segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Gupeva - II (E àquela bela tarde)

Maria Firmina dos Reis


Gupeva

II 


   E àquela bela tarde sucedeu uma noite escura e feia. A atmosfera estava baixa e carregada, as nuvens ameaçavam tempestade. O mar quebrava-se raivoso nas praias, e o vento gemia nas solidões das matas. Entanto Gastão, ébrio de prazer, acabava de transpor o pequeno lençol movediço que o separava da terra, dessa terra querida, onde ia encontrar em breve a mulher de suas doidas afeições. As nuvens arqueavam-se negras sobre os outeiros, por entre os quais insinuava-se, louco de esperanças, o jovem adorador da filha dos palmares.
   Corria o moço afadigado por entre as árvores copadas da velha América; arfava-lhe o peito, as artérias latejavam-lhe, o sangue afluía-lhe para o rosto, o suor caía-lhe em bagas, da fronte para o peito. Com que rapidez, com que afã devorava ele o espaço que o separava ainda do lugar da entrevista... Tardava-lhe a hora da ventura.
   Por essas sendas tortuosas, por essas brenhas quase virgens de uma habitação do homem civilizado, por esses lugares, que já não tendo aqui e ali a selvagem beleza de uma mata virgem, não tinha em parte alguma o caráter duma povoação, corria loucamente o jovem colega de Alberto, sem outro pensamento mais que o de rever sua idolatrada Épica. Se havia ainda um mundo além do lugar dos seus sonhos, Gastão havia-o inteiramente esquecido: o amor do seu coração absorvia-lhe todas as faculdades. Aos vinte e um anos o homem não tem o coração embotado; – o excesso de paixões mal sofreadas, ainda nessa idade juvenil, não o tem aviltado, e enegrecido. O amor que abrasa o coração nessa idade, a mais bela talvez da nossa vida, é um amor puro como os afetos de uma criança, é o amor sincero como o beijo de um irmão querido, é um amor santo como um hino sacro entoado pelos anjos do Senhor.
   O amor, nessa idade é uma emanação do céu, é um concerto divino noite e dia a vibrar no coração do homem; e ao som desse dulcíssimo concerto, a mente exalta-se, e vai tocar ao infinito, bebe deleites, que purificam a alma; sonha enlevos virtuosos; goza mimos de um sentir indefinível, desses que o mundo só concede uma vez, desses que só no viver dos anjos se goza eternamente. Ah! Se o homem pudesse em toda a sua vida amar assim tão pura e santamente, com esse amor que então animava o coração do jovem Gastão, para que havia Deus, criar um outro céu, criar outras delícias para os seus escolhidos?! O céu seria o mundo, e nós os bem-aventurados. Mas, mesquinhos, e míseros filhos de Adão, essa hora de mágicos enlevos, não a tornareis achar!... Esse oásis que vos deleitou desapareceu para sempre.
   Foi um bafejo divino na hora da tormenta; foi uma gota de orvalho sobre a erva emurchecida pela calma. Agora segui o vosso deserto; árida e espinhosa será a vossa senda. Abrasar-vos-á o simum, e uma só fonte d’água fresca não encontrareis em vossa peregrinação, que vos suavize o requeimar do sangue. E depois deste afã, deste doloroso caminhar, no extremo já, vereis por desafogo e tantas dores o antro escuro, e úmido de uma sepultura. Não recueis, oh! Não: aí está o esquecimento de uma existência amargurada, aí o descanso, o repouso, a felicidade.
   Ao cabo de algumas horas, o jovem oficial se havia entranhado num bosque solitário e ermo. À direita, a uns cem passos de distância, avultava uma cabana, cujo teto coberto de pindoba era sombreado por palmeiras simultâneas, que lhe davam um aspecto poético, e melancólico; à esquerda erguia-se um pequeno rochedo. À sua base serpeava uma ligeira corrente, deslizando suas mansas águas por sobre a areia, e pedrinhas; espreguiçando-se como uma criança no seu leito, sumia-se, murmurando no meio do bosque. Havia aí um quê de indefinível doçura, uma melancolia meiga, e suave, que se assemelhava, se harmonizava, se casava com o coração de Gastão, onde havia sensações deleitáveis, como os sons longínquos duma harpa que geme na solidão. O mancebo galgou a eminência com presteza. Dali seus olhos poderiam descobrir Alberto, ainda pensativo e desgostoso, se nessa hora ele se lembrasse de alguém que não fosse a mulher por quem esperava, e se a escuridão da noite o permitisse.
   Havia um negrume espantoso, porém a natureza ainda estava calma; a tempestade que ameaçava não prometia ser breve.
   Gastão contava os minutos pelas palpitações do seu coração. Era a primeira vez que ia encontrar-se com Épica face a face na escuridão da noite; era a primeira vez que ia achar-se com ela só, no cimo dum outeiro, entre o céu e a terra, longe das vistas indiscretas do homem, longe das admoestações de Alberto, tendo por conselheiro só seu coração, por testemunha só Deus! Gastão bebia as delícias do paraíso. Esperou, e esperando cedeu à meditação.
   Não haveria aí um só homem, que tenha sentido em seu coração o fogo dum primeiro amor, que não adivinhe o doce meditar desse mancebo de coração ardente, e alma apaixonada. Gastão aspirava os perfumes do céu, embalava-se nas fagueiras esperanças dum amor sem limites.
   Depois de tudo isso a morte; porque o único gozo, que semelha aos dos anjos, teria então passado. Assim pensava o moço francês, e esse pensamento não podia ser um erro. Errar por muito tempo, entre o amor e a sepultura, é um tormento inqualificável, é morrer sem esperança de salvação da alma, é a tortura da Idade Média não adoçada pelo cutelo do algoz. Gastão pois pensava bem; e qualquer outro em idênticas circunstâncias pensaria como ele. Do mundo o moço só almejava uma coisa, uma somente, do mundo ele só queria aquela mulher, que ele aguardava com frenesi, aquela mulher, que ele amava com delírio, que idolatrava loucamente. Por ela Gastão daria toda a sua vida, todo o seu sangue, sua alma, seu sossego, toda a felicidade de um futuro, que se lhe antolhava risonho.

— Sim, exclamou ele, acordando do seu sonho mentiroso, respondendo ao seu próprio pensamento – viver ou morrer com ela. Que me importa a mim os prejuízos do mundo? Haverá acaso no mundo mulher mais digna do meu amor?!... Épica! Épica! Eu te adoro. Épica, anjo dos meus sonhos, visão encantadora, que afaga, e adoça o amargor dos meus dias... Serás acaso uma ilusão?!...

   Um leve murmúrio, um rumor vago, como a bulha sutil de passos cautelosos, interrompeu-o: ele julgou esse leve ruído a aproximação da mulher amada; estremeceu de amor, e correu ao encontro dessa visão angélica.
   E encontrou-se face a face com um homem. Gastão recuou um passo e levou a mão à sua espada.

— Quem sois? Perguntou-lhe em português, com acento de cólera mal reprimida.

   A noite era tão escura, que Gastão mal poderia reconhecer este homem, inda que fosse ele o seu melhor amigo.

— Quem sois? – repetiu o moço estrangeiro, – Pelo céu, ou pelo inferno, dizei-o.

— Quem sou? – respondeu o recém-chegado com voz grave, magoada e horripilante. — Desejais conhecer-me? Breve sabereis quem sou

— Depressa, senhor, depressa, – lhe tornou Gastão, ou livrai-me da vossa presença.

— Conheço, mancebo, quanto vos deve ser importuna a minha presença neste lugar; mais tarde, porém, reconhecereis que não sou aqui o mais importuno.

   Gastão julgou-se em face dum rival, e a sua cólera redobrou.

— E insistes em não dizer quem sois, nem a que vindes.

— Não insisto, não, senhor, quero responder pontualmente às vossas perguntas não obstante ser quem devia interrogar-vos.

— Vós!... E com que direito?

— Com o mesmo, mancebo, com que me interrogais.

— Zombais acaso de mim? disse Gastão no auge de desesperação, ponde-vos em guarda; não quero ser um assassino.

— Esperai, senhor, esperai, – replicou o desconhecido, – com calma, escutai-me:

— Eu sou tupinambá, continuou, sou o cacique desta tribo, sou finalmente o pai de Épica. Isto espanta-vos?

— Traição! – exclamou Gastão, desembainhando a espada, que cintilou na escuridão da noite.

— Enganai-vos, senhor, ninguém vos traiu. Eu sei tudo: vossas palavras eu as tenho escutado.

— Mentis, maldito tupinambá.

— Não minto, não: dia por dia hei seguido vossos passos, e ouvido vossa conversação com minha pobre Épica. Ainda ontem lhe dizias ao pé da cabana de seu velho pai: Amanhã, quando a lua estiver em meio giro, eu te aguardarei no cume do outeiro.

— Espião infame! – exclamou o moço desatinado, arremessando-se contra o cacique.

— Esperai, mancebo, esperai, lhe disse o índio, juro-vos por Tupã que hei de matar-vos ou morrer às vossas mãos, e isso antes do meio giro da lua; porque a essa hora Épica, a inocente Épica, virá louca, correndo ao vosso apelo, e só um de nós a deve receber. Se fordes vós, ao menos eu não testemunharei semelhante aviltamento.

— Calai-vos, – disse Gastão, puxando novamente pela espada.

   O índio porém, como se não reparasse naquele movimento do jovem oficial, continuou:

— Vossa entrevista será ao meio giro da lua; mancebo, vos antecipastes; ainda me resta pois uma hora, peço que me escuteis.

   Havia um não sei quê de profundo, de solene, no acento dessas palavras que revelavam inabalável resolução.
   A seu pesar Gastão sentiu-se comovido, e respondeu:

— Eu vos escuto.

continua na página (161)157...
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Gupeva - II (E àquela bela tarde)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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