quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Os Bruzundangas - Capítulo especial: Os Samoiedas (a)

Os Bruzundangas

Lima Barreto

Hais tous maux où qu’ils soient, très doux Fils.
Joinville. São Luís.

Capítulo especial

Os Samoiedas

Vazios estais de Cristo, vós que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. 
SÃO PAULO aos Gálatas


   QUERIA evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado.
   Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais: ideias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dous séculos ou três.
   Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito.
   Lembrei-me, porém, que as minhas noticias daquela distante república não seriam completas, se não desse algumas informações sobre as suas letras; e resolvi vencer a hesitação imediatamente, como agora venço
   A Bruzundanga não podia deixar de tê-las, pois todo o povo, tribo, clã, todo o agregado humano, enfim, tem a sua literatura e o estudo dessas literaturas muito tem contribuído para nós nos conhecermos a nós mesmos, melhor nos compreendermos e mais perfeitamente nos ligarmos em sociedade, em humanidade, afinal.
   Seria uma falha minha nada dizer eu sobre as belas-letras da Bruzundanga que as tem como todos os países, a não ser o nosso que, conforme sentenciou a Gazeta de Notícias, não merece tê-las, pois o literato não tem função social na nossa sociedade, provocando tal opinião o protesto de um sociólogo inesperado. Devem estar lembrados deste episódio — creio eu. Continuemos, porém, na Bruzundanga.
   Nela, há a literatura oral e popular de cânticos, hinos, modinhas, fábulas, etc.; mas todo esse folk-lore não tem sido coligido e escrito, de modo que, dele, pouco lhes posso comunicar.
   Porém, um canto popular que me foi narrado com todo o sabor da ingenuidade e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui, embora a reprodução não guarde mais aquele encanto de frase simples e imagens familiares das anônimas narrações das coletividades humanas.
   Na versão dos populares da curiosa república, o conto se intitula — “O GENERAL E O DIABO” — havendo uma variante sob a alcunha de — “O PADRE E O DIABO”. Como não tivesse de cor nem as palavras da versão mais geral, nem as da variante, aproveitei o tema, alguma cousa do corpo da “história” e narro-a aqui, certamente muito desfigurada, sob a crisma de:


SUA EXCELÊNCIA

   O ministro saiu do baile da embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no coupé depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.
   Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das cousas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham...
   E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer, Lembrou-se do seu discurso de ainda agora:

“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos”...

   Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:

“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes”...

   O olhar, muito brilhante, cheio de admiração — o olhar do leader da oposição — foi o mais seguro penhor do efeito da frase...
   E quando terminou! Oh!

“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!”

   A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.
   O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.
   O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.
   O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.
   Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora, o mesmo minuto da sua saída da festa.

— Cocheiro, onde vamos?

   Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.
   Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.
   Gritou ao cocheiro:

— Onde vamos? Miserável, onde me levas?

   Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas.

— Cocheiro, onde me levas?

   Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel!

— Canalha, para, para, senão caro me pagarás!

   O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

— Miserável! Traidor! Para! Para!

   Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.
   O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças...
   Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

continua na página 05...
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   Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Um homem negro que trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
   Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
   O livro “Os Bruzundangas” de Lima Barreto só foi publicado em 1923 após sua morte. A obra é uma coletânea de crônicas onde o autor satiriza uma nação fictícia chamada Bruzundanga, que assim como vários países reais, está impregnado de corrupção, nepotismo, injustiça e crueldade.
   Com estilo ágil e zombaria, Lima Barreto critica as relações de interesse, os privilégios da nobreza e das oligarquias rurais, a desigualdade, as transações ilícitas, o uso de propina e tantas outras mazelas que destoem uma nação. Ao desfrutar da leitura desse livro você terá a sensação de que o autor descortinou como seria nossa política atual de forma satírica e real.
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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro

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