons que engrinaldam um bastão rococó, eram “de cor”, e por
conseguinte de superior qualidade, segundo a estética de Combray, a julgar pela escala
dos preços no armazém da Praça ou no Camus, onde os biscoitos cor-de-rosa eram os
mais caros. Eu também gostava mais de creme cor-de-rosa, em que me deixavam
esmagar morangos. E justamente aquelas flores tinham escolhido um desses tons de
coisa comestível, ou de formoso adorno em um vestido para grande festa, e que, visto
lhes apresentarem a razão de sua superioridade, são as que parecem mais evidentemente
belas aos olhos das crianças e por isso conservam sempre para estas qualquer coisa de
mais vivo e natural que as outras cores, mesmo depois de haverem compreendido que
nada ofereciam a sua gulodice e não tinham sido escolhidas pela costureira. E na verdade
logo sentira, como diante dos pilriteiros brancos, mas com maior maravilha, que não era
facticiamente, por um artifício de indústria humana, que a intenção de festividade estava
traduzida nas flores, mas tinha sido a natureza quem espontaneamente a expressara com
a ingenuidade de um lojista de aldeia trabalhando para um altar, sobrecarregando o
arbusto com essas rosinhas de um tom demasiado suave e de um pompadour provinciano.
No alto dos ramos, como outros tantos vasinhos de roseiras ocultos em papel recortado,
com seus finos hastis a irradiarem do altar nos dias festivos, pululavam mil botõezinhos
de cor mais pálida que, entreabrindo-se, deixavam ver, como no fundo de uma taça de
mármore róseo, vermelhas sanguinas e traíam, mais ainda que as flores, a essência
particular, irresistível, do pilriteiro, que, onde quer que brotasse ou florescesse, só o
podia fazer em cor-de-rosa. Intercalado na sebe, mas tão diferente dela como uma
donzela vestida para uma festa no meio de pessoas em trajes caseiros, pronto para o mês
de Maria, de que já parecia fazer parte, assim brilhava a sorrir, em sua fresca toalete
rósea, o arbusto católico e delicioso.
A sebe entremostrava no interior do parque uma aleia bordada de jasmins, amores-perfeitos e verbenas, dentre os quais abriam uns goivos a sua bolsa fresca, de um róseo
odorante e fanado de velho couro de Córdoba, enquanto pelo caminho serpenteava uma
comprida manga de regar, pintada de verde e que, dos pontos onde tinha orifícios,
erguia por sobre as flores cujo aroma impregnava com sua frescura o leque vertical e
prismático de suas gotículas multicores. De súbito parei, não pude mais me mover,
como acontece quando uma visão não se dirige apenas a nossos olhares, mas requer
percepções mais profundas e dispõe de todo o nosso ser. Uma menina de um loiro-avermelhado, que parecia voltar de um passeio e que tinha na mão uma pá de
jardinagem, olhava-nos, erguendo o rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa. Seus
olhos negros fulguravam e, como eu então não sabia, nem o aprendi depois, reduzir a
seus elementos objetivos uma impressão muito forte, como não tinha suficiente
“espírito de observação”, como se diz, para poder isolar a noção de sua cor, durante
muito tempo, de cada vez que pensava nela, a lembrança do fulgor de seus olhos logo se
me apresentava como de vivíssimo azul, visto que ela era loira; de modo que, se acaso
não tivesse uns olhos tão negros — coisa que tanto surpreendia ao vê-la pela primeira
vez —, eu não teria ficado, como fiquei, mais particularmente enamorado, nela, de seus
olhos azuis.
Fiquei a olhá-la, a princípio com esse olhar que não é mais que o porta-voz dos
olhos, mas à janela do qual se inclinam todos os sentidos, ansiosos e petrificados, olhar
que desejaria tocar, capturar, trazer consigo o corpo que está mirando, e com ele a alma;
depois, tal o medo que eu tinha de que de um momento para outro meu avô e meu pai,
avistando a menina, me fizessem afastar, dizendo-me que corresse um pouco adiante
deles, com um segundo olhar, inconscientemente súplice, que procurava forçá-la a
prestar atenção a minha pessoa, a conhecer-me! Ela dirigiu as pupilas para a frente e para
um lado, a fim de tomar conhecimento de meu avô e de meu pai, e sem dúvida concluiu
dessa inspeção que nós éramos ridículos, pois se desviou e, com um ar indiferente e
desdenhoso, colocou-se de lado para subtrair o rosto ao campo visual dos dois; e
enquanto eles, sem tê-la visto, continuavam a andar, deixando-me para trás, ela deixou
correr o olhar em todo o seu comprimento até onde eu me achava, sem expressão
particular, sem parecer que me via, mas com uma fixidez e um sorriso dissimulado, que
eu não podia interpretar, segundo as noções que me haviam dado sobre a boa educação,
senão como uma prova de ofensivo desprezo; ao mesmo tempo sua mão esboçava um
indecente gesto, ao qual, quando dirigido em público a um estranho, o pequeno
dicionário de civilidade que eu trazia em mim só podia dar um sentido, o de uma
intenção de insolência.[1]
— Anda, Gilberte, vem; que é que estás fazendo aí? — gritou com voz aguda e
autoritária uma dama de branco que eu não tinha visto, e, a alguma distância da mesma,
um senhor com roupa de xadrez e que eu desconhecia, fixava em mim uns olhos que
pareciam querer saltar-lhe da cabeça;[2] e, deixando bruscamente de sorrir, a menina
tomou sua pá e afastou-se, sem se voltar para meu lado, com um ar dócil, impenetrável e
sorrateiro.
Assim passou junto a mim esse nome de Gilberte, oferecido como um talismã que
me permitiria talvez reencontrar um dia aquela de quem ele acabava de fazer uma pessoa
e que, um momento antes, não era mais do que uma incerta imagem. Assim passou,
proferido acima dos jasmins e dos goivos, brusco e fresco como as gotas da mangueira
verde; impregnando, irisando a zona de ar puro que atravessara — e que isolava — com
o mistério da vida daquela que ele designava para as felizes criaturas que viviam, que
viajavam com ela; expandindo sob o espinheiro róseo, à altura de meu ombro, a quinta-essência da familiaridade deles, para mim tão dolorosa, com Gilberte, com o
desconhecido de sua vida, onde eu não penetraria.
Por um instante (enquanto nos afastávamos e meu avô murmurava: “Esse pobre
Swann, que papel o fazem representar! Mandam-no embora para que ela fique sozinha
com seu Charlus, pois é ele, eu reconheci-o! E essa pequena, metida em toda essa
infâmia!”), a impressão que me deixou o tom despótico com que a mãe de Gilberte lhe
falara, sem que esta replicasse, mostrando-a a mim como forçada a obedecer a alguém,
como se não fosse superior a tudo, acalmou um pouco meu sofrimento, deu-me alguma
esperança e diminuiu meu amor. Mas logo esse amor tornou a elevar-se, como uma
reação pela qual meu coração humilhado anelava pôr-se ao nível de Gilberte ou baixá-la
até seu próprio nível. Amava-a, lamentava não ter tido tempo nem a inspiração de
ofendê-la, de fazer-lhe mal, de forçá-la a se lembrar de mim. Achava-a tão linda que
desejaria retroceder para gritar-lhe, erguendo os ombros: “Como a acho feia, ridícula,
como você me repugna”. Mas me afastava, levando para sempre, como primeiro tipo de
uma felicidade que era inacessível, por infringíveis leis naturais, aos meninos de minha
espécie, a imagem de uma menina ruiva, de pele semeada de manchinhas róseas, que
segurava uma pá e ria, dirigindo a mim longos olhares disfarçados e inexpressivos. E já
o encanto com que seu nome tinha incensado aquele lugar junto aos espinheiros róseos,
onde fora ouvido ao mesmo tempo por ela e por mim, ia alcançar, impregnar, perfumar
tudo o que lhe era próximo, seus avós que os meus tiveram a inefável ventura de
conhecer, a sublime profissão de corretor, o pungente bairro dos Campos Elísios onde
ela morava em Paris.
— Léonie — disse meu avô ao regressar —, eu desejaria que estivesses conosco
ainda há pouco. Nem reconhecerias Tansonville! Se eu me tivesse animado, cortaria para
ti um ramo daqueles espinheiros cor-de-rosa de que tanto gostavas.
Contava assim meu avô nosso passeio a tia Léonie, ou para distraí-la, ou porque
não houvesse perdido de todo a esperança de fazê-la sair. Ela gostava muito de
Tansonville, e aliás as visitas de Swann foram as últimas que recebera, já quando fechava
a porta a todo mundo. E como acontecia quando ele ultimamente perguntava por ela
(pois era a única pessoa de casa que Swann ainda pedia para ver) e ela lhe mandava dizer
que estava fatigada, mas que o receberia da próxima vez, assim disse tia Léonie naquela
tarde: “Sim, num dia em que fizer bom tempo, irei de carro até o portão do parque”. E
dizia-o sinceramente. Gostaria de tornar a ver Swann e Tansonville; mas o desejo que
tinha disso era o suficiente para o que lhe restava de forças; sua realização seria superior
a elas. Algumas vezes o bom tempo lhe restituía um pouco de vigor, e ela levantava-se,
vestia-se; mas a fadiga já começava ao passar para o outro quarto e logo tia Léonie
voltava ao leito. O que para ela havia começado — apenas mais cedo do que
habitualmente acontece — era essa completa renúncia da velhice que se prepara para a
morte, envolvendo-se em sua crisálida, e que se pode observar, no final das vidas que se
prolongam demasiado, até entre os amantes que mais se amaram, entre amigos unidos
pelos elos mais espirituais e que, a partir de certo ano, deixam de fazer a viagem ou dar a
caminhada necessária para se encontrarem, cessam de escrever-se e sabem que não mais
se comunicarão neste mundo. Tia Léonie devia perfeitamente saber que não tornaria a
avistar-se com Swann, que nunca mais sairia de casa, mas essa reclusão definitiva deveria
ter-se-lhe tornado bastante fácil pela mesma razão que a nós nos parecia dolorosa: é que
tal reclusão lhe era imposta pelo declínio que ela diariamente podia constatar em suas
forças, e que, fazendo de cada ação, de cada movimento, uma fadiga, senão um
sofrimento, dava para ela à inação, ao isolamento, ao silêncio, a reparadora e bendita
doçura do repouso.
Minha tia não foi ver a sebe de espinheiros. Mas a cada momento eu perguntava a
meus pais se ela não iria, se outrora não ia muitas vezes a Tansonville, só para os
obrigar a falar nos pais e avós de Gilberte, que me pareciam grandes como deuses. Esse
nome, que se tornara para mim quase mitológico, de Swann, quando eu conversava com
meus pais, morria de desejo de os ouvir proferi-lo, não ousando pronunciá-lo por
minha boca, mas arrastava-os para assuntos que se avizinhassem de Gilberte e sua
família, que a ela se ligassem e nos quais eu não me sentisse isolado para muito longe
dela; e levava inopinadamente meu pai, fingindo por exemplo acreditar que o cargo de
meu avô já estivera em mãos de outros membros de nossa família, ou que a sebe de
espinheiros que tia Léonie queria ver se achava em terreno municipal, a retificar minha
asserção, a dizer-me, como que a me contrariar, e por sua própria conta: “Mas não, esse
cargo pertencia ao pai de Swann, aquela sebe faz parte do parque de Swann”. Via-me então
obrigado a tomar respiração, de tal modo esse nome, pousando no lugar em que estava
sempre gravado em mim, me pesava até a asfixia, pois no momento em que o ouvia, ele
se me afigurava mais denso do que qualquer outro, visto que trazia o peso de todas as
vezes em que o pronunciara mentalmente. Causava-me um prazer que eu me sentia
confuso de haver solicitado a meus pais, pois tão grande era que decerto lhes custara
muito proporcioná-lo, e isto sem compensação, pois para eles não constituía prazer
nenhum. De maneira que eu desviava a conversa por discrição. Por escrúpulo também.
Todos os singulares encantos que atribuía a esse nome de Swann, tornava a encontrá-los
nessa palavra quando eles a pronunciavam. Logo me parecia que eles também não
podiam deixar de senti-los, que se colocavam em meu ponto de vista, que por sua vez
percebiam, absolviam, compartilhavam meus sonhos, e eu sentia-me infeliz como se
tivesse vencido e depravado meus pais.
Quando naquele ano, um pouco mais cedo que de costume, meus pais marcaram a
data do regresso a Paris, sucedeu que na manhã da partida, como tinham encrespado
meus cabelos para mandar-me tirar um retrato, e também haviam me posto com todo o
cuidado um chapéu que eu nunca usara antes e uma capa de veludo, minha mãe, depois
de me procurar por toda parte, foi encontrar-me em pranto na ladeira contígua a
Tansonville, despedindo-me dos pilriteiros, abraçando-lhes os ramos picantes, e, como
uma princesa de tragédia a quem pesassem aqueles vãos ornamentos, ingrato para com a
importuna mão que atara todos aqueles laços na intenção de me arranjar os cabelos,[3]
calcando aos pés meus papelotes arrancados e meu chapéu novo. Minha mãe não se
comoveu com minhas lágrimas, mas não pôde reter um grito, à vista do chapéu
amassado e da capa perdida. Eu não a ouvia. “Meus pobres pilriteirinhos!”, dizia eu,
chorando. “Vocês, só vocês não me dariam pesar, não me obrigariam a partir! Nunca
me fizeram mal! Sempre hei de querer bem a vocês.” E enxugando os olhos, eu lhes
prometia, para quando fosse grande, não imitar a vida insensata dos outros homens, e,
até mesmo em Paris, nos dias de primavera, em vez de ir fazer visitas e ouvir tolices,
sair para os campos a ver as primeiras flores de pilriteiro.
continua na página 104...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Paramos um momento - m)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Somente ao final do livro, quase 3 mil páginas adiante, lhe será revelado o sentido
do gesto de Gilberte. [n. e.]
[2] A razão da fixidez desse olhar também só será esclarecida no quarto volume da
obra. [n. e.]
[3] Citação quase literal de um verso da cena 3 do primeiro ato da peça Phèdre, de
Racine. [n. e.]
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