segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um camarote no teatro de opereta (XXX)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve

Capítulo XXX

UM CAMAROTE NO TEATRO DE OPERETA


As the blackest sky 
Foretells the heaviest tempest.

DON JUAN, C. I, est. 73


   EM MEIO A TODOS ESSES GRANDES MOVIMENTOS, Julien estava mais espantado do que feliz. As injúrias de Mathilde mostravam-lhe o quanto a política russa era sábia. Falar pouco, agir pouco, eis meu único meio de salvação. 
   Ele ergueu Mathilde e, sem dizer nada, recolocou-a no divã. Aos poucos, as lágrimas a dominaram.
   Para manter a compostura, ela tomou das mãos de Julien as cartas da sra. de Fervaques e lentamente as abriu. Teve um movimento nervoso bem marcado quando reconheceu a letra da marechala. Virava sem ler as folhas dessas cartas, a maioria com seis páginas.

– Responde-me ao menos, disse enfim Mathilde, com o tom de voz mais suplicante, mas sem ousar olhar para Julien. Você bem sabe que sou orgulhosa; é o mal de minha posição e mesmo de meu caráter, admito. A sra. de Fervaques roubou então seu coração?... Fez por você todos os sacrifícios a que o amor fatal me arrastou?

   Um silêncio taciturno foi toda a resposta de Julien. Com que direito, pensava, ela me pede uma indiscrição indigna de um homem honrado?
   Mathilde tentava ler as cartas, mas seus olhos cheios de lágrimas tiravam-lhe essa possibilidade.
   Há um mês ela sentia-se infeliz, mas essa alma altaneira estava longe de confessar-se seus sentimentos. Fora apenas o acaso que provocara essa explosão. O ciúme e o amor haviam, num instante, prevalecido sobre o orgulho. Ela estava sentada no divã e muito perto dele. Ele via seus cabelos, seu pescoço de alabastro. Por um momento, esqueceu o que se impusera; passou o braço em volta do corpo dela e quase a estreitou contra o peito.
   Ela virou a cabeça para ele muito lentamente; ele surpreendeu-se com o extremo sofrimento que viu em seus olhos, não dava para reconhecer sua fisionomia habitual.
   Julien sentia as forças o abandonarem, tamanha a dificuldade do ato de coragem que se impusera. 
   Esses olhos logo exprimirão apenas o mais frio desdém, pensou Julien, se deixo-me arrastar à felicidade de amá-la. No entanto, com uma voz débil e com palavras que mal tinha a força de terminar, ela repetia-lhe nesse momento todo o seu pesar por atitudes que o orgulho excessivo a aconselhara.

– Também sou orgulhoso, disse-lhe Julien com uma voz muito contraída. E seu rosto mostrava os traços de um extremo abatimento físico.

   Mathilde voltou-se vivamente para ele. Ouvir a voz dele era uma felicidade a cuja esperança quase renunciara. Naquele momento, ela só recordava sua altivez para maldizê-la, teria feito coisas insólitas, inacreditáveis, para provar-lhe o quanto o adorava e detestava a si mesma. 

– É provavelmente por causa desse orgulho, continuou Julien, que você me distinguiu por um instante; é certamente por causa dessa firmeza corajosa e que convém a um homem que você me estima neste momento. Posso sentir amor pela marechala...

   Mathilde estremeceu, seus olhos adquiriram uma expressão estranha. Ela ia ouvir pronunciar sua sentença. Esse movimento não escapou a Julien, que sentiu fraquejar sua coragem.
   Ah!, ele pensava, ao escutar o som das palavras vãs que sua boca pronunciava, como se fosse um ruído alheio: se eu pudesse cobrir de beijos esse rosto tão pálido sem que o sentisses! 

– Posso sentir amor pela marechala, continuava... e sua voz enfraquecia ainda mais; mas certamente não tenho nenhuma prova decisiva de seu interesse por mim... 

   Mathilde o fitou: ele sustentou esse olhar, esperava ao menos que sua fisionomia não o traísse. Sentia-se penetrado de amor até nas dobras mais íntimas do coração. Nunca a havia adorado tanto, ele estava quase tão apaixonado quanto Mathilde. Se ela tivesse encontrado alguma frieza e coragem para manobrar, ele teria caído a seus pés, abjurando a inútil comédia. Ele teve a força suficiente para poder continuar a falar. Ah! Korasoff, exclamou interiormente, por que não estás aqui! Como teria necessidade de uma palavra para orientar minha conduta! Enquanto isso, sua voz dizia:

– Na falta de qualquer outro sentimento, o reconhecimento seria suficiente para afeiçoarme à marechala; ela mostrou indulgência por mim, consolou-me quando me desprezavam... Posso não ter uma fé ilimitada em certas aparências extremamente lisonjeiras, sem dúvida, mas talvez, também, muito pouco duráveis.

– Oh! Meu Deus!, exclamou Mathilde.

– Pois bem! Que garantia você me dará?, continuou Julien, com um acento firme e que parecia abandonar por um instante as formas prudentes da diplomacia. Que garantia, que Deus me dirá que a posição que parece disposta a mostrar neste instante irá durar mais de dois dias?

– O excesso de meu amor e de minha infelicidade se você não me ama mais, disse ela, tomando-lhe as mãos e voltando-se para ele.

   O movimento brusco que ela fez deslocou um pouco sua mantilha: Julien via seus ombros encantadores. Seus cabelos um pouco desalinhados suscitaram-lhe uma lembrança deliciosa...
   Ele ia ceder. Uma palavra imprudente, pensou, e faço recomeçar essa longa série de jornadas vividas no desespero. A sra. de Rênal encontrava razões para fazer o que seu coração lhe ditava: essa jovem da alta sociedade só deixa seu coração comover-se depois de provar a si mesma, por boas razões, que ele deve ficar comovido.
   Ele percebeu essa verdade num piscar de olhos e, num piscar de olhos, reencontrou também a coragem. 
   Retirou as mãos que Mathilde apertava nas suas e, com um respeito marcado, afastou-se um pouco dela. A coragem de um homem não pode ir mais longe. Ocupou-se a seguir em juntar todas as cartas da sra. de Fervaques que estavam espalhadas sobre o divã, e foi com a aparência de uma polidez extrema e tão cruel nesse instante que acrescentou

– A srta. de La Mole queira permitir-me refletir sobre tudo isso. Ele afastou-se rapidamente e deixou a biblioteca; ela o ouviu fechar sucessivamente todas as portas. 

   O monstro nem sequer perturbou-se, ela pensou.
   Mas que digo, monstro! Ele é sábio, prudente, bom; sou eu que cometo mais erros do que poderia imaginar. 
   Essa maneira de ver durou. Mathide sentiu-se quase feliz naquele dia, pois entregou-se completamente ao amor; dir-se-ia que jamais aquela alma fora agitada pelo orgulho, e que orgulho! 
   Ela estremeceu de horror quando, à noite, no salão, um lacaio anunciou a sra. de Fervaques; a voz daquele homem pareceu-lhe sinistra. Não pôde suportar a visão da marechala e afastou-se rapidamente. Julien, pouco envaidecido de sua penosa vitória, temera os olhares dela e não havia jantado na mansão de La Mole.
   Seu amor e sua felicidade aumentavam rapidamente à medida que se afastava do momento da batalha; ele estava já a censurar-se. Como pude resistir-lhe?, pensava; e se ela não mais me amar! Um momento pode mudar essa alma altiva, e devo convir que a tenho tratado de uma forma terrível.
   À noite, achou que devia absolutamente comparecer ao teatro de Opereta, no camarote da sra. de Fervaques. Ela o convidara expressamente: Mathilde não deixaria de saber de sua presença ou de sua ausência descortês. Apesar da evidência desse argumento, ele não teve a força, no começo da noite, de apresentar-se na sociedade. Falando, perderia a metade de sua felicidade.
   Soaram dez horas: foi preciso absolutamente apresentar-se.
   Por sorte, encontrou o camarote da marechala repleto de mulheres, e teve que ficar junto à porta, inteiramente oculto pelos chapéus. Essa posição salvou-o de um ridículo; os acentos divinos do desespero de Carolina no matrimonio secreto arrancaram-lhe lágrimas. A sra. de Fervaques viu essas lágrimas; elas formavam tal contraste com a firmeza masculina de sua expressão habitual que a alma dessa grande dama, há muito saturada com o que há de mais corrosivo no orgulho de quem subiu na vida, comoveu-se. O pouco que nela restava de um coração de mulher a fez falar. Quis deliciar-se com o som de sua voz naquele momento.

– Viu as damas de La Mole?, perguntou-lhe. Estão no terceiro andar. Julien prontamente inclinou-se para a plateia, apoiando-se de forma muito descortês sobre a balaustrada do camarote: ele viu Mathilde; os olhos dela brilhavam de lágrimas.

   Mas hoje não é o dia de irem ao teatro da Ópera?, pensou Julien. Que desvelo!
   Mathilde convencera a mãe a ir ao teatro de Opereta, apesar da inconveniência do lugar do camarote que uma amiga da casa apressara-se a oferecer-lhes. Ela queria ver se Julien estaria essa noite com a marechala.

continua página 294...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Um camarote no teatro de opereta (XXX)

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