domingo, 17 de novembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Mas quando o cura - j)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(j) 

continuando...

     Mas quando o cura também viera e sua visita interminável havia esgotado as forças de tia Léonie, Françoise saía do quarto atrás de Eulalie e dizia para a enferma:

— Vou deixá-la repousar, a senhora parece muito fatigada.

     E tia Léonie nem sequer respondia, exalando um suspiro que parecia ser o último, de olhos fechados, como que morta. Mas apenas Françoise havia descido, e eis que quatro batidas de sineta, dadas com a máxima violência, retiniam pela casa, e minha tia, sentada no leito, gritava:

— Eulalie já se foi? Pois imagine que eu me esqueci de lhe perguntar se a senhora Goupil tinha chegado à missa antes da elevação. Ande, corra depressa atrás dela!

     Mas Françoise voltava sem ter podido alcançar Eulalie.

— Que contrariedade! — queixava-se minha tia, abanando a cabeça. — A única coisa importante que eu tinha para lhe perguntar! 

     Assim corria a vida para minha tia Léonie, sempre idêntica, na suave uniformidade daquilo que ela chamava, com um desdém afetado e uma ternura profunda, seu “pequeno ramerrão”. Resguardado por todo mundo, não só em casa, onde cada qual, reconhecendo a inutilidade de lhe aconselhar uma vida mais saudável, pouco a pouco se resignava a respeitá-lo, mas até na aldeia, onde, a três quadras de distância, o embalador, tendo de pregar seus caixotes, mandava perguntar a Françoise se minha tia não estava “repousando” — esse ramerrão foi no entanto perturbado uma vez naquele ano. Como um fruto oculto que houvesse chegado à maturidade sem que o percebessem e se houvesse desprendido espontaneamente, ocorreu uma noite o parto da criada de cozinha. Mas suas dores eram intoleráveis e, como não havia parteira em Combray, Françoise teve de partir de madrugada em busca de uma em Thiberzy. Minha tia, com os gritos da criada, não pôde repousar, e Françoise, que voltara muito tarde apesar da curta distância, fez-lhe muita falta. De modo que minha mãe me disse de manhã: “Sobe a ver se tua tia não precisa de alguma coisa”. Entrei na primeira peça e, pela porta aberta, vi minha tia deitada de lado, dormindo: ouvi-a roncar levemente. Ia retirar-me cautelosamente, mas decerto o ruído que fizera tinha interferido no sono dela e lhe “mudara a velocidade”, como se diz dos automóveis, pois a música do ronco interrompeu-se por um segundo e recomeçou em tom mais baixo, depois ela despertou e voltou a meio o rosto, que eu então pude ver; exprimia uma espécie de terror; evidentemente minha tia acabava de ter algum sonho horrível; não podia ver-me da posição em que se achava, e eu permanecia ali, sem saber se devia avançar ou retirar-me; mas já parecia ter voltado ao sentimento da realidade e reconhecera a mentira das visões que a tinham apavorado; um sorriso de alegria, de devota gratidão a Deus, que permite que a vida seja menos cruel que os sonhos, iluminou-lhe flebilmente o rosto e, com o hábito que adquirira de falar consigo mesma a meia-voz quando se julgava sozinha, murmurou: “Louvado seja Deus! O único distúrbio que temos é o parto da criada. Pois não é que eu sonhava que o meu pobre Octave tinha ressuscitado e queria obrigar-me a dar um passeio todos os dias?!”. Sua mão estendeu-se para o rosário que estava na mesinha de cabeceira, mas o sono que recomeçava não lhe deixou forças para atingi-lo: ela tornou a adormecer, tranquilizada, e eu saí do quarto com passos de lá, sem que ela nem ninguém no mundo tivesse jamais sabido o que eu ouvira.
     Quando digo que, fora de acontecimentos muito raros, como aquele parto da criada, o ramerrão de minha tia nunca sofria variação alguma, não me refiro àquelas que, repetindo-se sempre iguais, a intervalos regulares, apenas introduziam no seio da uniformidade uma espécie de uniformidade secundária. Assim é que todos os sábados, como Françoise tivesse de ir de tarde ao mercado de Roussainville-le-Pin, o almoço era servido para todos uma hora mais cedo. E de tal modo se acostumara minha tia com essa infração hebdomadária aos seus hábitos, que tinha tanto apego a esse hábito como aos restantes. Estava tão “rotinada”, como dizia Françoise, que se alguns sábados tivesse de esperar pela hora habitual do almoço, isso a “desequilibraria” tanto como se adiantassem seu almoço para o horário dos sábados em outro dia qualquer. Esse adiantamento do almoço emprestava aliás aos sábados, para nós todos, um aspecto particular, indulgente e bastante simpático. No momento em que habitualmente ainda se dispunha de uma hora para viver, antes do descanso do almoço, sabíamos que, dali a alguns segundos, veríamos chegar umas chicórias prematuras, uma omelete de favor, um bife imerecido. O retorno daquele sábado assimétrico era um desses pequenos acontecimentos internos, locais, quase cívicos, que, nas vidas tranquilas e nas sociedades fechadas, criam uma espécie de elo nacional e se tornam o tema favorito das conversações, dos gracejos, dos relatos deliberadamente exagerados: constituiria um núcleo, já pronto, para um ciclo legendário, se algum de nós tivesse a bossa épica. Já de manhã, antes de nos vestirmos, sem razão, pelo prazer de experimentar a força da solidariedade, dizíamos uns aos outros, com bom humor, com cordialidade, com patriotismo: “Não há tempo a perder, não esqueçamos que hoje é sábado”, enquanto tia Léonie, conferenciando com Françoise e considerando que o dia seria mais longo que de costume, dizia: “Bem que você podia preparar um bom prato de vitela, pois hoje é sábado”. Se às dez e meia algum distraído puxava o relógio, dizendo: “Bem, ainda falta hora e meia para o almoço”, cada qual se sentia encantado em lhe dizer: “Mas que está pensando, não vê que hoje é sábado?”. E a gente ainda ria daquela distração um quarto de hora depois e fazia tenção de ir contá-la a tia Léonie, para a divertir. A própria face do céu parecia mudada. Depois do almoço, o sol, ciente de que era sábado, flanava uma hora a mais pelas alturas, e quando algum de nós, julgando que já era tarde para o passeio, exclamava: “Como?! Apenas duas horas?!”, ao ver passarem as duas badaladas da torre de Santo Hilário (acostumadas a não encontrar ninguém pelas ruas desertas, por causa do almoço ou da sesta, nem pelas margens do rio claro e vivo, abandonado até do pescador, e que passam solitárias pelo céu vazio onde apenas se demoram algumas nuvens preguiçosas), todos em coro lhe respondiam: “O que te engana é que se almoça uma hora mais cedo, bem sabes que hoje é sábado!”. A surpresa de um bárbaro (assim chamávamos a todos aqueles que ignoravam o que tinha de particular o sábado) que, chegando às onze horas para falar com meu pai, nos encontrava à mesa, era das coisas que mais haviam divertido a Françoise em toda a sua vida. Mas se achava impagável que o desconcertado visitante não soubesse que almoçávamos mais cedo nos sábados, ainda mais cômico lhe parecia (mas simpatizando do fundo do coração com aquele chauvinismo estreito) que meu pai não tivesse a ideia de que aquele bárbaro fosse capaz de ignorá-lo, respondendo-lhe, sem outra explicação para seu espanto de já nos encontrar à mesa: “Pois hoje não é sábado?!”. Chegando a este ponto da narrativa ela enxugava lágrimas de hilaridade e, para aumentar o prazer que sentia, prolongava o diálogo, inventava o que tinha respondido o visitante, para quem aquele “sábado” não explicava coisa alguma. E, longe de nos queixarmos de seus acréscimos, esses ainda não nos bastavam e dizíamos: “Mas me parecia que ele também tinha dito outra coisa. Era mais comprido da primeira vez em que você nos contou”. Até minha tia-avó deixava seu crochê e erguia a cabeça, olhando-nos por cima do lornhão.
     O sábado também apresentava a particularidade de que, chegando maio, saíamos após o jantar para ir ao “mês de Maria”. 
     Como às vezes nos encontrávamos com o sr. Vinteuil, muito severo para com a “lamentável negligência dos jovens, tão de acordo com as ideias da nossa época”, minha mãe tinha o máximo cuidado em que tudo estivesse direito em minha indumentária, e depois partíamos para a igreja. Foi no mês de Maria que me lembro de ter começado a amar os pilriteiros. Na igreja, tão santa, mas onde tínhamos o direito de entrar, não só estavam pousados no próprio altar, inseparáveis dos mistérios de cuja celebração participavam, mas também estendiam entre os círios e os vasos sagrados seus ramos atados horizontalmente uns aos outros, em um aparato de festa, e ainda mais embelezados pelos festões de sua folhagem onde estavam semeados em profusão, como na cauda de um vestido de noiva, pequenos tufos de botões de alvura deslumbrante. Embora só me atrevendo a olhá-los a furto, sabia que aqueles pomposos adornos eram bem vivos e que fora a própria natureza que, recortando assim as folhas e acrescentando-lhes o supremo ornamento daqueles botõezinhos brancos, tornara aquela decoração digna do que ao mesmo tempo constituía uma diversão popular e uma solenidade mística. Mais acima se abriam aqui e ali suas corolas com uma descuidosa graça, retendo com tanta negligência, como um último e vaporoso adorno, o ramilhete dos estames, finos como fios da Virgem e que as velavam todas, que eu, seguindo e procurando representar em meu íntimo o gesto de sua eflorescência, imaginava-o como se fosse o volúvel e rápido meneio de cabeça, com um sedutor olhar e os olhos apertados, de uma alva, distraída e vivaz rapariga. O sr. Vinteuil viera com a filha colocar-se a nosso lado. Pertencente a boa família, fora professor de piano das irmãs de minha avó; depois do enviuvar e aproveitando uma herança que lhe coubera, havia-se retirado para as proximidades de Combray; desde então, era frequentemente recebido em nossa casa. Mas como era excessivamente pudibundo, deixou de nos visitar para não se encontrar com Swann, que fizera o que ele chamava um “casamento desigual, ao gosto da época”. Ao saber que ele compunha música, minha mãe lhe dissera por amabilidade que, quando fosse visitá-lo, fazia questão de ouvir qualquer coisa sua. Isso muito teria agradado ao sr. Vinteuil; mas a tais escrúpulos o levavam a polidez e a bondade que, colocando-se sempre no lugar dos outros, temia aborrecê-los e parecer egoísta, se efetuasse ou apenas deixasse transparecer seu desejo. Eu havia acompanhado a meus pais no dia em que foram visitá-lo, mas me permitiram que ficasse fora, e como a casa do sr. Vinteuil, Montjouvain, ficava ao pé de uma elevação coberta de moita, onde me havia escondido, sucedeu-me ficar ao nível do salão do segundo andar, a cinquenta centímetros da janela. Ao lhe anunciarem meus pais, vi o sr. Vinteuil apressar-se a colocar em evidência sobre o piano um caderno de música. Mas, logo que meus pais entraram, retirara-o dali, deixando-o para um canto. Receava decerto supusessem que estava contente de vê-los só para lhes tocar suas composições. E sempre que minha mãe voltava à carga, ele repetia: “Mas eu não sei quem pôs isso aí, não é seu lugar”, e desviava a conversa para outros assuntos, justamente porque eram esses os que menos lhe interessavam. Sua única paixão era a filha, e esta, que tinha o aspecto de um rapaz, parecia tão robusta que não se podia deixar de sorrir ao ver as precauções que o pai tomava com ela, tendo sempre à mão xales sobressalentes para lhe deitar aos ombros. Minha avó nos fazia observar que expressão suave e delicada, quase tímida, perpassava às vezes no olhar daquela menina tão rude, cujo rosto era semeado de sardas. Quando acabava de pronunciar uma palavra, ouvia-a com a mente das pessoas a quem era dirigida, alarmada com as falsas interpretações que pudesse ocasionar, e a gente via iluminarem-se, delinearem-se como por transparência, sob a cara varonil daquele “diabo”, os traços mais finos de uma pobre e sensível moça.  
     Quando, antes de sair da igreja, me ajoelhei ante o altar, senti de súbito, enquanto me erguia, escapar-se um cheiro agridoce de amêndoas, e notei sobre as flores umas manchinhas aloiradas, debaixo das quais imaginei deveria estar oculto aquele cheiro, como, sob as partes tostadas, o sabor de uma frangipana, ou, sob suas sardas, o sabor das faces da srta. Vinteuil. Apesar da silenciosa imobilidade dos pilriteiros, aquele odor intermitente era como um murmúrio de sua intensa vida, com que vibrava o altar, como uma sebe agreste visitada por vivas antenas, nas quais a gente pensava ao ver certos estames quase vermelhos que pareciam haver guardado a virulência primaveril, o poder irritante, de insetos agora metamorfoseados em flores.
     Conversávamos um momento com o sr. Vinteuil, diante do pórtico, ao sair da igreja. Ele metia-se entre os garotos que se batiam na praça, tomava a defesa dos pequenos, passava sermões nos grandes. Se sua filha dizia, com sua voz grossa, como ficava contente de nos ver, logo parecia que, dentro dela, uma irmã mais sensível corava com aquela frase de bom rapaz, estouvado e que poderia dar a entender que ela solicitava ser convidada por nós. O pai lançava-lhe uma capa aos ombros, subiam em um pequeno cabriolé que ela mesma conduzia e regressavam ambos a Montjouvain. Quanto a nós, como no dia seguinte era domingo e só nos levantaríamos para a missa cantada, se fazia luar e a temperatura estivesse leve, em vez de seguir direto para casa, meu pai, por vanglória, obrigava-nos a dar pelo Calvário um longo passeio, que a escassa capacidade de minha mãe para se orientar e reconhecer o caminho a fazia considerar como a proeza de um gênio estratégico. Às vezes íamos até o viaduto, cujos arcos de pedra começavam na estação e representavam para mim o exílio e o desamparo fora do mundo civilizado, porque todos os anos, ao vir de Paris, recomendavam-nos que estivéssemos alertas ao aproximarmo-nos de Combray e não deixássemos passar a estação, que estivéssemos prontos, pois o trem reencetava a marcha dali a dois minutos e partia, pelo viaduto, para além dos países cristãos, de que Combray marcava para mim o extremo limite. Voltávamos pelo bulevar da estação, onde se achavam as mais bonitas vilas da comuna. Em cada jardim o luar, como Hubert Robert,[1] semeava seus truncados degraus de mármore branco, seus repuxos, suas grades entreabertas. Sua luz destruíra o edifício do telégrafo. Apenas subsistia uma coluna meio quebrada, mas que conservava a beleza de uma ruína imortal. Eu arrastava as pernas, a cair de sono, e o cheiro das tílias que embalsamava o ar se me afigurava uma recompensa que só se poderia obter à custa das maiores fadigas e que não valia o trabalho que dava. De pátios muito distantes uns dos outros, os cães, despertados por nossos passos solitários, alternavam os ladridos, como por vezes ainda me acontece ouvi-los de noite, e no meio deles é que deve ter vindo refugiar-se (quando em seu local edificaram a praça pública de Combray) o antigo bulevar da estação, pois, onde quer que me encontre, logo que esses ladridos começam a ecoar e a responder-se, eu o avisto, com suas tílias e suas calçadas batidas de luar.
     De repente meu pai nos fazia parar e perguntava a minha mãe: “Onde estamos?”. Exausta da caminhada, mas orgulhosa dele, minha mãe lhe confessava que absolutamente não o sabia. Ele dava de ombros, a rir. Então, como se o houvesse tirado do bolso do casaco, junto com sua chave, meu pai nos mostrava, erguido diante de nós, o portãozinho dos fundos de nosso quintal, que viera nos esperar, com a esquina da rua Espírito Santo, no fim daqueles caminhos desconhecidos. Minha mãe dizia-lhe com admiração: “Tu és extraordinário!”. E, a partir desse instante, eu não tinha de dar mais um único passo, o chão andava por mim naquele jardim onde, de há muito, a atenção voluntária havia deixado de acompanhar meus atos: o hábito vinha tomar-me em seus braços e carregava-me até minha cama como a uma criancinha.
     Se o dia de sábado, que começava uma hora mais cedo, e em que se via privada de Françoise, passava mais lentamente que os outros para minha tia, ela, no entanto, desde o princípio da semana, esperava-lhe impacientemente o retorno, pois continha toda a novidade e distração que ainda poderia suportar seu físico debilitado e maníaco. Não que ela não aspirasse às vezes a alguma mudança maior, que não tivesse dessas horas de exceção em que se suspira por qualquer coisa diferente do que existe, e em que aqueles a quem a falta de energia ou de imaginação impede de tirar de si mesmos um princípio de renovamento, pedem ao minuto que vem, ao carteiro que bate, que lhes traga algo novo, ainda que seja o pior, uma emoção, uma dor; em que a sensibilidade, que a felicidade fez calar como uma harpa ociosa, quer ressoar sob uma mão, ainda que brutal, ainda que lhe rebente as cordas; em que a vontade, que tão dificilmente conquistou o direito de entregar-se sem obstáculo a seus desejos, a suas penas, deseja entregar as rédeas às mãos de acontecimentos imperiosos, por cruéis que sejam. Sem dúvida, como as forças de minha tia, esgotadas à menor fadiga, só voltavam gota a gota ao seio de seu repouso, o reservatório era muito lento de encher, e passavam-se meses antes que ela alcançasse esse leve excedente que outros derivam para a atividade e que ela era incapaz de saber e de decidir-se como utilizar. Não duvido que então — como o desejo de o substituir por batatas com molho branco acabava afinal nascendo do próprio prazer que lhe causava o aparecimento cotidiano do purê que, no entanto, não “cansava” — ela tirasse, do acúmulo daqueles dias monótonos a que tanto se afeiçoara, a expectativa de um cataclismo doméstico limitado à duração de um momento, mas que a forçaria a efetuar de uma vez por todas umas dessas mudanças que reconhecia como salutares e a que não podia se decidir por si mesma. Ela nos amava verdadeiramente, teria prazer em chorar-nos; e se chegasse em um momento em que ela se achasse bem e não estivesse com suores, a notícia de que a casa estava presa das chamas e tínhamos todos perecido e em breve não restaria pedra sobre pedra, mas que lhe desse tempo de escapar sem pressa, desde que se levantasse em seguida, deve muitas vezes ter alimentado suas esperanças, pois reunia — às vantagens secundárias de a fazer saborear em um longo desgosto sua ternura por nós e de ser a estupefação da aldeia, conduzindo as cerimônias fúnebres, corajosa e acabrunhada, moribunda e de pé — a vantagem mais preciosa de forçá-la no momento exato, sem tempo a perder, sem possibilidade de enervantes hesitações, a ir passar o verão em sua linda granja de Mirougram, onde havia uma cascata. Como jamais sobreviera nenhum acontecimento desse gênero, cujo perfeito êxito certamente meditava quando estava a sós, absorvida em um de seus inumeráveis jogos de paciência (e que a teria desesperado ao primeiro indício de realização, ao primeiro desses pequenos fatos imprevistos, dessa palavra que anuncia uma má notícia e cujo acento jamais se pode esquecer, de tudo o que traz a marca da morte real, tão diferente de sua possibilidade lógica e abstrata) ela se limitava, para tornar às vezes sua vida mais interessante, a introduzir-lhe peripécias imaginárias, que acompanhava apaixonadamente. Aprazia-se em supor de um momento para outro que Françoise a andava roubando, que ela recorria à astúcia para averiguá-lo, que a apanhava em flagrante; habituada, quando jogava a sós uma partida de cartas, a fazer ao mesmo tempo seu jogo e o do adversário, murmurava para si mesma as desculpas embaraçadas de Françoise e rebatia-as com tanto ardor e indignação que qualquer de nós, ao entrar em tais momentos, a encontrava banhada em suor, os olhos fuzilantes, os cabelos postiços fora do lugar, entremostrando seu crânio calvo. Talvez Françoise tivesse ouvido às vezes, da sala próxima, os mordentes sarcasmos que lhe eram dirigidos e cuja invenção não teria aliviado suficientemente minha tia se permanecessem em estado puramente imaterial, se ela não lhes tivesse dado mais realidade, murmurando-os a meia-voz. Às vezes, nem mesmo esse “espetáculo num leito” bastava a minha tia;[95] ela queria ver representadas suas peças. Então, em algum domingo, com todas as portas misteriosamente fechadas, confiava a Eulalie suas dúvidas quanto à probidade de Françoise, sua intenção de desfazer-se dela, e, de outra feita, confessava a Françoise suas suspeitas da infidelidade de Eulalie, a quem em breve fecharia a porta; alguns dias depois estava desgostosa de sua confidente da véspera e acomodada com o traidor, e os papéis se trocariam na próxima representação. Mas as suspeitas que às vezes lhe inspirava Eulalie não passavam de fogo de palha e logo se esvaíam por falta de alimento, pois Eulalie não vivia na casa. Não se dava o mesmo no caso de Françoise, que tia Léonie sentia perpetuamente sob o mesmo teto, sem que, por medo de apanhar um resfriado caso saísse do leito, se atrevesse a descer à cozinha para verificar se suas suspeitas eram fundadas. Pouco a pouco seu espírito não teve mais ocupações que adivinhar a cada momento o que poderia estar fazendo Françoise e o que pretendia ocultar-lhe. Observava as mais furtivas expressões fisionômicas da outra, uma contradição em suas palavras, um desejo que ela parecia dissimular. E mostrava-lhe que a tinha desmascarado, com uma única palavra que fazia Françoise empalidecer e que tia Léonie parecia divertir-se cruelmente em cravar no coração da infeliz. E, no domingo seguinte, uma revelação de Eulalie — como essas descobertas que abrem de súbito um insuspeitado campo a uma ciência nova que até então se arrastava na rotina — vinha provar a minha tia que ela estava muito além da verdade em suas hipóteses.

— Mas Françoise é quem deve saber… — dizia Eulalie.
— Agora que a senhora lhe deu um carro.
— Que lhe dei um carro! — exclamava minha tia.
— Ah!, não sei, eu pensava… mas como a via passar agora de caleche, orgulhosa como Artaban,[2] para ir ao mercado de Roussainville… Eu pensava que tinha sido a senhora que… 

     Pouco a pouco Françoise e minha tia, como a caça e o caçador, não faziam mais que se pôr em guarda contra suas recíprocas artimanhas. Minha mãe receava que Françoise criasse um verdadeiro ódio a tia Léonie, que a ofendia o mais duramente possível. Em todo caso, Françoise sondava cada vez mais as mínimas palavras, os mínimos gestos de minha tia, com uma atenção extraordinária. Quando tinha de lhe pedir alguma coisa, hesitava longamente quanto à maneira como o devia fazer. E, feito o pedido, observava-a furtivamente, procurando adivinhar por seu rosto o que ela havia pensado e o que decidira. E assim — ao passo que algum artista, ao ler memórias do século XVII, e no desejo de se aproximar do Rei Sol, se julga no bom caminho forjando para si mesmo uma genealogia que o faça descender de alguma família histórica ou mantendo correspondência com alguns dos soberanos atuais da Europa e desse modo volta as costas justamente para aquilo que ele erroneamente procura sob formas idênticas e por conseguinte sem vida —, eis que uma velha dama de província que não fazia senão obedecer sinceramente a irresistíveis manias e a uma malevolência filha da ociosidade, via agora, sem jamais ter pensado em Luís XIV, as mais insignificantes ocupações de sua vida diária, concernentes a seu despertar, a seu almoço, a seu repouso, assumirem, por sua singularidade despótica, um pouco do interesse do que Saint-Simon denominava a “mecânica” da vida em Versalhes, e podia crer também que seus silêncios, uma nuança de bom humor ou de altivez em sua fisionomia, eram da parte de Françoise objeto de um comentário tão apaixonado, tão temeroso como o eram o silêncio, o bom humor, a altaneria do Rei quando um cortesão, ou até um grão-senhor, lhe havia posto em mãos um memorial, na volta de alguma alameda de Versalhes.

continua na página 88...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Mas quando o cura - j)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Pintor, já citado anteriormente, que utilizava em suas telas imagens de fontes. [n. e.]
[2] Herói bastante orgulhoso da peça Cléopâtre (1647-58), de La Calprenède. [n. e.]

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