quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Jantei com Legrandin no terraço - l)

 em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(l) 

continuando...

     Jantei com Legrandin no terraço; fazia luar: “Há uma bela qualidade de silêncio, não é?”, disse-me ele. “Aos corações feridos, como o meu, um romancista que lerá mais tarde julga que só convém a sombra e o silêncio.[1] Olhe, meu filho, chega na vida uma hora, de que ainda está muito longe, em que os olhos não toleram mais que uma luz, a que uma linda noite como esta prepara e destila na escuridão, em que os ouvidos já não podem escutar outra música a não ser a que executa o luar na flauta do silêncio.” Eu escutava as palavras do sr. Legrandin, que sempre me pareciam tão agradáveis; mas perturbado com a lembrança de uma mulher a quem vira recentemente pela primeira vez, e pensando, agora que sabia estar Legrandin ligado a várias personalidades aristocráticas dos arredores, que talvez ele conhecesse aquela, tomei-me de coragem e disse-lhe: “Será que o senhor não conhece a… as castelãs de Guermantes?”, e feliz também porque, pronunciando esse nome, adquiria sobre o mesmo uma espécie de poder, pelo simples fato de o arrancar a meu sonho e dar-lhe uma existência objetiva e sonora.
     Mas, a esse nome de Guermantes, vi fixar-se no meio dos olhos azuis de nosso amigo um pontinho escuro, como se acabassem de ser varados por uma agulha invisível, ao passo que o resto da pupila reagia segregando ondas de azul. Suas olheiras enegreceram, aprofundaram-se. E sua boca vincada de um sulco amargo, dominando-se mais depressa, sorriu, enquanto o olhar permanecia doloroso, como o de um mártir cujo corpo se acha crivado de flechas: “Não, eu não as conheço”, disse ele, mas em vez de dar a uma informação tão simples, a uma resposta tão pouco surpreendente o tom natural e comum que convinha, pronunciou-a acentuando as palavras, inclinando-se, sacudindo a cabeça, e ao mesmo tempo com a insistência que se dá, para merecer crédito, a uma afirmação inverossímil — como se o fato de não conhecer os Guermantes só pudesse ser efeito de um singular acaso —, e também com a ênfase de quem, não podendo calar uma situação que lhe é penosa, prefere proclamá-la para dar aos outros a ideia de que a confissão que faz não lhe causa nenhum embaraço, e é fácil, agradável e espontânea, e que a própria situação — a falta de relações com os Guermantes — bem poderia ser, não sofrida, mas imposta por ele, e resultar de alguma tradição de família, princípio de moral ou voto místico que expressamente lhe proibisse a frequentação dos Guermantes.[2] “Não”, tornou ele, explicando com suas palavras sua própria entonação, “não, eu não a conheço, nunca o quis, sempre tratei de resguardar minha completa independência; no fundo, você bem sabe que sou um jacobino. Muita gente interveio, dizendo que eu fazia mal em não ir a Guermantes, dava assim a impressão de um casmurro, de um velho urso. Ora, isso não é fama que me assuste, pois é bem verdade! Afinal, só amo neste mundo a algumas igrejas, uns dois ou três livros, uns poucos quadros mais e o luar, quando a brisa de sua juventude traz até mim o cheiro dos jardins que minhas velhas pupilas já não podem distinguir”. Eu não compreendia muito bem por que seria preciso alardear independência para não ir à casa de pessoas desconhecidas e por que poderia isso dar à gente um ar de selvagem ou de urso. Mas bem compreendia que Legrandin não era inteiramente verídico quando dizia só amar as igrejas, o luar e a juventude; ele amava, e muito, os senhores dos castelos e sentia-se, em sua presença, tão temeroso de lhes desagradar, que não se atrevia a lhes deixar ver que tinha como amigos a burgueses, filhos de notários ou de corretores, preferindo, se a verdade viesse a ser descoberta, que o fosse em sua ausência, longe dele e “por omissão”; ele era esnobe. Por certo, nada dizia de tudo isso na linguagem de que meus pais e eu tanto gostávamos. E se eu perguntava: “Conhece os Guermantes?”, o causeur Legrandin respondia: “Não, nunca quis conhecê-los”. Infelizmente respondia tarde, pois um outro Legrandin que ele ocultava cuidadosamente no fundo de si mesmo e que não mostrava nunca, porque esse Legrandin sabia sobre o nosso, sobre o seu esnobismo, histórias comprometedoras, um outro Legrandin já tinha respondido com a expressão do olhar, com o ricto da boca, com a gravidade excessiva do tom da resposta, com as mil flechas de que nosso Legrandin se vira em um instante crivado e desfalecente, como um são Sebastião do esnobismo: “Ah!, que mal me faz! Eu não conheço os Guermantes, não me venha despertar a grande dor de minha vida”. E como esse Legrandin indiscreto, esse Legrandin falastrão, se não tinha a bonita linguagem do outro, tinha o verbo infinitamente mais pronto, composto do que se chama “reflexos”, quando o Legrandin “bom conversador” queria impor-lhe silêncio, o outro já tinha falado e, por mais que nosso amigo se desolasse com a má impressão que as revelações de seu alter ego deviam causar, o mais que podia fazer era atenuá-la.
     Mas isso não queria dizer que o sr. Legrandin não fosse sincero quando trovejava contra os esnobes. Ele não podia saber, pelo menos por si mesmo, que era esnobe, pois nós só conhecemos as paixões dos outros, e o que chegamos a saber das nossas apenas são eles que nos vão dizer. Sobre nós, elas só agem de forma secundária, pela imaginação que substitui os primeiros móveis por móveis de reserva mais decentes. Jamais o esnobismo de Legrandin lhe aconselhava que fosse visitar seguidamente a uma duquesa. Mas encarregava a imaginação de Legrandin de lhe apresentar essa duquesa como que ataviada de todas as graças. Legrandin se aproximava então da duquesa, pensando ceder a essa atração do espírito e da virtude que os infames esnobes ignoram. Só os outros sabiam que ele era esnobe; pois graças à incapacidade em que estavam de compreender o trabalho intermediário de sua imaginação, viam em face uma da outra a atividade mundana de Legrandin e sua causa primeira.
     Agora, em casa, já não tínhamos ilusões quanto ao sr. Legrandin e nossos encontros haviam se espaçado muito. Minha mãe divertia-se imenso cada vez que apanhava Legrandin em flagrante delito do pecado que ele não confessava e que continuava a chamar o pecado sem remissão, o esnobismo. Meu pai, esse, não podia tomar com tanto desprendimento e bom humor os desdéns de Legrandin; e, quando se pensara um ano em mandar-me passar as férias de verão em Balbec com minha avó, ele disse: “Preciso absolutamente comunicar a Legrandin essas férias em Balbec, para ver se ele se dispõe a apresentá-los à irmã. Com certeza já não se lembra de ter-nos dito que ela morava a dois quilômetros da praia”. Minha avó, que achava que nos banhos de mar a gente devia ficar da manhã à tarde na praia respirando o sal, não travando relações com ninguém, porque as visitas e passeios são outros tantos roubos que fazemos do ar marinho, pedia, ao contrário, que não falássemos de nossos projetos a Legrandin, pois já via sua irmã, a sra. de Cambremer, desembarcando no hotel no momento em que íamos para a pesca e forçando-nos a ficar encerrados para recebê-la. Mas mamãe ria de seus temores, pensando que o perigo não seria tão ameaçador e Legrandin não se mostraria tão solícito em apresentar-nos a sua irmã.[3] Ora, sem que se tivesse necessidade de falar em Balbec, foi ele próprio, Legrandin, que, sem desconfiar que tivéssemos jamais a intenção de ir para aquelas bandas, veio colocar-se no laço uma tarde em que o encontramos à margem do Vivonne.

— Há nas nuvens esta tarde violetas e azuis muito lindos, não é, companheiro? — disse ele a meu pai. — Um azul sobretudo mais floral que aéreo, um azul de cinerária, que surpreende no céu. E aquela nuvenzinha cor-de-rosa não tem também um tom de flor, de cravo ou de hidrângea? Apenas na Mancha, entre a Normandia e a Bretanha, pude fazer mais ricas observações sobre essa espécie de reino vegetal da atmosfera. Lá perto de Balbec, perto desses lugares selvagens, há uma pequena enseada de uma doçura encantadora, em que os poentes da terra de Auge, os poentes vermelhos e ouro que aliás estou longe de desdenhar, se apresentam sem caráter, insignificantes; mas naquela atmosfera úmida e suave se abrem à tarde, em alguns instantes, desses buquês celestes, azuis e róseos, que são incomparáveis e muitas vezes levam horas para se fanarem. Outras vezes desfolham-se em seguida e então é ainda mais belo ver o céu inteiro juncado de inúmeras pétalas sulfúreas ou róseas. Naquela enseada, como de opala, ainda mais suaves parecem as praias de ouro, por se acharem ligadas como loiras Andrômedas àqueles terríveis rochedos das costas vizinhas, àquelas ribas fúnebres,[4] famosas por tantos naufrágios, e onde todos os invernos tantas barcas soçobram aos perigos do mar. Balbec! A mais antiga ossamenta geológica do solo de França, verdadeiramente Ar-mor, o Mar, o fim da terra, a região maldita que Anatole France — um encantador que aqui o nosso amiguinho deveria ler — tão bem descreveu, sob suas brumas eternas, como o verdadeiro país dos cimérios, da Odisseia.[5] Principalmente de Balbec, onde já estão construindo hotéis, superpostos ao solo antigo e bom, que em nada alteram, que delícia excursionar, a dois passos, por aquelas regiões primitivas e tão belas!
— Ah! Será que o senhor não conhece alguém em Balbec? — disse meu pai. — Justamente esse pequeno deve ir passar dois meses lá com a avó e talvez com minha mulher.

     Legrandin, colhido de improviso pela pergunta em um momento em que tinha os olhos fitos em meu pai, não pôde desviá-los, mas, fixando-os de segundo a segundo com maior intensidade — e sem deixar de sorrir tristemente — nos olhos de seu interlocutor, com um ar de amizade e franqueza e de que não teme olhá-lo em face, pareceu atravessar-lhe o rosto, como que de súbito transparente, e ver naquele momento, além dele, uma nuvem vivamente colorida, que lhe criava um álibi mental e lhe permitiria provar que, no momento em que fora inquirido se não conhecia alguém em Balbec, estava pensando noutra coisa e não ouvira a pergunta. Habitualmente, tais olhares fazem o interlocutor dizer: “Mas em que está pensando o senhor?”. No entanto meu pai, curioso, irritado e cruel, insistiu:

— O senhor não tem amigos em Balbec, visto que conhece tão bem o lugar?

     Em um último e desesperado esforço, o sorridente olhar de Legrandin atingiu seu máximo de ternura, de vago, de sinceridade e de distração. Mas, considerando sem dúvida que agora não poderia deixar de responder, disse-nos:

— Tenho amigos por toda parte onde haja grupos de árvores feridas, mas não vencidas, que se aproximaram para implorar juntas, com uma obstinação patética, um céu inclemente que não se compadece delas. 
— Não era isso que eu queria dizer — interrompeu meu pai, tão obstinado como as árvores e tão impiedoso como o céu. — Eu perguntava para o caso em que acontecesse qualquer coisa a minha sogra e tivesse ela a necessidade de não se sentir lá como em terra estranha, se o senhor não conhecia alguém em Balbec.
— Lá, como em toda parte, conheço todo mundo e não conheço ninguém — respondeu Legrandin, que não se rendia tão depressa —, muito às coisas e muito pouco às pessoas. Mas lá as próprias coisas parecem pessoas, pessoas raras, de uma essência delicada e que a vida teria decepcionado. Ora é um castelo que encontramos na costa, junto ao caminho, parado ali para confrontar sua pena com a noite ainda rósea onde sobe a lua de ouro e cuja flâmula e cores ostentam em seus mastros os barcos que regressam, estriando as águas matizadas; ora é uma simples casa solitária, feia até, de aspecto tímido mas romanesco, que oculta a todos os olhos algum segredo imperecível de felicidade e encantamento. Essa terra sem verdade — acrescentou com uma delicadeza maquiavélica —, essa terra de ficção, eu não a recomendaria para o meu amiguinho, já tão dado à tristeza e com o coração tão predisposto. Os climas de confidência amorosa e de lamento inútil podem convir ao velho desabusado que eu sou, mas são sempre insalubres para um temperamento ainda em formação. Acredite-me — tornou ele com insistência —, as águas daquela baía, já metade bretã, podem exercer uma ação sedativa, aliás discutível, num coração que já não é intato como o meu, num coração cuja lesão não é mais compensada. Elas são contraindicadas na sua idade, meu menino. Boa-noite, vizinhos — acrescentou, deixando-nos com a brusquidão evasiva que lhe era habitual, e, voltando-se para nós com o dedo erguido do médico, resumiu sua consulta, gritando-nos: — Nada de Balbec antes dos cinquenta anos, e ainda assim depende do estado do coração. 

     Meu pai martelou no assunto em nossos encontros ulteriores, torturou-o com perguntas — tudo inútil: como aquele falsário erudito que empregava no fabrico de palimpsestos apócrifos um labor e uma ciência cuja centésima parte bastaria para lhe assegurar uma situação mais lucrativa, mas honrada,[6] o sr. Legrandin, se continuássemos a insistir, terminaria por edificar toda uma ética paisagística e uma geografia celeste da Baixa Normandia, antes que confessar que a dois quilômetros de Balbec residia sua própria irmã e ver-se obrigado a oferecer-nos uma carta de apresentação, coisa que não o assustaria tanto se tivesse certeza — como devia ter, dada a experiência que tinha do caráter de minha avó — de que não iríamos utilizá-la.
     Sempre voltávamos cedo de nossos passeios, para ter tempo de fazer uma visita a tia Léonie antes do jantar. No começo da estação em que os dias acabam cedo, ao chegarmos à rua do Espírito Santo, ainda havia um reflexo do poente nas vidraças da casa e uma faixa de púrpura ao fundo dos bosques do Calvário, que ia refletir-se mais além, no lago; púrpura que, acompanhada muitas vezes de um frio bastante vivo, se associava, em meu espírito, à púrpura do fogo onde se assava um frango, que me traria, depois do prazer poético do passeio, o prazer da gula, do calor e do repouso. No verão, pelo contrário, quando entrávamos, o sol ainda não se deitara e, durante nossa visita, sua luz que declinava e atingia a janela passava entre as grandes cortinas e os umbrais, dividida, ramificada, filtrada, e, incrustando de partículas de ouro a madeira de limoeiro da cômoda, iluminava obliquamente o quarto com a delicadeza que tem nos bosques, sob as árvores. Mas certos dias muito raros, ao regressarmos, fazia muito tempo que a cômoda perdera suas incrustações momentâneas e, ao chegarmos à rua do Espírito Santo, não havia mais nenhum reflexo de poente nas vidraças, e o lago ao pé do Calvário perdera sua púrpura, e às vezes era já de uma cor opalina, e um longo raio de lua, que se ia alargando e estriando com todas as rugas da água, atravessava-o de um lado a outro. E então, aproximando-nos de casa, avistávamos um vulto à porta, e mamãe me dizia:

— Meu Deus! Lá está Françoise à nossa espera; tua tia está alarmada; é que voltamos muito tarde.

     E sem perder tempo em desembaraçar-nos de nossos abrigos, subíamos em seguida ao quarto de tia Léonie para tranquilizá-la e mostrar-lhe que, contrariamente ao que imaginara, nada nos tinha acontecido, mas que apenas fôramos para o “lado de Guermantes” e — ora essa! — bem sabia ela que, quando dávamos esse passeio, não se podia ter certeza da hora do regresso.

— Eu não lhe dizia, Françoise, que eles deviam ter ido para o lado de Guermantes?! — exclamava minha tia. — Meu Deus! Devem estar com uma fome! E o seu carneiro que com certeza já está torrado, com todo esse tempo que esperou. Também, é hora que se chegue?! Como, então, vocês foram para o lado de Guermantes?
— Mas eu julgava que você o sabia, Léonie — dizia mamãe. — Pensava que Françoise nos tivesse visto sair pelo portãozinho da horta.

     Pois havia nas vizinhanças de Combray dois “lados” para os passeios, e tão opostos que não saíamos com efeito pelo mesmo portão, quando queríamos ir para um lado ou outro: o lado de Méséglise-la-Vineuse, também chamado o lado de Swann, porque se passava pela propriedade do sr. Swann quando íamos para aquelas bandas, e o lado de Guermantes.[7] De Méséglise, a falar a verdade, jamais lhe conheci senão o “lado” e uma gente estranha que nos domingos vinha passear em Combray, gente que, desta vez, nenhum de nós, nem sequer tia Léonie, “conhecia”, e que por isso era considerada “gente que devia ter vindo de Méséglise”. De Guermantes, eu viria um dia a saber muito mais, mas isso dali a anos e durante toda a minha adolescência, se Méséglise era para mim qualquer coisa de inacessível como o horizonte, oculto à vista, por mais longe que se fosse, pelos acidentes de um terreno que já não se assemelhava ao de Combray, Guermantes sempre me apareceu como um termo antes ideal que real de seu próprio “lado”, uma espécie de expressão geográfica abstrata como a linha do equador, como os polos, como o Oriente. Assim, “tomar por Guermantes” para ir a Méséglise, ou o contrário, parecia-me uma expressão tão sem sentido como tomar por leste para ir a oeste. Visto que meu pai falava sempre do lado de Méséglise como da mais bela vista da planície que conhecia e do lado de Guermantes como da paisagem típica de rio, eu lhes dava, concebendo-os assim como duas entidades, essa coesão e unidade que só pertencem às criações de nosso espírito; a mínima parcela de cada um me parecia preciosa e cheia de sua peculiar excelência, ao passo que, em comparação com eles, antes que se chegasse ao solo sagrado de um ou outro, os caminhos em cujo fim se achavam pousados como o ideal da vista de planície e o ideal da paisagem de rio não valiam a pena ser vistos, como para o espectador apaixonado de arte dramática as ruas que conduzem ao teatro. Mas sobretudo eu punha entre ambos, muito mais que suas distâncias quilométricas, a distância que havia nas duas partes de meu cérebro com que pensava neles, uma dessas distâncias internas do espírito que não só afastam as coisas, mas as separam e colocam em planos diversos. E essa demarcação ainda se tornava mais absoluta, porque aquele hábito que tínhamos de nunca ir para os dois lados no mesmo dia, em um único passeio, mas uma vez do lado de Méséglise, outra vez do lado de Guermantes, encerrava-os por assim dizer longe um do outro, e sem poder se conhecer, nos vasos herméticos e incomunicáveis de tardes diferentes. 
     Quando queríamos ir para o lado de Méséglise, saíamos (não muito cedo, e mesmo que o céu estivesse nublado, porque o passeio não era muito longo e não nos afastava muito) como para ir a qualquer parte, pela porta principal da casa de minha tia, na rua do Espírito Santo. Éramos saudados pelo armeiro, púnhamos as cartas na caixa, dizíamos de passagem a Théodore, da parte de Françoise, que estava lhe faltando azeite ou café, e saíamos da cidade pela estrada que margeava a cerca branca do parque do sr. Swann. Antes de lá chegar, encontrávamos pelo caminho, vindo ao encontro dos estranhos, o cheiro de seus lilases. Eles próprios, dentre os coraçõezinhos verdes e frescos de suas folhas, erguiam curiosamente acima da cerca do parque seus penachos de plumas brancas e malvas, rebrilhantes, embora na sombra, do sol em que se haviam banhado. Alguns, meio ocultos pela pequena casa de telhas chamada a casa dos Arqueiros, onde morava o guarda, assomavam por cima da frontaria gótica seu róseo minarete. As Ninfas da primavera pareceriam vulgares perto daquelas jovens huris que guardavam naquele jardim francês os tons vivos e puros das miniaturas da Pérsia. Apesar de meu desejo de enlaçar-lhes o talhe flexível e acercar de minha face os estrelados bucles de suas cabecinhas cheirosas, seguíamos adiante sem parar, pois meus pais não frequentavam Tansonville desde o casamento de Swann, e, para não parecer que estávamos a espiar para dentro do parque, em vez de tomar o caminho que margina seu cercado e que vai dar diretamente nos campos, tomávamos outro que ali também vai ter, mas obliquamente, e nos fazia desembocar muito longe. Um dia, disse meu avô a meu pai:

— Não te lembras que Swann nos disse ontem que, como a mulher e a filha partiam para Reims, ele aproveitaria a ocasião para ir passar vinte e quatro horas em Paris? Visto que essas damas não estão aqui, poderíamos seguir ao longo do parque, o que nos abreviaria muito o caminho. 

continua na página 98...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Jantei com Legrandin no terraço - l)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Alusão à epígrafe de Balzac ao romance Um médico de aldeia: “Aos corações feridos, sombra e silêncio”. [n. e.]
[2] Muito mais tarde, quando o herói conseguir enfim ter acesso ao salão de um dos Guermantes, ele poderá contemplar o deslumbre mundano de Legrandin, que, coincidentemente, consegue também entrar em contato com a família. [n. e.]
[3] Avó e neto partirão, efetivamente, para Balbec sem a recomendação de Legrandin. Já na segunda estada nessa praia, será a família Cambremer que virá em visita solícita ao herói. [n. e.]
[4] Conforme a lenda, Andrômeda, gabando-se de sua beleza, que, de acordo com ela mesma, era superior à das Nereidas, recebe punição de Netuno, que, despertando um monstro, traz a desgraça ao lugar. O oráculo ordena a rendição de Andrômeda ao monstro, e ela só será salva por Perseu, que petrifica o monstro utilizando a cabeça de Medusa. [n. e.]
[5] Povo nômade encontrado por Ulisses no décimo primeiro canto da Odisseia. No livro III, capítulo V, de Pierre Nozière, o herói criado por Anatole France lê justamente essa passagem da Odisseia. [n. e.]
[6] Alusão provável a Vrain-Lucas, que vendera, a partir de 1861, toda uma série de supostos manuscritos redigidos em francês antigo ao matemático Michel Chasles. Alphonse Daudet, escritor e pai de amigos de Proust, trata do episódio em seu livro L’Immortel, que Proust conhecia. [n. e.]
[7] A abertura da grande “sinfonia” do tempo perdido conta com esses dois lados — o caminho de Swann e o caminho de Guermantes —, que, como motivos musicais, voltarão nas últimas páginas do livro, fechando magistralmente o longo percurso de busca do herói. [n. e.]

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