quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (11.3) - A maior preocupação


Gabriel Garcia Márquez


(11.3)

para jomí garcía ascot
e maría luisa elío

continuando...

   A maior preocupação que tinha Fernanda nos seus anos de abandono era de que Meme viesse passar as primeiras férias e não encontrasse Aureliano Segundo em casa. A congestão pôs fim a esse temor. Quando Meme voltou, seus pais se tinham posto de acordo não só para que a menina acreditasse que Aureliano Segundo continuava sendo um esposo domesticado, como também para que ela não notasse a tristeza da casa. Todos os anos, durante dois meses, Aureliano Segundo representava o papel de marido exemplar e promovia festas com sorvetes e biscoitinhos, que a alegre e vivaz estudante amenizava com o cravo. Era já evidente que tinha herdado muito pouco do temperamento da mãe. Parecia mais uma segunda versão de Amaranta, quando esta ainda não conhecia a amargura e andava alvoroçando a casa com os seus passos de dança, aos doze, aos quatorze anos, antes que a paixão secreta por Pietro Crespi torcesse definitivamente o rumo do seu coração. Mas, ao contrário de Amaranta, ao contrário de todos, Meme não revelava ainda a sina solitária da família e parecia inteiramente de acordo com o mundo, mesmo quando se fechava na sala às duas da tarde para praticar o clavicórdio com uma disciplina inflexível. Era evidente que gostava de casa, que passava o ano todo sonhando com o alvoroço de adolescentes que a sua chegada provocava, e que não andava muito longe da vocação festiva e dos desregramentos hospitaleiros do pai. O primeiro signo dessa herança calamitosa se revelou nas terceiras férias, quando Meme apareceu em casa com quatro freiras e sessenta e oito colegas de classe, a quem convidara para passar uma semana com a família, por iniciativa própria e sem avisar.

— Que desgraça! — lamentou-se Fernanda. — Esta criatura é tão bárbara quanto o pai!

   Foi preciso pedir camas e redes aos vizinhos, estabelecer nove turnos na mesa, fixar horários para o banho e conseguir quarenta banquetas emprestadas para que as meninas de uniformes azuis e botinas de homem não andassem o dia inteiro trançando de um lado para o outro. O convite foi um desastre, porque as ruidosas colegiais mal acabavam de tomar café já tinham que começar os turnos para o almoço e em seguida para o jantar, e em toda a semana só puderam fazer um passeio às plantações. Ao anoitecer, as freiras estavam esgotadas, incapazes de se move r, de dar uma ordem a mais, e o tropel de adolescentes incansáveis ainda estava no quintal cantando desafinados hinos escolares. Um dia, por pouco não atropelam Úrsula, que se empenhava em ser útil exatamente onde mais atrapalhava. Outro dia, as freiras armaram um escândalo porque o Coronel Aureliano Buendía urinou debaixo do castanheiro sem se preocupar com o fato de as colegiais estarem no quintal. Amaranta esteve a ponto de semear o pânico, porque uma das freiras entrou na cozinha quando ela estava temperando a sopa e a única coisa que lhe ocorreu foi perguntar o que eram aqueles punhados de pó branco. 

— Arsênico — disse Amaranta.

   Na noite da chegada, as estudantes se atrapalharam de tal maneira tratando de ir ao reservado antes de se deitar que à uma da madrugada ainda estavam entrando as últimas. Fernanda então comprou setenta e dois penicos, mas só conseguiu transformar o problema noturno num problema matinal, porque desde o amanhecer havia diante do reservado uma longa fila de moças, cada uma com o seu penico na mão, esperando a vez para lavá-lo. Embora algumas sofressem de febre e várias ficassem com as mordidas dos mosquitos inflamadas, a maioria demonstrou uma resistência inquebrantável diante das dificuldades mais penosas e mesmo na hora de mais calor corriam no jardim. Quando finalmente foram embora, as flores estavam destruídas, os móveis partidos e as paredes cobertas de desenhos e letreiros, mas Fernanda perdoou-lhes os estragos diante do alívio da partida. Devolveu as camas e banquetas emprestadas e guardou os setenta e dois penicos no quarto de Melquíades. O cômodo enclausurado, em torno do qual girara em outros tempos a vida espiritual da casa, ficou conhecido a partir de então como o quarto dos penicos. Para o Coronel Aureliano Buendía, esse era o nome mais apropriado, porque enquanto o resto da família continuava se assombrando de que a peça de Melquíades fosse imune ao pó e à destruição, ele a via transformada numa lixeira. De qualquer maneira, não lhe parecia importar quem estava com razão, e se soube do destino do quarto foi porque Fernanda esteve passando e perturbando o seu trabalho durante uma tarde inteira para guardar os penicos.
   Por esses dias reapareceu José Arcadio Segundo em casa. Passava de longe pela varanda, sem cumprimentar ninguém, e se trancava na oficina para conversar com o coronel. Apesar de não poder vê -lo, Úrsula estudava ruído das suas botas de capataz e se surpreendia com a distância irremediável que separava da família, inclusive do irmão gêmeo, com quem brincava na infância os engenhosos truques de confusão e com o qual já não tinha nenhum traço em comum. Era comprido, solene, e tinha um ar pensativo, e uma tristeza de sarraceno, e um brilho lúgubre no rosto cor de outono. Era o que mais se parecia com a mãe, Santa Sofía de la Piedad. Úrsula reprovava em si a tendência a se esquecer dele ao falar da família, mas quando o sentiu de novo em casa e percebeu que o coronel o admitia na oficina durante as horas de trabalho, voltou a examinar as suas velhas lembranças e confirmou a crença de que em algum momento da infância ele se confundira com o irmão gêmeo, porque era ele e não o outro quem devia se chamar Aureliano. Ninguém conhecia os pormenores da sua vida. Em certa época, sabia-se que não tinha residência fixa, que criava galos na casa de Pilar Ternera e que às vezes ficava para dormir ali, mas que quase sempre passava a noite nos quartos das matronas francesas. Andava à deriva, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula.
   Realmente, José Arcadio Segundo não era membro da família, nem o seria jamais de outra, desde a madrugada distante em que o Coronel Gerineldo Márquez o levara ao quartel, não para que visse um fuzilamento, mas para que não se esquecesse para o resto da vida do sorriso triste e um pouco irônico do fuzilado. Aquela não era apenas a sua lembrança mais antiga, mas também a única da sua meninice. A outra, a de um ancião com um casaco anacrônico e um chapéu de asas de corvo que contava maravilhas diante de uma janela deslumbrante, não conseguia situar em nenhuma época. Era uma lembrança incerta, inteiramente desprovida de ensinamentos ou saudade, ao contrário da lembrança do fuzilado que, na realidade, tinha definido o rumo da sua vida e regressava à sua memória, cada vez mais nítida à medida que envelhecia, como se o transcurso do tempo a viesse aproximando. Úrsula tratou de aproveitar José Arcadio Segundo para que o Coronel Aureliano Buendía abandonasse o seu enclausuramento. “Convença-o a ir ao cinema”, dizia a ele. “Embora não goste dos filmes, terá pelo menos uma ocasião de respirar ar puro.” Mas não tardou a perceber que ele era tão insensível às suas súplicas quanta teria sido o coronel e que estavam encouraçados pela mesma impermeabilidade aos afetos. Embora nunca soubesse, nem o soubesse ninguém, do que falavam nas prolongadas entrevistas na oficina, entendeu que eram eles os únicos membros da família que pareciam vinculados por afinidades. A verdade é que nem José Arcadio Segundo poderia tirar o coronel do seu enclausuramento. A invasão escolar fora demais para os limites da sua paciência. Com o pretexto de que o quarto nupcial estava à mercê das traças apesar da destruição das apetitosas bonecas de Remedios, pendurou uma rede na oficina e agora só a abandonava para ir ao quintal fazer as suas necessidades. Úrsula não conseguiu alinhavar com ele uma conversa trivial. Sabia que ele não olhava os pratos de comida, mas que os punha no canto da mesa enquanto terminava o peixinho e não se importava se a sopa criasse crostas de gordura e se a carne esfriasse. Endureceu-se cada vez mais desde que o Coronel Gerineldo Márquez se negou a segui-lo numa guerra senil. Fechou-se com tranca dentro de si mesmo e a família acabou por pensar nele como se tivesse morrido. Não se voltou a ver nele nenhuma reação humana até um onze de outubro em que saiu à porta da rua para ver o desfile de um circo. Aquele tinha sido para o Coronel Aureliano Buendía um dia igual a todos os dos seus últimos anos. As cinco da madrugada foi acordado pelo alvoroço dos sapos e dos grilos do lado de fora da parede. A chuvinha persistia desde sábado e ele não teria tido necessidade de ouvir o seu minucioso cochicho nas folhas do jardim, porque de todo jeito tê-la-ia sentido no frio dos ossos. Estava, como sempre, ve stido com a manta de lã e com as ceroulas de algodão cru que continuava usando por comodidade, embora por causa do seu empoeirado anacronismo ele mesmo as chamasse de “cuecas de godo”. Pôs as calças justas, mas não deu os laços nem colocou no colarinho da camisa o botão de ouro que usava sempre, porque tinha o propósito de tomar um banho. Em seguida pôs a manta na cabeça, como um capuz, penteou com os dedos o bigode caído e foi urinar no quintal. Faltava tanto para que saísse o sol que José Arcadio Buendía ainda cochilava debaixo da coberta de sapé já podre por causa da chuva. Ele não o viu, como não o havia visto nunca, nem ouviu a frase incompreensível que lhe dirigiu o espectro de seu pai quando acordou sobressaltado pelo jato de urina quente que lhe salpicava os sapatos. Deixou o banho para mais tarde, não por causa do frio e da umidade, mas por causa da névoa opressiva de outubro. De volta à oficina sentiu o cheiro de pavio do fogo que Santa Sofía de la Piedad estava acendendo e esperou na cozinha que o café fervesse, para levar a sua caneca sem açúcar. Santa Sofía de la Piedad perguntou-lhe, como todas as manhãs, em que dia da semana estavam e ele respondeu que era terça-feira, onze de outubro. Vendo a impávida mulher dourada pelo brilho do fogo, que nem nesse nem em nenhum outro momento da sua vida parecia existir por completo, lembrou-se de repente de que um onze de outubro, em plena guerra, acordou-o a certeza brutal de que a mulher com quem tinha dormido estava morta. Estava, realmente, e não se esquecia da data porque ela também lhe havia perguntado uma hora antes em que dia estavam. Apesar da evocação, desta vez também não teve consciência de até que ponto o tinham abandonado os presságios, e enquanto o café fervia continuou pensando por pura curiosidade, mas sem o mais insignificante traço de nostalgia, na mulher cujo nome nunca soube e cujo rosto não viu com vida porque tinha chegado à sua rede tropeçando no escuro. Entretanto, no vazio de tantas mulheres como as que chegaram à sua vida da mesma forma, não se lembrou de que foi ela a que no delírio do primeiro encontro estava quase por naufragar nas próprias lágrimas e apenas uma hora antes de morrer jurara amá-lo até a morte. Não voltou a pensar nela, nem em nenhuma outra, depois que entrou na oficina com a xícara fumegante e acendeu a luz para contar os peixinhos de ouro que guardava num pote de lata. Havia dezessete. Desde que decidira não vendê-los, continuava fabricando dois peixinhos por dia, e quando completava vinte e cinco voltava a fundi-los no crisol para começar a fazê-los de novo. Trabalhou a manhã inteira, absorto, sem pensar em nada, sem se dar conta de que às dez aumentara a chuva e alguém passava diante da oficina gritando que fechassem as portas para que a casa não inundasse, e sem se dar conta sequer de si mesmo até que Úrsula entrou com o almoço e apagou a luz.

— Que chuva! — disse Úrsula.

— Outubro — disse ele.

   Ao dizê-lo, não levantou a vista do primeiro peixinho do dia, porque estava engastando os rubis dos olhos. Só quando o terminou e o pôs com os outros no pote é que começou a tomar a sopa. Em seguida comeu, muito devagar, o pedaço de carne ensopada com cebola, o arroz branco e as fatias de banana frita, tudo junto no mesmo prato. O seu apetite não se alterava nem nas melhores nem nas mais duras circunstâncias. Ao fim do almoço experimentou a derrota da ociosidade. Por uma espécie de superstição científica, nunca trabalhava, nem lia, nem tomava banho, nem fazia amor, antes de que transcorressem duas horas de digestão, e era uma crença tão arraigada que várias vezes atrasou operações de guerra para não submeter a tropa aos riscos de uma congestão. De modo que se deitou na rede, tirando a cera dos ouvidos com um canivete e, em poucos minutos, adormeceu. Sonhou que entrava numa casa vazia, de paredes brancas, e que se inquietava com a angústia de ser o primeiro ser humano que entrava nela. No sonho recordou que havia sonhado o mesmo na noite anterior e em muitas noites dos últimos anos, e soube que a imagem se apagaria de sua memória ao acordar, porque aquele sonho teimoso tinha a virtude de não ser recordado a não ser dentro do mesmo sonho. Um momento depois, com efeito, quando o barbeiro bateu na porta da oficina, o Coronel Aureliano Buendía acordou com a impressão de que involuntariamente tinha adormecido por breves segundos e que não tinha tido tempo de sonhar nada.

 — Hoje não — disse ao barbeiro. — Volte na sexta-feira.

    Tinha uma barba de três dias, salpicada de pelos brancos, mas achava melhor não se barbear, pois na sextafeira ia cortar o cabelo e podia fazer tudo ao mesmo tempo. O suor pegajoso da sesta indesejável reviveu nas suas axilas as cicatrizes dos furúnculos. Havia estiado, mas ainda não saíra o sol. O Coronel Aureliano Buendía emitiu um arroto sonoro que devolveu ao paladar a acidez da sopa e que foi como uma ordem do organismo para que jogasse a manta nos ombros e fosse ao reservado. Ali permaneceu mais do que o tempo necessário, agachado sobre a densa fermentação que subia do caixote de madeira, até que o costume lhe indicou que era hora de reiniciar o trabalho. Durante o tempo que durou a espera voltou a se lembrar de que era terça-feira e de que José Arcadio Segundo não tinha estado na oficina porque era dia de pagamento nas fazendas da companhia bananeira. Essa lembrança, como todas as dos últimos anos, passou sem que viesse ao caso pensar na guerra. Lembrou-se de que o Coronel Gerineldo Márquez lhe havia prometido, certa vez, conseguir um cavalo com uma estrela branca na testa e que nunca se voltara a falar disso. Em seguida, derivou para episódios dispersos, mas os evocou sem qualificá-los, porque de tanto não poder pensar em outra coisa tinha aprendido a pensar a frio, para que as lembranças iniludíveis não lhe estragassem nenhum sentimento. De volta à oficina, vendo que o ar começava a secar, decidiu que era um bom momento para tomar um banho, mas Amaranta se havia antecipado a ele. De modo que começou o segundo peixinho do dia. Estava engatando o rabo quando o sol saiu com tanta força que a claridade rangeu como uma canoa. O ar lavado pela chuvinha de três dias se encheu de tanajuras. Então caiu em si, percebendo que tinha vontade de urinar e estava adiando até que acabasse de armar o peixinho. Ia para o quintal, às quatro e dez, quando ouviu os instrumentos longínquos, as batidas do bumbo e a alegria das crianças, e pela primeira vez desde a juventude pisou conscientemente numa armadilha da saudade e reviveu a prodigiosa tarde de ciganos em que o seu pai o levou para conhecer o gelo. Santa Sofía de la Piedad abandonou o que estava fazendo na cozinha e correu para a porta.

— É o circo — gritou. 

   Em vez de se dirigir ao castanheiro, o Coronel Aureliano Buendía foi também para a porta da rua e se misturou com os curiosos que contemplavam o desfile. Viu uma mulher vestida de ouro no cangote de um elefante. Viu um dromedário triste. Viu um urso vestido de holandesa que marcava o compasso da música com uma concha e uma caçarola. Viu os palhaços virando cambalhotas no final do desfile e viu outra vez a cara da sua solidão miserável quando tudo acabou de passar e não ficou senão o luminoso espaço na rua e o ar cheio de tanajuras e uns quantos curiosos próximos ao precipício da incerteza. Então foi para o castanheiro, pensando no circo, e enquanto urinava tentou continuar pensando no circo, mas já não encontrou a lembrança. Meteu a cabeça entre os ombros, como um frango, e ficou imóvel com a testa apoiada no tronco do castanheiro. A família não soube de nada até o dia seguinte, às onze da manhã, quando Santa Sofía de la Piedad foi jogar o lixo no quintal e lhe chamou a atenção o fato de estarem baixando os urubus.  

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Cem Anos de Solidão (11.3) - A maior preocupação
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[1]  Cumbia é a dança popular colombiana por excelência. ( N. T.)

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