quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Paramos um momento - m)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(m) 

continuando...

     Paramos um momento diante da cerca. Aproximava-se o fim do tempo dos lilases; alguns expandiam ainda em altos lustres malvas as cúpulas delicadas de suas flores, mas em muitas partes da folhagem onde uma semana antes rebentava seu embalsamado musgo, agora desandava, apoucada e enegrecida, uma espuma oca e sem perfume. Meu avô mostrava a meu pai o que naqueles lugares permanecia o mesmo e o que havia mudado, desde o passeio que ele dera com o sr. Swann no dia da morte de sua esposa; e aproveitou o ensejo para contar mais uma vez aquele passeio.
     Diante de nós, uma alameda marginada de capuchinhas subia em pleno sol para o castelo. À direita, pelo contrário, o parque estendia-se em terreno plano. Ensombrado pelas grandes árvores que o cercavam, havia um tanque mandado construir pelos pais de Swann; mas, em suas criações mais artificiais, é sobre a natureza que o homem trabalha; há lugares que assentam seu império particular e arvoram suas insígnias imemoriais no meio de um parque como o fariam longe de toda intervenção humana, em uma solidão que sempre volta a cercá-los, provinda das necessidades de sua exposição e superposta à obra humana. É assim que, ao pé da alameda que dominava o tanque, se compusera em duas fiadas entretecidas de miosótis e pervincas a coroa natural, delicada e azul que cinge a fronte claro-escura das águas, e a palma-de-santa-rita, deixando pender seus gládios com um real abandono, espalhava sobre os eupatórios e os rainúnculos de pé molhado as rotas flores-de-lis, roxas e amarelas, de seu cetro lacustre.
     A partida da filha de Swann, que — tirando-me a terrível possibilidade de vê-la surgir em uma alameda, de ser conhecido e desprezado pela privilegiada menina que tinha Bergotte como amigo e ia com ele visitar as catedrais — tornava indiferente a contemplação de Tansonville na primeira vez em que me era permitida, mas parecia acrescentar a essa propriedade, aos olhos de meu avô e de meu pai, certas comodidades, um encanto passageiro, como nos proporciona, em uma excursão às montanhas, um céu inteiramente sem nuvens, e lhes tornava aquele dia excepcionalmente propício para um passeio por aquelas bandas; eu desejaria que seus cálculos fracassassem, que um milagre fizesse aparecer tão perto de nós a srta. Swann com seu pai que não tivéssemos tempo de o evitar e fôssemos obrigados a travar conhecimento com ela. Assim, quando avistei de súbito na relva, como um sinal de sua possível presença, um cestinho esquecido ao lado de uma linha de pescar cuja boia flutuava na água, apressei-me em desviar para outro lado os olhares de meu pai e de meu avô. Aliás, como Swann nos dissera que não lhe ficava bem se ausentar, pois tinha hóspedes em casa, a linha podia pertencer a algum convidado. Não se ouvia nenhum rumor de passos nas alamedas. A meia altura de uma árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse breve o dia, explorando com uma nota prolongada a solidão circundante, mas recebia desta uma réplica tão unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e imobilidade que dir-se-ia que ele acabava de parar para sempre o instante que procurava fazer passar mais depressa. Tão implacável tombava a luz de um céu imobilizado que a gente desejaria subtrair-se à sua atenção, e a própria água parada, cujo sono os insetos perpetuamente irritavam, sonhando decerto com algum Maelstrom imaginário, vinha aumentar a perturbação em que me lançara o flutuador de cortiça, parecendo arrastá-lo a toda a velocidade sobre as silenciosas extensões do céu que nela se refletia; o flutuador se achava quase vertical, como que prestes a mergulhar, e eu me perguntava, sem levar em conta o desejo e o temor que tinha de conhecê-la, se não seria meu dever prevenir a filha de Swann de que o peixe estava picando quando me foi preciso sair correndo para alcançar meu pai e meu avô, que me chamavam, espantados de que eu não os tivesse acompanhado pela estradinha que subia para o campo e por onde eles já haviam seguido. Achei-a toda sussurrante de odor dos pilriteiros. A sebe formava como que uma sequência de pequenos altares que desapareciam sob as flores amontoadas; abaixo, o sol pousava na terra um quadriculado de luz, como se acabasse de passar por um vitral; o perfume difundia-se tão untuoso, tão delimitado em sua forma como se eu me achasse ante o altar da Virgem; e as flores, assim ataviadas, sustinham distraidamente seu fulgurante ramo de estames, finas e radiantes nervuras de estilo flamboyant, como as que na igreja alumiavam a rampa da galeria ou as travessas do vitral e que se expandiam em alva carnação de flor de morangueiro. Que ingênuas e campônias, em comparação, não pareceriam as eglantinas que, dali a semanas, subiriam também em pleno sol o mesmo caminho rústico, com seus ruborosos corpinhos de seda lisa que com um sopro se desfazem!
     Mas por mais que eu ficasse diante dos pilriteiros a respirar, a apresentar a meu pensamento que não sabia o que fazer com ele, a perder, a reencontrar, seu invisível e fixo odor, a integrar-me no ritmo que lançava aqui e ali suas flores, em um ímpeto juvenil e a intervalos inesperados como certos intervalos musicais, ofereciam-me indefinidamente o mesmo encanto, em inesgotável profusão, sem me deixar no entanto aprofundá-lo mais, como essas melodias que executamos cem vezes seguidas sem penetrar mais fundo em seu segredo. Desviava-me delas um momento, para abordá-las em seguida com forças mais frescas. Eu perseguia até no talude, que, por detrás da sebe, subia em forte aclive para o campo, alguma papoula perdida, algumas centáureas que tivessem ficado preguiçosamente para trás, que o decoravam aqui e ali com suas flores, como a orla de uma tapeçaria onde surge esparsamente o motivo agreste que triunfará em todo o pano; raros ainda, espaçados como as casas isoladas que anunciam a aproximação de uma aldeia, anunciavam-me elas a imensa extensão onde os trigais ondeiam e as nuvens se arrebanham, e a vista de uma única papoula, içando ao alto de sua cordoalha e fazendo palpitar ao vento sua flâmula rubra, acima de sua boia oleosa e negra, fazia-me bater o coração, como ao viajante que vê em um terreno baixo uma primeira barca virada que um calafate está consertando, e exclama, antes mesmo de o ter avistado: “O Mar!”.
     Depois voltava para junto dos pilriteiros como para junto dessas obras-primas que a gente pensa ver melhor depois que deixou um momento de contemplá-las; mas de nada me servia fazer uma pantalha com as mãos para não ter outra coisa ante os olhos, pois o sentimento que me despertavam permanecia obscuro e vago, sem conseguir desprender-se de mim para se unir às flores. Estas não ajudavam a esclarecer meu sentimento e eu não podia pedir a outras flores que o satisfizessem. Dando-me então essa alegria que experimentamos ao ver uma obra de nosso pintor favorito que difere das que conhecíamos, ou quando nos levam ante um quadro de que apenas tínhamos visto um esboço a creiom, ou quando um trecho apenas escutado ao piano nos aparece em seguida revestido de todas as cores da orquestra, meu avô me chamou e, apontando para a sebe de Tansonville, disse-me: “Tu, que gostas dos pilriteiros, repara neste pilriteiro cor-de-rosa; como é bonito!”. Com efeito, era um pilriteiro, mas róseo, mais belo ainda que os brancos. Também estava vestido de festa — de festa religiosa, as únicas festividades verdadeiras, pois não há um capricho contingente que as aplique, como as festas mundanas, a um dia que não lhes é destinado especialmente e que nada tem de essencialmente festivo —, porém com uma veste ainda mais rica, pois as flores ligadas ao ramo, umas acima das outras, não deixando um só lugar que não fosse decorado, como os pompons que engrinaldam um bastão rococó, eram “de cor”, e por conseguinte de superior qualidade, segundo a estética de Combray, a julgar pela escala dos preços no armazém da Praça ou no Camus, onde os biscoitos cor-de-rosa eram os mais caros. Eu também gostava mais de creme cor-de-rosa, em que me deixavam esmagar morangos. E justamente aquelas flores tinham escolhido um desses tons de coisa comestível, ou de formoso adorno em um vestido para grande festa, e que, visto lhes apresentarem a razão de sua superioridade, são as que parecem mais evidentemente belas aos olhos das crianças e por isso conservam sempre para estas qualquer coisa de mais vivo e natural que as outras cores, mesmo depois de haverem compreendido que nada ofereciam a sua gulodice e não tinham sido escolhidas pela costureira. E na verdade logo sentira, como diante dos pilriteiros brancos, mas com maior maravilha, que não era facticiamente, por um artifício de indústria humana, que a intenção de festividade estava traduzida nas flores, mas tinha sido a natureza quem espontaneamente a expressara com a ingenuidade de um lojista de aldeia trabalhando para um altar, sobrecarregando o arbusto com essas rosinhas de um tom demasiado suave e de um pompadour provinciano. No alto dos ramos, como outros tantos vasinhos de roseiras ocultos em papel recortado, com seus finos hastis a irradiarem do altar nos dias festivos, pululavam mil botõezinhos de cor mais pálida que, entreabrindo-se, deixavam ver, como no fundo de uma taça de mármore róseo, vermelhas sanguinas e traíam, mais ainda que as flores, a essência particular, irresistível, do pilriteiro, que, onde quer que brotasse ou florescesse, só o podia fazer em cor-de-rosa. Intercalado na sebe, mas tão diferente dela como uma donzela vestida para uma festa no meio de pessoas em trajes caseiros, pronto para o mês de Maria, de que já parecia fazer parte, assim brilhava a sorrir, em sua fresca toalete rósea, o arbusto católico e delicioso.
     A sebe entremostrava no interior do parque uma aleia bordada de jasmins, amores-perfeitos e verbenas, dentre os quais abriam uns goivos a sua bolsa fresca, de um róseo odorante e fanado de velho couro de Córdoba, enquanto pelo caminho serpenteava uma comprida manga de regar, pintada de verde e que, dos pontos onde tinha orifícios, erguia por sobre as flores cujo aroma impregnava com sua frescura o leque vertical e prismático de suas gotículas multicores. De súbito parei, não pude mais me mover, como acontece quando uma visão não se dirige apenas a nossos olhares, mas requer percepções mais profundas e dispõe de todo o nosso ser. Uma menina de um loiro-avermelhado, que parecia voltar de um passeio e que tinha na mão uma pá de jardinagem, olhava-nos, erguendo o rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa. Seus olhos negros fulguravam e, como eu então não sabia, nem o aprendi depois, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão muito forte, como não tinha suficiente “espírito de observação”, como se diz, para poder isolar a noção de sua cor, durante muito tempo, de cada vez que pensava nela, a lembrança do fulgor de seus olhos logo se me apresentava como de vivíssimo azul, visto que ela era loira; de modo que, se acaso não tivesse uns olhos tão negros — coisa que tanto surpreendia ao vê-la pela primeira vez —, eu não teria ficado, como fiquei, mais particularmente enamorado, nela, de seus olhos azuis.
     Fiquei a olhá-la, a princípio com esse olhar que não é mais que o porta-voz dos olhos, mas à janela do qual se inclinam todos os sentidos, ansiosos e petrificados, olhar que desejaria tocar, capturar, trazer consigo o corpo que está mirando, e com ele a alma; depois, tal o medo que eu tinha de que de um momento para outro meu avô e meu pai, avistando a menina, me fizessem afastar, dizendo-me que corresse um pouco adiante deles, com um segundo olhar, inconscientemente súplice, que procurava forçá-la a prestar atenção a minha pessoa, a conhecer-me! Ela dirigiu as pupilas para a frente e para um lado, a fim de tomar conhecimento de meu avô e de meu pai, e sem dúvida concluiu dessa inspeção que nós éramos ridículos, pois se desviou e, com um ar indiferente e desdenhoso, colocou-se de lado para subtrair o rosto ao campo visual dos dois; e enquanto eles, sem tê-la visto, continuavam a andar, deixando-me para trás, ela deixou correr o olhar em todo o seu comprimento até onde eu me achava, sem expressão particular, sem parecer que me via, mas com uma fixidez e um sorriso dissimulado, que eu não podia interpretar, segundo as noções que me haviam dado sobre a boa educação, senão como uma prova de ofensivo desprezo; ao mesmo tempo sua mão esboçava um indecente gesto, ao qual, quando dirigido em público a um estranho, o pequeno dicionário de civilidade que eu trazia em mim só podia dar um sentido, o de uma intenção de insolência.[1]

— Anda, Gilberte, vem; que é que estás fazendo aí? — gritou com voz aguda e autoritária uma dama de branco que eu não tinha visto, e, a alguma distância da mesma, um senhor com roupa de xadrez e que eu desconhecia, fixava em mim uns olhos que pareciam querer saltar-lhe da cabeça;[2] e, deixando bruscamente de sorrir, a menina tomou sua pá e afastou-se, sem se voltar para meu lado, com um ar dócil, impenetrável e sorrateiro.

     Assim passou junto a mim esse nome de Gilberte, oferecido como um talismã que me permitiria talvez reencontrar um dia aquela de quem ele acabava de fazer uma pessoa e que, um momento antes, não era mais do que uma incerta imagem. Assim passou, proferido acima dos jasmins e dos goivos, brusco e fresco como as gotas da mangueira verde; impregnando, irisando a zona de ar puro que atravessara — e que isolava — com o mistério da vida daquela que ele designava para as felizes criaturas que viviam, que viajavam com ela; expandindo sob o espinheiro róseo, à altura de meu ombro, a quinta-essência da familiaridade deles, para mim tão dolorosa, com Gilberte, com o desconhecido de sua vida, onde eu não penetraria.
     Por um instante (enquanto nos afastávamos e meu avô murmurava: “Esse pobre Swann, que papel o fazem representar! Mandam-no embora para que ela fique sozinha com seu Charlus, pois é ele, eu reconheci-o! E essa pequena, metida em toda essa infâmia!”), a impressão que me deixou o tom despótico com que a mãe de Gilberte lhe falara, sem que esta replicasse, mostrando-a a mim como forçada a obedecer a alguém, como se não fosse superior a tudo, acalmou um pouco meu sofrimento, deu-me alguma esperança e diminuiu meu amor. Mas logo esse amor tornou a elevar-se, como uma reação pela qual meu coração humilhado anelava pôr-se ao nível de Gilberte ou baixá-la até seu próprio nível. Amava-a, lamentava não ter tido tempo nem a inspiração de ofendê-la, de fazer-lhe mal, de forçá-la a se lembrar de mim. Achava-a tão linda que desejaria retroceder para gritar-lhe, erguendo os ombros: “Como a acho feia, ridícula, como você me repugna”. Mas me afastava, levando para sempre, como primeiro tipo de uma felicidade que era inacessível, por infringíveis leis naturais, aos meninos de minha espécie, a imagem de uma menina ruiva, de pele semeada de manchinhas róseas, que segurava uma pá e ria, dirigindo a mim longos olhares disfarçados e inexpressivos. E já o encanto com que seu nome tinha incensado aquele lugar junto aos espinheiros róseos, onde fora ouvido ao mesmo tempo por ela e por mim, ia alcançar, impregnar, perfumar tudo o que lhe era próximo, seus avós que os meus tiveram a inefável ventura de conhecer, a sublime profissão de corretor, o pungente bairro dos Campos Elísios onde ela morava em Paris.

— Léonie — disse meu avô ao regressar —, eu desejaria que estivesses conosco ainda há pouco. Nem reconhecerias Tansonville! Se eu me tivesse animado, cortaria para ti um ramo daqueles espinheiros cor-de-rosa de que tanto gostavas.

     Contava assim meu avô nosso passeio a tia Léonie, ou para distraí-la, ou porque não houvesse perdido de todo a esperança de fazê-la sair. Ela gostava muito de Tansonville, e aliás as visitas de Swann foram as últimas que recebera, já quando fechava a porta a todo mundo. E como acontecia quando ele ultimamente perguntava por ela (pois era a única pessoa de casa que Swann ainda pedia para ver) e ela lhe mandava dizer que estava fatigada, mas que o receberia da próxima vez, assim disse tia Léonie naquela tarde: “Sim, num dia em que fizer bom tempo, irei de carro até o portão do parque”. E dizia-o sinceramente. Gostaria de tornar a ver Swann e Tansonville; mas o desejo que tinha disso era o suficiente para o que lhe restava de forças; sua realização seria superior a elas. Algumas vezes o bom tempo lhe restituía um pouco de vigor, e ela levantava-se, vestia-se; mas a fadiga já começava ao passar para o outro quarto e logo tia Léonie voltava ao leito. O que para ela havia começado — apenas mais cedo do que habitualmente acontece — era essa completa renúncia da velhice que se prepara para a morte, envolvendo-se em sua crisálida, e que se pode observar, no final das vidas que se prolongam demasiado, até entre os amantes que mais se amaram, entre amigos unidos pelos elos mais espirituais e que, a partir de certo ano, deixam de fazer a viagem ou dar a caminhada necessária para se encontrarem, cessam de escrever-se e sabem que não mais se comunicarão neste mundo. Tia Léonie devia perfeitamente saber que não tornaria a avistar-se com Swann, que nunca mais sairia de casa, mas essa reclusão definitiva deveria ter-se-lhe tornado bastante fácil pela mesma razão que a nós nos parecia dolorosa: é que tal reclusão lhe era imposta pelo declínio que ela diariamente podia constatar em suas forças, e que, fazendo de cada ação, de cada movimento, uma fadiga, senão um sofrimento, dava para ela à inação, ao isolamento, ao silêncio, a reparadora e bendita doçura do repouso.
     Minha tia não foi ver a sebe de espinheiros. Mas a cada momento eu perguntava a meus pais se ela não iria, se outrora não ia muitas vezes a Tansonville, só para os obrigar a falar nos pais e avós de Gilberte, que me pareciam grandes como deuses. Esse nome, que se tornara para mim quase mitológico, de Swann, quando eu conversava com meus pais, morria de desejo de os ouvir proferi-lo, não ousando pronunciá-lo por minha boca, mas arrastava-os para assuntos que se avizinhassem de Gilberte e sua família, que a ela se ligassem e nos quais eu não me sentisse isolado para muito longe dela; e levava inopinadamente meu pai, fingindo por exemplo acreditar que o cargo de meu avô já estivera em mãos de outros membros de nossa família, ou que a sebe de espinheiros que tia Léonie queria ver se achava em terreno municipal, a retificar minha asserção, a dizer-me, como que a me contrariar, e por sua própria conta: “Mas não, esse cargo pertencia ao pai de Swann, aquela sebe faz parte do parque de Swann”. Via-me então obrigado a tomar respiração, de tal modo esse nome, pousando no lugar em que estava sempre gravado em mim, me pesava até a asfixia, pois no momento em que o ouvia, ele se me afigurava mais denso do que qualquer outro, visto que trazia o peso de todas as vezes em que o pronunciara mentalmente. Causava-me um prazer que eu me sentia confuso de haver solicitado a meus pais, pois tão grande era que decerto lhes custara muito proporcioná-lo, e isto sem compensação, pois para eles não constituía prazer nenhum. De maneira que eu desviava a conversa por discrição. Por escrúpulo também. Todos os singulares encantos que atribuía a esse nome de Swann, tornava a encontrá-los nessa palavra quando eles a pronunciavam. Logo me parecia que eles também não podiam deixar de senti-los, que se colocavam em meu ponto de vista, que por sua vez percebiam, absolviam, compartilhavam meus sonhos, e eu sentia-me infeliz como se tivesse vencido e depravado meus pais.
     Quando naquele ano, um pouco mais cedo que de costume, meus pais marcaram a data do regresso a Paris, sucedeu que na manhã da partida, como tinham encrespado meus cabelos para mandar-me tirar um retrato, e também haviam me posto com todo o cuidado um chapéu que eu nunca usara antes e uma capa de veludo, minha mãe, depois de me procurar por toda parte, foi encontrar-me em pranto na ladeira contígua a Tansonville, despedindo-me dos pilriteiros, abraçando-lhes os ramos picantes, e, como uma princesa de tragédia a quem pesassem aqueles vãos ornamentos, ingrato para com a importuna mão que atara todos aqueles laços na intenção de me arranjar os cabelos,[3] calcando aos pés meus papelotes arrancados e meu chapéu novo. Minha mãe não se comoveu com minhas lágrimas, mas não pôde reter um grito, à vista do chapéu amassado e da capa perdida. Eu não a ouvia. “Meus pobres pilriteirinhos!”, dizia eu, chorando. “Vocês, só vocês não me dariam pesar, não me obrigariam a partir! Nunca me fizeram mal! Sempre hei de querer bem a vocês.” E enxugando os olhos, eu lhes prometia, para quando fosse grande, não imitar a vida insensata dos outros homens, e, até mesmo em Paris, nos dias de primavera, em vez de ir fazer visitas e ouvir tolices, sair para os campos a ver as primeiras flores de pilriteiro.

continua na página 104...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Paramos um momento - m)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Somente ao final do livro, quase 3 mil páginas adiante, lhe será revelado o sentido do gesto de Gilberte. [n. e.]
[2] A razão da fixidez desse olhar também só será esclarecida no quarto volume da obra. [n. e.]
[3] Citação quase literal de um verso da cena 3 do primeiro ato da peça Phèdre, de Racine. [n. e.]

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