domingo, 17 de dezembro de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Acontecera com o dreyfusismo)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

   Acontecera com o dreyfusismo o mesmo que ocorrera com o casamento de Saint-Loup com a filha de Odette, casamento que a princípio dera o que falar: que viam na casa dos Saint-Loup todas as pessoas "que se conheciam", Gilberte poderia ter os costumes da própria Odette que, apesar disso, todos a "frequentariam" e aprovariam que ela censurasse, com empáfia, as novidades mesmo assimiladas. O dreyfusismo, agora, estava integrado numa série de coisas agradáveis e habituais. Quanto a indagar o que por si mesmo valia, ninguém, poderia agora, para admiti-lo, como não se pensara outrora para condená-lo. Ele era mais shocking. Era o que bastava. Mal se lembravam que ele o fora, como já sabe, ao cabo de algum tempo, se o pai de uma moça era ou não um necessário, podia-se dizer: "Não, é de um irmão ou de um cunhado que o está falando. Mas dele nunca se falou mal." Da mesma forma, certamente o anti-dreyfusismo e dreyfusismo, e o que ia à casa da duquesa de Montmorency e aprovar a lei dos três anos não podia ser o ruim. Em todo caso, misericórdia a todo pecado. Este esquecimento que se outorgara ao dreyfusismo favorecia os dreyfusistas. De resto, sobravam apenas eles na política, visto que, em dado momento, tiveram de adotar esse rótulo todos aqueles que desejaram participar do governo, mesmo se representassem o oposto do que o dreyfusismo, em sua chocante novidade, havia encarnado (no tempo em que Saint-Loup se inclinava por tendências perigosas): o antipatriotismo, a não religião, a anarquia etc. Assim, o dreyfusismo do Sr. Bontemps, invisível e essencial como o de todos os políticos, não se lhe notava mais do que os ossos sob a pele. Ninguém se recordava que ele fora dreyfusista, pois os mundanos são distraídos e esquecidos; também porque havia decorrido muito tempo, que eles afetavam ter sido maior ainda, visto que uma das ideias da moda era dizer que o período anterior à guerra estava separado da guerra por algo tão profundo e, aparentemente, tão prolongado quanto um período geológico; e o próprio Brichot, o nacionalista, quando aludia ao Caso Dreyfus, comentava: "Naqueles tempos pré-históricos." (Na verdade, essa mudança profunda operada pela guerra estava na razão inversa do valor dos espíritos afetados, pelo menos a partir de um certo grau. Nas camadas inferiores, os rematados idiotas e os perfeitos gozadores nem se preocupavam com a guerra. Mas, nos níveis superiores, aos que fazem da vida interior o seu ambiente, pouco lhes importa o vulto dos acontecimentos. O que, para eles, modifica profundamente a ordem dos pensamentos é antes alguma coisa que parece não ter em si qualquer importância e que lhes inverte a ordem cronológica do tempo, tornando-os contemporâneos de outra época de suas vidas.

   Pode-se, de modo prático, perceber a beleza das páginas que tais coisas lhes inspiram: um canto de pássaro no parque de Montboissier, ou uma brisa que recende ao perfume do resedá são, evidentemente, fatos de menor consequência que as grandes datas da Revolução e do Império. Todavia, inspiraram à Chateaubriand, nas Memórias de Além-túmulo, algumas páginas de valia infinitamente superior.) Os termos dreyfusista e antidreyfusista já careciam de sentido, diziam as mesmas pessoas que teriam ficado pasmas e revoltadas se lhes contassem que, provavelmente, dentro de alguns séculos, ou talvez menos, palavras como boche só teriam o valor de curiosidade, da mesma forma que sans-culotte, chouan ou bleu.

["Boche, alemão; sansculotte, revolucionário republicano (da Revolução Francesa); chouan, nome que se dava ao revoltoso da região da Vendéia, na França, que se insurgiu contra a Revolução Francesa em 1793; bleu, popularmente, todo recruta em serviço militar. (N. do T)] -usqu'au-boutiste, partidário do jusqu'au-boutisme, termo criado por Maurice, em 1914, para radicalizar uma posição nacionalista antigermânica. A tradução literal seria "até-o-finzismo" e "até-o-finzistá'. (N. do T)] 

   O Sr. Bontemps não queria ouvir falar de paz sem que a Alemanha fosse reduzida à mesma fragmentação que na Idade Média, sem que se declarasse a degradação da casa de Hohenzollern, e Guilherme II levasse doze tiros. Numa palavra, era o que Brichot denominava um jusqu'au-boutiste, ['partido dos duques", do qual soubera ser o Sr. d'Haussonville um dos maiores da Academia]; era o breve de civismo que lhe poderiam dar é claro que nos três primeiros dias da temperança se sentira um tanto deslocada no meio de pessoas que manifestavam desejos de conhecê-la, e foi num tom ligeiramente rabugento que Verdurin respondeu: - O conde, minha cara Sra. Bontemps, que é mesmo o duque d'Haussonville que você me acaba de apresentar? Com total ignorância e ausência de associação entre o nome de HaussonviIle e o atual quer seja, pelo contrário, por excessiva instrução e associação de ideia.

   A partir do quarto dia, ela principiara a instalar-se de maneira só no faubourg Saint-Germain. Às vezes, notavam-se ainda a seu redor os estranhos conhecidos de uma sociedade que ignoravam, e que eram naturalmente como que os restos de casca ao redor do pinto, pelos que conheciam de que ovo saíra a Sra. Bontemps. Mas no fim da primeira quinzena já os havia sacudido antes de se completar um mês, quando ela dizia: - Vou à casa dos Lévy -, entendiam, sem que ela precisasse explicar, que se tratava dos Lévis-Mire nenhuma duquesa se deitaria sem ouvir da Sra. Bontemps ou da Sra. Verdurin, ao menos por telefone, o que dizia o comunicado da noite, o que fora omitido, e como andavam as coisas na Grécia, qual a ofensiva que se preparava, numa palavra; aquilo que o público só saberia no dia seguinte, ou mais tarde ainda, e de que desse modo, fazia, como as costureiras, uma espécie de exibição privada. Na conversa, a Sra. Verdurin, para comunicar as novidades, dizia: - "nós" falamos à França.- Pois bem, é isto: nós exigimos do rei da Grécia que se retire do Pelo etc., nós lhe enviamos etc. - E nesses relatos retornava o tempo todo o G. Q. G. ("telefonei ao G. Q. G." ), a abreviatura que ela pronunciava com o mesmo ar para as mulheres que, antigamente, não conhecendo o príncipe de Agrigento, perguntariam sorrindo quando falavam dele, e para mostrar-se a par do assunto: "Gri tem prazer reservado apenas aos mundanos em épocas mais tranquilas, mas nas grandes crises até o povo experimenta. Nosso mordomo, por exemplo, falavam do rei da Grécia, era capaz de dizer, graças aos jornais, como Guilherme-Tino - apesar de ter sido até então mais vulgar a sua familiaridade como os inventada por ele mesmo, como quando, outrora, ao referir-se ao rei da Espanha dizia: "Fonfonse". Aliás, pôde-se notar que, à medida que aumentava o número de pessoas ilustres que se relacionavam com a Sra. Verdurin, diminuía o número que ela chamava de "maçantes". Por uma espécie de transformação mágica a pessoa tida como "maçante", que lhe fazia uma visita e solicitava um contrato tornava-se de súbito alguém agradável e inteligente. Em suma, ao cabo de um tempo o número dos "maçantes" diminuiu tanto que "o medo e a impossibilidade de aborrecer", que tinham tido um lugar tão grande na conversa, desempenhava papel tão decisivo na vida da Sra. Verdurin, desapareceram quase por completo. Dir-se-ia que, no fim da vida, essa impossibilidade de aborrecer-se (que antigamente, aliás, ela assegurava não ter sentido na primeira mocidade) a fazia sofrer menos, como certas enxaquecas, ou certas asmas de caráter nervoso, que diminuem de intensidade quando se envelhece. E o receio de aborrecer-se teria com certeza abandonado inteiramente a Sra. Verdurin, por falta de "maçantes", se ela, em pequena escala, não houvesse substituído os que já não o eram por outros, recrutados entre os antigos fiéis.

   De resto, para terminar com as informações sobre as duquesas que agora frequentavam a casa da Sra. Verdurin, elas iam buscar ali, sem o perceberem, exatamente a mesma coisa que os dreyfusistas antigamente, ou seja, um prazer mundano composto de tal modo que sua degustação fartasse as curiosidades políticas e satisfizesse a necessidade de comentar entre si os incidentes lidos nos jornais. A Sra. Verdurin dizia:

- Venha às cinco horas falar da guerra -, como outrora "falar do Caso Dreyfus", e, no intervalo: -Venham ouvir Morel.

   Ora, Morel não deveria comparecer, pelo simples motivo de que não fora dispensado do serviço militar. Simplesmente não se apresentara, era um desertor, mas ninguém o sabia.

continua na página 038...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
Volume 7
O Tempo Recuperado (Acontecera com o dreyfusismo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário