domingo, 24 de novembro de 2024

Marcel Proust - No Caminho de Swann (II - Combray, Tanto mais agradáveis foram meus passeios - o)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(o) 

continuando...

     Tanto mais agradáveis foram meus passeios naquele outono porque os dava depois de ter passado muitas horas com um livro. Quando me cansava de ler toda a manhã na sala, lançava o plaid aos ombros e saía: meu corpo, obrigado por muito tempo a conservar-se imóvel, mas que se fora carregando de animação e velocidade acumuladas, precisava logo, como um pião que se solta, despendê-las em todas as direções. Os muros das casas, a sebe de Tansonville, as árvores do bosque de Roussainville, os matagais junto de Moutjouvain recebiam golpes de guarda-chuva ou de bengala, ouviam gritos alegres, que não passavam, uns e outros, de ideias confusas que me exaltavam e ainda não haviam alcançado o repouso da plena claridade, preferindo, a um lento e penoso esclarecimento, o prazer de uma derivação mais fácil para um escape imediato. A maioria dessas pretensas traduções de nossos sentimentos não consegue mais que desembaraçar-nos deles, fazendo-os sair de nós sob uma forma indistinta que não nos ensina a conhecê-los. Quando tento avaliar o que devo a Méséglise, as humildes descobertas de que constituiu o quadro fortuito ou o necessário inspirador, lembro-me que foi por aquele outono, em um daqueles passeios, perto do talude que protege Montjouvain, que pela primeira vez me impressionou esse desacordo entre nossas impressões e sua expressão habitual. Após uma hora de chuva e de vento, contra os quais lutara animadamente, quando chegava à beira do pântano de Montjouvain, ante uma cabana coberta de telhas em que o jardineiro do sr. Vinteuil guardava seus instrumentos, o sol acabava de reaparecer, e os dourados que a chuva lavara reluziam de novo no céu, nas árvores, na parede da cabana, em seu telhado ainda úmido onde passeava uma galinha. O vento soprava horizontalmente as ervas que haviam crescido nas frinchas da parede e as penugens da galinha, que se deixavam umas e outras estirar em todo o seu comprimento, com o abandono das coisas inertes e leves. O telhado dava ao charco, que com o sol se tornara de novo espelhante, umas róseas marmorizações que eu nunca notara anteriormente. E vendo sobre as águas e na superfície da parede um pálido sorriso responder ao sorriso do céu, exclamei, em meu entusiasmo, brandindo o guarda-chuva fechado: “Vamos! Vamos! Vamos!”. Mas ao mesmo tempo senti que era meu dever não me contentar com essas palavras opacas e tratar de ver mais claro em meu encantamento.
     E foi também naquele momento — graças a um camponês que passava de cara fechada, e que ainda mais se fechou quando quase o atinjo com o guarda-chuva, e que respondeu friamente ao meu: “belo tempo para um passeio, não?” — que fiquei sabendo que as mesmas emoções não se produzem simultaneamente, em uma ordem preestabelecida, em todos os homens. Mais tarde, cada vez que uma leitura um pouco longa me pusera em disposição de conversar, o camarada a quem eu ardia por dirigir a palavra acabava justamente de entregar-se ao prazer da conversação e desejava agora que o deixassem ler em paz. Se eu acabava de pensar ternamente em meus pais, tomando as decisões mais sensatas e mais adequadas para lhes causar satisfação, haviam eles empregado o mesmo tempo em tomar conhecimento de algum pecadilho que eu já esquecera e que me censuravam severamente no momento em que eu corria a beijá-los.
     Muitas vezes, à exaltação causada pela solitude vinha unir-se outra que eu não sabia separar claramente da primeira e proveniente do desejo de ver surgir ante mim uma camponesa que eu pudesse enlaçar em meus braços. Bruscamente surgido em meio de pensamentos diversos, sem que eu tivesse tempo de o relacionar com sua causa, o prazer de que vinha acompanhado esse desejo apenas me parecia um pouco superior ao que me davam aqueles pensamentos. Emprestava então maior mérito a tudo o que naquele momento se achava em meu espírito, ao reflexo róseo do telhado, às ervas da parede, à aldeia de Roussainville que havia tanto tempo eu desejava visitar, às árvores de seu bosque, às torres de sua igreja, mercê da nova emoção que só nos apresentava mais desejáveis porque julgava que eram eles que a provocavam, e a qual parecia querer apenas impulsionar-me mais rapidamente para eles quando inflava minha vela com uma brisa poderosa, desconhecida e propícia. Mas se esse desejo de que me aparecesse uma mulher acrescentava aos encantos da natureza algo de mais excitante, os encantos da natureza, em troca, ampliavam o que poderia haver de demasiado restrito no encanto feminino. Parecia-me que a beleza das árvores era sua beleza e que a alma daqueles horizontes, da aldeia de Roussainville, dos livros que eu estava lendo, seu beijo a revelaria e como minha imaginação recobrava forças ao contato de minha sensualidade, e minha sensualidade se expandia por todos os domínios de minha imaginação, meu desejo não tinha mais limites. É que também — como acontece nesses momentos de cisma no seio da natureza, em que, suspensa a ação dos hábitos e relegadas as noções abstratas que temos das coisas, cremos então com uma profunda fé na originalidade e na vida individual do lugar onde nos achamos — a passante que meu desejo chamava afigurava-se-me não um mero exemplar desse tipo geral, a mulher, mas um produto necessário e natural daquele solo. Pois naquele tempo, tudo que não fosse eu próprio, a terra e os seres, parecia-me mais precioso, mais importante, dotado de uma existência mais real do que se apresenta aos homens feitos. E a terra e os seres, eu não os separava absolutamente. Sentia desejos de uma camponesa de Méséglise ou de Roussainville, de uma pescadora de Balbec, como sentia desejos de Méséglise e de Balbec. O prazer que elas poderiam me dar me pareceria menos verdadeiro, e deixaria de acreditar nele, se lhe modificasse arbitrariamente as condições. Conhecer em Paris uma pescadora de Balbec ou uma camponesa de Méséglise seria como receber conchas que eu não tivesse visto na praia ou alguma planta que não tivesse encontrado no bosque, seria subtrair ao prazer que me proporcionasse a mulher todos aqueles prazeres no meio dos quais a colocara minha imaginação. Mas vagar assim pelos bosques de Roussainville sem uma camponesa a quem beijar, era não conhecer o tesouro oculto daqueles bosques, sua beleza mais profunda. Aquela rapariga que eu imaginava sempre rodeada de folhagens era também como uma planta local, apenas de espécie mais elevada que as outras e cuja estrutura me permitisse sentir, muito mais de perto que as demais, o sabor profundo da terra. E com tanto maior facilidade acreditava (como acreditava que as carícias com que me revelasse esse sabor seriam de uma classe especial cujo prazer só ela poderia proporcionar-me), porquanto ainda continuaria por muito tempo nessa idade em que não abstraímos o gozo de possuir das diferentes mulheres que o oferecem, e ainda não o reduzimos a uma noção geral que desde então nos faça considerar as mulheres como instrumentos substituíveis de um prazer idêntico. Nem sequer existe, isolado, separado e formulado no espírito, como a finalidade que a gente visa ao aproximar-se de uma mulher ou como causa da prévia perturbação que se experimenta. Mal pensamos nele como em um prazer futuro; antes o consideramos como encanto dela, pois não pensamos em nós e sim em sair de nós. Obscuramente esperado, imanente e oculto, somente leva a tal paroxismo no momento em que se cumprem os outros prazeres que nos causam os amorosos olhares e beijos da que está junto de nós, em que se nos apresenta antes de tudo como um transporte de gratidão pela bondade de nossa companheira e por sua tocante predileção por nós e que medimos pelos benefícios e ventura que ela nos proporciona.
     Mas era em vão que eu implorava o torreão de Roussainville, que lhe pedia me mandasse alguma menina de sua aldeia, como ao único confidente que eu podia ter de meus primeiros desejos, quando, nos altos de nossa casa em Combray, no pequeno gabinete que cheirava a íris, só avistava sua torre no quadrado da janela entreaberta, enquanto, com as hesitações heroicas do viajante que empreende uma exploração ou do desesperado que se suicida, eu abria desfalecente em mim mesmo uma vereda desconhecida e que julgava mortal até o momento em que um rastro natural, como o de um caracol, vinha acrescentar-se às folhas da groselheira silvestre que se inclinavam até a mim. Em vão lhe suplicava agora. Em vão, abrangendo toda aquela extensão em meu campo visual, eu a drenava com meus olhares que desejariam trazer dali uma mulher. Podia ir até o pórtico de Santo André dos Campos; nunca se achava ali a camponesa que eu não teria deixado de encontrar se tivesse ido com meu avô e, portanto, impossibilitado de conversar com ela. Fixava indefinidamente o tronco de uma árvore longínqua, detrás do qual ela ia surgir e encaminhar-se para mim; o horizonte perscrutado permanecia deserto, a noite caía, era sem esperança que minha atenção ficava presa àquele solo estéril, àquela terra esgotada, como para aspirar as criaturas que pudessem ocultar; e não era mais de alegria, era de raiva que eu batia às árvores do bosque de Roussainville dentre as quais não saía nem um ente vivo, como se não passassem de árvores pintadas sobre a tela de um panorama, quando, não podendo resignar-me a voltar para casa antes de haver apertado em meus braços a mulher a quem tanto desejara, via-me, no entanto, obrigado a retomar o caminho de Combray, confessando a mim mesmo que era cada vez menos provável o acaso que a pusesse em meu caminho. Mas, e se ela ali se encontrasse, teria eu ousado falar-lhe? Parecia-me que ela haveria de considerar-me um louco; deixava de considerar compartilhados por outras criaturas, de considerar como verdadeiros fora de mim os desejos que formava durante aqueles passeios e que não se realizavam. Não se me afiguravam mais que como criações puramente subjetivas, impotentes, ilusórias, de meu temperamento. Não mais tinham ligação com a natureza, com a realidade, que desde então perdia todo encanto e todo significado e não era, para minha vida, senão um quadro convencional, como o é, para a ficção de um romance, o vagão em cujo banco o viajante o lê para matar o tempo.
     Também de uma impressão que tive em Montjouvain, alguns anos mais tarde, impressão que no momento permaneceu obscura, proveio talvez a ideia que muito depois formei a respeito do sadismo. Ver-se-á mais tarde como a lembrança dessa impressão, por motivos muito diversos, devia desempenhar importante papel em minha vida. Era por um tempo muito quente; meus pais, que deviam estar ausentes todo o dia, haviam-me dito que eu podia voltar para casa o mais tarde que quisesse e, tendo ido até o pântano de Montjouvain, onde gostava de rever os reflexos das telhas, deitara-me na sombra e adormecera entre as moitas do talude que domina a casa, ali onde esperara outrora por meu pai, em um dia em que ele fora visitar o sr. Vinteuil. Era quase noite quando despertei, quis levantar-me, mas vi a srta. Vinteuil (tanto quanto a pude reconhecer, pois não a via muito seguido em Combray, e apenas quando era ainda menina, ao passo que agora começava a fazer-se moça), que provavelmente acabava de chegar em casa, ali defronte a mim, a alguns centímetros de distância, naquela sala em que seu pai recebera o meu e de que ela fizera seu gabinete particular. A janela estava entreaberta, a lâmpada acesa e eu via todos os seus movimentos, sem que ela me enxergasse, mas, se me fosse embora, poderia fazer estalar os ramos e a moça ouviria e era capaz de pensar que eu me ocultara ali para espiá-la.
     Estava de luto fechado, pois fazia pouco que o pai morrera. Não tínhamos ido apresentar-lhe os pêsames; minha mãe não o quisera devido à única coisa que limitava nela os efeitos da bondade: o pudor; mas lamentava-a profundamente. Recordando o triste fim de vida do sr. Vinteuil, absorvido primeiro pelos cuidados de mãe e de ama que prestava à filha e depois pelos desgostos que esta lhe causara, revia minha mãe a torturada fisionomia do velho nos últimos tempos; sabia que ele renunciara para sempre a passar a limpo toda a sua obra dos últimos anos, pobres composições de um velho professor de piano, de um antigo organista de aldeia, que imaginávamos de escasso valor, mas sem desprezá-las, porque para ele valiam muito e constituíam a razão de ser de sua vida, antes que as sacrificasse à filha e que, na maioria nem sequer transcritas, retidas unicamente de memória, algumas anotadas em folhas avulsas, ilegíveis, permaneceriam ignoradas de todos; minha mãe pensava nessa outra renúncia ainda mais cruel a que o sr. Vinteuil fora constrangido; a renúncia a um porvir de felicidade honesta e respeitada para a filha; e quando evocava aquela suprema desgraça do antigo professor de piano de minhas tias, sentia uma verdadeira aflição e pensava com horror nessa outra aflição muito mais amarga que devia sentir a filha de Vinteuil, unida ao remorso de haver matado aos poucos seu pai. “Pobre do senhor Vinteuil!”, dizia minha mãe. “Viveu e morreu pela filha, sem receber sua paga. Vejamos se a recebe depois de morto, e de que forma. Só ela poderá fazê-lo.”
     Ao fundo do salão da srta. Vinteuil, havia sobre a lareira um pequeno retrato de seu pai, que ela foi buscar apressadamente no instante em que ressoou o rodar de um carro na estrada; depois se lançou sobre um canapé e puxou para junto de si uma mesinha sobre a qual colocou o retrato, como outrora o sr. Vinteuil havia posto a seu lado o trecho de música que desejava executar para meus pais. Em breve sua amiga entrou. A filha de Vinteuil acolheu-a sem se erguer, com as duas mãos enlaçadas atrás da cabeça, e afastou-se até a ponta do sofá, como para dar lugar à outra. Mas logo sentiu que parecia assim impor-lhe uma atitude que talvez lhe fosse importuna. Cuidou que a amiga talvez preferisse ficar longe dela, em uma cadeira, e considerou-se indiscreta, o que alarmou a delicadeza de seu coração; retomando todo o espaço no sofá, fechou os olhos e pôs-se a bocejar, para indicar que o desejo de dormir era a única razão por que assim se reclinara. Apesar da rude e dominadora familiaridade que tinha para com sua camarada, eu reconhecia os gestos obsequiosos e reticentes, os bruscos escrúpulos de seu pai. Em breve se ergueu, fingiu que queria fechar os postigos e que não o conseguia.

— Deixa tudo aberto, estou com calor — disse a amiga.
— É perigoso, podem ver-nos — respondeu a srta. Vinteuil.

     Mas sem dúvida adivinhou que a amiga ia pensar que ela só dissera tais palavras para provocá-la a lhe responder com outras que efetivamente desejava ouvir, mas que por discrição queria deixar-lhe a iniciativa de pronunciar. Assim, seu olhar, que eu não podia distinguir, deve ter tomado a expressão que tanto agradava a minha avó, no instante em que ela acrescentou vivamente:

— Quando digo “podem ver-nos” quero dizer “podem ver-nos ler”, pois qualquer coisa de insignificante que se faça, é incômodo pensar que possam estar a olhar-nos. 

     Por uma instintiva generosidade e involuntária polidez, calava ela as palavras premeditadas que julgara indispensáveis à plena realização de seu desejo. E a todos os momentos, no fundo de si mesma, uma virgem tímida e suplicante implorava e fazia recuar um soldado rude e dominador.

— Sim, é muito provável que nos estejam olhando agora, nestes campos tão frequentados — disse ironicamente a amiga. — E depois, que tem isso? — acrescentou, julgando que devia acompanhar com uma piscada maliciosa e terna aquelas palavras que recitou por bondade, como um texto agradável à srta. Vinteuil, e em um tom que ela se esforçava por tornar cínico. — Se nos virem, tanto melhor!

     A filha de Vinteuil estremeceu e ergueu-se. Seu coração escrupuloso e sensível ignorava que palavras deviam vir espontaneamente adaptar-se à cena que seus sentidos reclamavam. Procurava, o mais longe que podia de sua verdadeira natureza moral, a linguagem apropriada à rapariga viciosa que ela desejava ser, mas as palavras que esta pronunciaria sinceramente lhe pareciam falsas em sua boca. E o pouco que ela permitia nesse terreno era dito em um tom afetado, em que seus hábitos de timidez lhe paralisavam as veleidades de audácia, e tudo entremesclado de: “não tens frio, estás com calor, não queres ficar lendo sozinha?”.
     E afinal acabou por dizer: “A senhorita me parece estar com pensamentos bastante lúbricos esta noite”, repetindo sem dúvida uma frase que ouvira um dia da boca de sua amiga. 
     No decote de seu corpete de crepe a srta. Vinteuil sentiu um beijo súbito da amiga, soltou um gritinho, escapou-se, e as duas perseguiram-se, com as largas mangas revoluteando como asas, cacarejando e chilreando como dois pássaros enamorados. Depois a srta. Vinteuil acabou por tombar sobre o canapé, recoberta pelo corpo da amiga. Mas esta se achava de costas para a mesinha onde estava o retrato do antigo professor de piano. A srta. Vinteuil compreendeu que a amiga não o veria se não lhe chamasse a atenção, e então lhe disse como se só naquele momento houvesse reparado nele:

— Oh!, e esse retrato de meu pai, a olhar-nos! Não sei quem o teria posto em cima da mesa, já disse mil vezes que não é aí o seu lugar.

     Lembrei-me de que eram as palavras que o sr. Vinteuil dissera a meu pai, a propósito do trecho de música. Sem dúvida aquele retrato lhes servia habitualmente para profanações rituais, pois sua amiga lhe respondeu com estas palavras que deviam fazer parte de seus responsos litúrgicos:

— Deixa-o aí mesmo, ele não está mais aqui para nos aborrecer. E como não havia de se lamuriar e querer pôr-te um xale, o macaco velho, se te visse agora de janela aberta! 

     A srta. Vinteuil respondeu com palavras de suave censura: “Que é isto!? Que é isto!?”, que denotavam sua bondosa índole, não porque fossem ditadas pela indignação que lhe pudesse causar aquela maneira de se referirem a seu pai (esse era um sentimento que, sabe Deus com o auxílio de que sofismas, já se habituara evidentemente a sufocar naqueles instantes), mas porque eram como um freio que ela mesma punha, para não se mostrar egoísta, no prazer que sua amiga tentava proporcionar-lhe. E depois, aquela sorridente moderação no responder a tais blasfêmias, aquela censura hipócrita e carinhosa, talvez parecessem a sua alma franca e bondosa uma forma particularmente infame, uma forma adocicada daquela perversidade que ela procurava assimilar. Mas não pôde resistir ao atrativo do prazer que experimentaria em ser tratada com carinho por uma pessoa tão implacável para com um morto sem defesa; saltou para os joelhos da amiga e ofereceu-lhe castamente a fronte a beijar como o poderia fazer se fosse sua filha, sentindo com delícia que ambas alcançavam assim o limite da crueldade, roubando ao sr. Vinteuil, até no túmulo, sua paternidade. A amiga tomou-lhe a cabeça entre as mãos e lhe depôs um beijo sobre a fronte, com uma docilidade que lhe era facilitada pela grande afeição que dedicava à srta. Vinteuil e seu desejo de oferecer alguma distração à vida agora tão triste da pobre órfã.

— Sabes o que eu tenho vontade de fazer com essa velha carcaça? — disse ela, pegando o retrato.

     E murmurou ao ouvido da srta. Vinteuil alguma coisa que eu não pude ouvir. 

— Oh! Tu não te atreves!
— Que eu não me atrevo a cuspir em cima? Em cima disto? — disse a amiga, com proposital brutalidade.

     Não ouvi mais nada, porque a srta. Vinteuil, com um ar cansado, esquerdo, ocupado, virtuoso e triste, veio fechar os postigos e a vidraça, mas eu agora sabia, por todos os sofrimentos que o sr. Vinteuil suportara em vida por causa de sua filha, o que, após a morte, recebera em paga da parte dela.

continua na página 115...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, Tanto mais agradáveis foram meus passeios - o)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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