em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
II(l) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
combray
continuando...
Jantei com Legrandin no terraço; fazia luar: “Há uma bela qualidade de silêncio, não é?”, disse-me ele. “Aos corações feridos, como o meu, um romancista que lerá mais tarde julga que só convém a sombra e o silêncio.[1] Olhe, meu filho, chega na vida uma hora, de que ainda está muito longe, em que os olhos não toleram mais que uma luz, a que uma linda noite como esta prepara e destila na escuridão, em que os ouvidos já não podem escutar outra música a não ser a que executa o luar na flauta do silêncio.” Eu escutava as palavras do sr. Legrandin, que sempre me pareciam tão agradáveis; mas perturbado com a lembrança de uma mulher a quem vira recentemente pela primeira vez, e pensando, agora que sabia estar Legrandin ligado a várias personalidades aristocráticas dos arredores, que talvez ele conhecesse aquela, tomei-me de coragem e disse-lhe: “Será que o senhor não conhece a… as castelãs de Guermantes?”, e feliz também porque, pronunciando esse nome, adquiria sobre o mesmo uma espécie de poder, pelo simples fato de o arrancar a meu sonho e dar-lhe uma existência objetiva e sonora.
Mas, a esse nome de Guermantes, vi fixar-se no meio dos olhos azuis de nosso
amigo um pontinho escuro, como se acabassem de ser varados por uma agulha
invisível, ao passo que o resto da pupila reagia segregando ondas de azul. Suas olheiras
enegreceram, aprofundaram-se. E sua boca vincada de um sulco amargo, dominando-se
mais depressa, sorriu, enquanto o olhar permanecia doloroso, como o de um mártir
cujo corpo se acha crivado de flechas: “Não, eu não as conheço”, disse ele, mas em vez
de dar a uma informação tão simples, a uma resposta tão pouco surpreendente o tom
natural e comum que convinha, pronunciou-a acentuando as palavras, inclinando-se,
sacudindo a cabeça, e ao mesmo tempo com a insistência que se dá, para merecer crédito,
a uma afirmação inverossímil — como se o fato de não conhecer os Guermantes só
pudesse ser efeito de um singular acaso —, e também com a ênfase de quem, não
podendo calar uma situação que lhe é penosa, prefere proclamá-la para dar aos outros a
ideia de que a confissão que faz não lhe causa nenhum embaraço, e é fácil, agradável e
espontânea, e que a própria situação — a falta de relações com os Guermantes — bem
poderia ser, não sofrida, mas imposta por ele, e resultar de alguma tradição de família,
princípio de moral ou voto místico que expressamente lhe proibisse a frequentação dos
Guermantes.[2] “Não”, tornou ele, explicando com suas palavras sua própria
entonação, “não, eu não a conheço, nunca o quis, sempre tratei de resguardar minha
completa independência; no fundo, você bem sabe que sou um jacobino. Muita gente
interveio, dizendo que eu fazia mal em não ir a Guermantes, dava assim a impressão de
um casmurro, de um velho urso. Ora, isso não é fama que me assuste, pois é bem
verdade! Afinal, só amo neste mundo a algumas igrejas, uns dois ou três livros, uns
poucos quadros mais e o luar, quando a brisa de sua juventude traz até mim o cheiro
dos jardins que minhas velhas pupilas já não podem distinguir”. Eu não compreendia
muito bem por que seria preciso alardear independência para não ir à casa de pessoas
desconhecidas e por que poderia isso dar à gente um ar de selvagem ou de urso. Mas
bem compreendia que Legrandin não era inteiramente verídico quando dizia só amar as
igrejas, o luar e a juventude; ele amava, e muito, os senhores dos castelos e sentia-se, em
sua presença, tão temeroso de lhes desagradar, que não se atrevia a lhes deixar ver que
tinha como amigos a burgueses, filhos de notários ou de corretores, preferindo, se a
verdade viesse a ser descoberta, que o fosse em sua ausência, longe dele e “por
omissão”; ele era esnobe. Por certo, nada dizia de tudo isso na linguagem de que meus
pais e eu tanto gostávamos. E se eu perguntava: “Conhece os Guermantes?”, o causeur
Legrandin respondia: “Não, nunca quis conhecê-los”. Infelizmente respondia tarde,
pois um outro Legrandin que ele ocultava cuidadosamente no fundo de si mesmo e que
não mostrava nunca, porque esse Legrandin sabia sobre o nosso, sobre o seu
esnobismo, histórias comprometedoras, um outro Legrandin já tinha respondido com a
expressão do olhar, com o ricto da boca, com a gravidade excessiva do tom da resposta,
com as mil flechas de que nosso Legrandin se vira em um instante crivado e
desfalecente, como um são Sebastião do esnobismo: “Ah!, que mal me faz! Eu não
conheço os Guermantes, não me venha despertar a grande dor de minha vida”. E como
esse Legrandin indiscreto, esse Legrandin falastrão, se não tinha a bonita linguagem do
outro, tinha o verbo infinitamente mais pronto, composto do que se chama “reflexos”,
quando o Legrandin “bom conversador” queria impor-lhe silêncio, o outro já tinha
falado e, por mais que nosso amigo se desolasse com a má impressão que as revelações
de seu alter ego deviam causar, o mais que podia fazer era atenuá-la.
Mas isso não queria dizer que o sr. Legrandin não fosse sincero quando trovejava
contra os esnobes. Ele não podia saber, pelo menos por si mesmo, que era esnobe, pois
nós só conhecemos as paixões dos outros, e o que chegamos a saber das nossas apenas
são eles que nos vão dizer. Sobre nós, elas só agem de forma secundária, pela
imaginação que substitui os primeiros móveis por móveis de reserva mais decentes.
Jamais o esnobismo de Legrandin lhe aconselhava que fosse visitar seguidamente a uma
duquesa. Mas encarregava a imaginação de Legrandin de lhe apresentar essa duquesa
como que ataviada de todas as graças. Legrandin se aproximava então da duquesa,
pensando ceder a essa atração do espírito e da virtude que os infames esnobes ignoram.
Só os outros sabiam que ele era esnobe; pois graças à incapacidade em que estavam de
compreender o trabalho intermediário de sua imaginação, viam em face uma da outra a
atividade mundana de Legrandin e sua causa primeira.
Agora, em casa, já não tínhamos ilusões quanto ao sr. Legrandin e nossos encontros
haviam se espaçado muito. Minha mãe divertia-se imenso cada vez que apanhava
Legrandin em flagrante delito do pecado que ele não confessava e que continuava a
chamar o pecado sem remissão, o esnobismo. Meu pai, esse, não podia tomar com tanto
desprendimento e bom humor os desdéns de Legrandin; e, quando se pensara um ano
em mandar-me passar as férias de verão em Balbec com minha avó, ele disse: “Preciso
absolutamente comunicar a Legrandin essas férias em Balbec, para ver se ele se dispõe a
apresentá-los à irmã. Com certeza já não se lembra de ter-nos dito que ela morava a dois
quilômetros da praia”. Minha avó, que achava que nos banhos de mar a gente devia
ficar da manhã à tarde na praia respirando o sal, não travando relações com ninguém,
porque as visitas e passeios são outros tantos roubos que fazemos do ar marinho, pedia,
ao contrário, que não falássemos de nossos projetos a Legrandin, pois já via sua irmã, a
sra. de Cambremer, desembarcando no hotel no momento em que íamos para a pesca e
forçando-nos a ficar encerrados para recebê-la. Mas mamãe ria de seus temores,
pensando que o perigo não seria tão ameaçador e Legrandin não se mostraria tão solícito
em apresentar-nos a sua irmã.[3] Ora, sem que se tivesse necessidade de falar em
Balbec, foi ele próprio, Legrandin, que, sem desconfiar que tivéssemos jamais a
intenção de ir para aquelas bandas, veio colocar-se no laço uma tarde em que o
encontramos à margem do Vivonne.
— Há nas nuvens esta tarde violetas e azuis muito lindos, não é, companheiro? —
disse ele a meu pai. — Um azul sobretudo mais floral que aéreo, um azul de cinerária,
que surpreende no céu. E aquela nuvenzinha cor-de-rosa não tem também um tom de
flor, de cravo ou de hidrângea? Apenas na Mancha, entre a Normandia e a Bretanha,
pude fazer mais ricas observações sobre essa espécie de reino vegetal da atmosfera. Lá
perto de Balbec, perto desses lugares selvagens, há uma pequena enseada de uma doçura
encantadora, em que os poentes da terra de Auge, os poentes vermelhos e ouro que aliás
estou longe de desdenhar, se apresentam sem caráter, insignificantes; mas naquela
atmosfera úmida e suave se abrem à tarde, em alguns instantes, desses buquês celestes,
azuis e róseos, que são incomparáveis e muitas vezes levam horas para se fanarem.
Outras vezes desfolham-se em seguida e então é ainda mais belo ver o céu inteiro
juncado de inúmeras pétalas sulfúreas ou róseas. Naquela enseada, como de opala, ainda
mais suaves parecem as praias de ouro, por se acharem ligadas como loiras Andrômedas
àqueles terríveis rochedos das costas vizinhas, àquelas ribas fúnebres,[4] famosas por
tantos naufrágios, e onde todos os invernos tantas barcas soçobram aos perigos do mar.
Balbec! A mais antiga ossamenta geológica do solo de França, verdadeiramente Ar-mor,
o Mar, o fim da terra, a região maldita que Anatole France — um encantador que aqui o
nosso amiguinho deveria ler — tão bem descreveu, sob suas brumas eternas, como o
verdadeiro país dos cimérios, da Odisseia.[5] Principalmente de Balbec, onde já estão
construindo hotéis, superpostos ao solo antigo e bom, que em nada alteram, que delícia
excursionar, a dois passos, por aquelas regiões primitivas e tão belas!
— Ah! Será que o senhor não conhece alguém em Balbec? — disse meu pai. —
Justamente esse pequeno deve ir passar dois meses lá com a avó e talvez com minha
mulher.
Legrandin, colhido de improviso pela pergunta em um momento em que tinha os
olhos fitos em meu pai, não pôde desviá-los, mas, fixando-os de segundo a segundo
com maior intensidade — e sem deixar de sorrir tristemente — nos olhos de seu
interlocutor, com um ar de amizade e franqueza e de que não teme olhá-lo em face,
pareceu atravessar-lhe o rosto, como que de súbito transparente, e ver naquele
momento, além dele, uma nuvem vivamente colorida, que lhe criava um álibi mental e
lhe permitiria provar que, no momento em que fora inquirido se não conhecia alguém
em Balbec, estava pensando noutra coisa e não ouvira a pergunta. Habitualmente, tais
olhares fazem o interlocutor dizer: “Mas em que está pensando o senhor?”. No entanto
meu pai, curioso, irritado e cruel, insistiu:
— O senhor não tem amigos em Balbec, visto que conhece tão bem o lugar?
Em um último e desesperado esforço, o sorridente olhar de Legrandin atingiu seu
máximo de ternura, de vago, de sinceridade e de distração. Mas, considerando sem
dúvida que agora não poderia deixar de responder, disse-nos:
— Tenho amigos por toda parte onde haja grupos de árvores feridas, mas não
vencidas, que se aproximaram para implorar juntas, com uma obstinação patética, um
céu inclemente que não se compadece delas.
— Não era isso que eu queria dizer — interrompeu meu pai, tão obstinado como as
árvores e tão impiedoso como o céu. — Eu perguntava para o caso em que acontecesse
qualquer coisa a minha sogra e tivesse ela a necessidade de não se sentir lá como em terra
estranha, se o senhor não conhecia alguém em Balbec.
— Lá, como em toda parte, conheço todo mundo e não conheço ninguém —
respondeu Legrandin, que não se rendia tão depressa —, muito às coisas e muito pouco
às pessoas. Mas lá as próprias coisas parecem pessoas, pessoas raras, de uma essência
delicada e que a vida teria decepcionado. Ora é um castelo que encontramos na costa,
junto ao caminho, parado ali para confrontar sua pena com a noite ainda rósea onde
sobe a lua de ouro e cuja flâmula e cores ostentam em seus mastros os barcos que
regressam, estriando as águas matizadas; ora é uma simples casa solitária, feia até, de
aspecto tímido mas romanesco, que oculta a todos os olhos algum segredo imperecível
de felicidade e encantamento. Essa terra sem verdade — acrescentou com uma delicadeza
maquiavélica —, essa terra de ficção, eu não a recomendaria para o meu amiguinho, já
tão dado à tristeza e com o coração tão predisposto. Os climas de confidência amorosa e
de lamento inútil podem convir ao velho desabusado que eu sou, mas são sempre
insalubres para um temperamento ainda em formação. Acredite-me — tornou ele com
insistência —, as águas daquela baía, já metade bretã, podem exercer uma ação sedativa,
aliás discutível, num coração que já não é intato como o meu, num coração cuja lesão
não é mais compensada. Elas são contraindicadas na sua idade, meu menino. Boa-noite,
vizinhos — acrescentou, deixando-nos com a brusquidão evasiva que lhe era habitual, e,
voltando-se para nós com o dedo erguido do médico, resumiu sua consulta, gritando-nos: — Nada de Balbec antes dos cinquenta anos, e ainda assim depende do estado do
coração.
Meu pai martelou no assunto em nossos encontros ulteriores, torturou-o com
perguntas — tudo inútil: como aquele falsário erudito que empregava no fabrico de
palimpsestos apócrifos um labor e uma ciência cuja centésima parte bastaria para lhe
assegurar uma situação mais lucrativa, mas honrada,[6] o sr. Legrandin, se
continuássemos a insistir, terminaria por edificar toda uma ética paisagística e uma
geografia celeste da Baixa Normandia, antes que confessar que a dois quilômetros de
Balbec residia sua própria irmã e ver-se obrigado a oferecer-nos uma carta de
apresentação, coisa que não o assustaria tanto se tivesse certeza — como devia ter, dada a
experiência que tinha do caráter de minha avó — de que não iríamos utilizá-la.
Sempre voltávamos cedo de nossos passeios, para ter tempo de fazer uma visita a tia
Léonie antes do jantar. No começo da estação em que os dias acabam cedo, ao
chegarmos à rua do Espírito Santo, ainda havia um reflexo do poente nas vidraças da
casa e uma faixa de púrpura ao fundo dos bosques do Calvário, que ia refletir-se mais
além, no lago; púrpura que, acompanhada muitas vezes de um frio bastante vivo, se
associava, em meu espírito, à púrpura do fogo onde se assava um frango, que me traria,
depois do prazer poético do passeio, o prazer da gula, do calor e do repouso. No verão,
pelo contrário, quando entrávamos, o sol ainda não se deitara e, durante nossa visita, sua
luz que declinava e atingia a janela passava entre as grandes cortinas e os umbrais,
dividida, ramificada, filtrada, e, incrustando de partículas de ouro a madeira de limoeiro
da cômoda, iluminava obliquamente o quarto com a delicadeza que tem nos bosques,
sob as árvores. Mas certos dias muito raros, ao regressarmos, fazia muito tempo que a
cômoda perdera suas incrustações momentâneas e, ao chegarmos à rua do Espírito
Santo, não havia mais nenhum reflexo de poente nas vidraças, e o lago ao pé do
Calvário perdera sua púrpura, e às vezes era já de uma cor opalina, e um longo raio de
lua, que se ia alargando e estriando com todas as rugas da água, atravessava-o de um
lado a outro. E então, aproximando-nos de casa, avistávamos um vulto à porta, e mamãe
me dizia:
— Meu Deus! Lá está Françoise à nossa espera; tua tia está alarmada; é que
voltamos muito tarde.
E sem perder tempo em desembaraçar-nos de nossos abrigos, subíamos em seguida
ao quarto de tia Léonie para tranquilizá-la e mostrar-lhe que, contrariamente ao que
imaginara, nada nos tinha acontecido, mas que apenas fôramos para o “lado de
Guermantes” e — ora essa! — bem sabia ela que, quando dávamos esse passeio, não se
podia ter certeza da hora do regresso.
— Eu não lhe dizia, Françoise, que eles deviam ter ido para o lado de Guermantes?!
— exclamava minha tia. — Meu Deus! Devem estar com uma fome! E o seu carneiro
que com certeza já está torrado, com todo esse tempo que esperou. Também, é hora que
se chegue?! Como, então, vocês foram para o lado de Guermantes?
— Mas eu julgava que você o sabia, Léonie — dizia mamãe. — Pensava que
Françoise nos tivesse visto sair pelo portãozinho da horta.
Pois havia nas vizinhanças de Combray dois “lados” para os passeios, e tão opostos
que não saíamos com efeito pelo mesmo portão, quando queríamos ir para um lado ou
outro: o lado de Méséglise-la-Vineuse, também chamado o lado de Swann, porque se
passava pela propriedade do sr. Swann quando íamos para aquelas bandas, e o lado de
Guermantes.[7] De Méséglise, a falar a verdade, jamais lhe conheci senão o “lado” e
uma gente estranha que nos domingos vinha passear em Combray, gente que, desta vez,
nenhum de nós, nem sequer tia Léonie, “conhecia”, e que por isso era considerada
“gente que devia ter vindo de Méséglise”. De Guermantes, eu viria um dia a saber
muito mais, mas isso dali a anos e durante toda a minha adolescência, se Méséglise era
para mim qualquer coisa de inacessível como o horizonte, oculto à vista, por mais longe
que se fosse, pelos acidentes de um terreno que já não se assemelhava ao de Combray,
Guermantes sempre me apareceu como um termo antes ideal que real de seu próprio
“lado”, uma espécie de expressão geográfica abstrata como a linha do equador, como os
polos, como o Oriente. Assim, “tomar por Guermantes” para ir a Méséglise, ou o
contrário, parecia-me uma expressão tão sem sentido como tomar por leste para ir a
oeste. Visto que meu pai falava sempre do lado de Méséglise como da mais bela vista da
planície que conhecia e do lado de Guermantes como da paisagem típica de rio, eu lhes
dava, concebendo-os assim como duas entidades, essa coesão e unidade que só
pertencem às criações de nosso espírito; a mínima parcela de cada um me parecia
preciosa e cheia de sua peculiar excelência, ao passo que, em comparação com eles, antes
que se chegasse ao solo sagrado de um ou outro, os caminhos em cujo fim se achavam
pousados como o ideal da vista de planície e o ideal da paisagem de rio não valiam a
pena ser vistos, como para o espectador apaixonado de arte dramática as ruas que
conduzem ao teatro. Mas sobretudo eu punha entre ambos, muito mais que suas
distâncias quilométricas, a distância que havia nas duas partes de meu cérebro com que
pensava neles, uma dessas distâncias internas do espírito que não só afastam as coisas,
mas as separam e colocam em planos diversos. E essa demarcação ainda se tornava mais
absoluta, porque aquele hábito que tínhamos de nunca ir para os dois lados no mesmo
dia, em um único passeio, mas uma vez do lado de Méséglise, outra vez do lado de
Guermantes, encerrava-os por assim dizer longe um do outro, e sem poder se conhecer,
nos vasos herméticos e incomunicáveis de tardes diferentes.
Quando queríamos ir para o lado de Méséglise, saíamos (não muito cedo, e mesmo que
o céu estivesse nublado, porque o passeio não era muito longo e não nos afastava muito)
como para ir a qualquer parte, pela porta principal da casa de minha tia, na rua do
Espírito Santo. Éramos saudados pelo armeiro, púnhamos as cartas na caixa, dizíamos
de passagem a Théodore, da parte de Françoise, que estava lhe faltando azeite ou café, e
saíamos da cidade pela estrada que margeava a cerca branca do parque do sr. Swann.
Antes de lá chegar, encontrávamos pelo caminho, vindo ao encontro dos estranhos, o
cheiro de seus lilases. Eles próprios, dentre os coraçõezinhos verdes e frescos de suas
folhas, erguiam curiosamente acima da cerca do parque seus penachos de plumas
brancas e malvas, rebrilhantes, embora na sombra, do sol em que se haviam banhado.
Alguns, meio ocultos pela pequena casa de telhas chamada a casa dos Arqueiros, onde
morava o guarda, assomavam por cima da frontaria gótica seu róseo minarete. As
Ninfas da primavera pareceriam vulgares perto daquelas jovens huris que guardavam
naquele jardim francês os tons vivos e puros das miniaturas da Pérsia. Apesar de meu
desejo de enlaçar-lhes o talhe flexível e acercar de minha face os estrelados bucles de
suas cabecinhas cheirosas, seguíamos adiante sem parar, pois meus pais não
frequentavam Tansonville desde o casamento de Swann, e, para não parecer que
estávamos a espiar para dentro do parque, em vez de tomar o caminho que margina seu
cercado e que vai dar diretamente nos campos, tomávamos outro que ali também vai ter,
mas obliquamente, e nos fazia desembocar muito longe. Um dia, disse meu avô a meu
pai:
— Não te lembras que Swann nos disse ontem que, como a mulher e a filha partiam
para Reims, ele aproveitaria a ocasião para ir passar vinte e quatro horas em Paris? Visto
que essas damas não estão aqui, poderíamos seguir ao longo do parque, o que nos
abreviaria muito o caminho.
continua na página 98...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Jantei com Legrandin no terraço - l)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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[1] Alusão à epígrafe de Balzac ao romance Um médico de aldeia: “Aos corações feridos,
sombra e silêncio”. [n. e.]
[2] Muito mais tarde, quando o herói conseguir enfim ter acesso ao salão de um dos
Guermantes, ele poderá contemplar o deslumbre mundano de Legrandin, que,
coincidentemente, consegue também entrar em contato com a família. [n. e.]
[3] Avó e neto partirão, efetivamente, para Balbec sem a recomendação de Legrandin.
Já na segunda estada nessa praia, será a família Cambremer que virá em visita solícita ao
herói. [n. e.]
[4] Conforme a lenda, Andrômeda, gabando-se de sua beleza, que, de acordo com ela
mesma, era superior à das Nereidas, recebe punição de Netuno, que, despertando um
monstro, traz a desgraça ao lugar. O oráculo ordena a rendição de Andrômeda ao
monstro, e ela só será salva por Perseu, que petrifica o monstro utilizando a cabeça de
Medusa. [n. e.]
[5] Povo nômade encontrado por Ulisses no décimo primeiro canto da Odisseia. No
livro III, capítulo V, de Pierre Nozière, o herói criado por Anatole France lê justamente essa
passagem da Odisseia. [n. e.]
[6] Alusão provável a Vrain-Lucas, que vendera, a partir de 1861, toda uma série de
supostos manuscritos redigidos em francês antigo ao matemático Michel Chasles.
Alphonse Daudet, escritor e pai de amigos de Proust, trata do episódio em seu livro
L’Immortel, que Proust conhecia. [n. e.]
[7] A abertura da grande “sinfonia” do tempo perdido conta com esses dois lados —
o caminho de Swann e o caminho de Guermantes —, que, como motivos musicais,
voltarão nas últimas páginas do livro, fechando magistralmente o longo percurso de
busca do herói. [n. e.]
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