quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: Governo e Constituição

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


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Governo e Constituição


   Os Estados contemporâneos, democráticos ou não, costumam ser constitucionais, isto é, estão submetidos a uma lei que se sobrepõe a todas as outras e em cujo arcabouço geral a ordem jurídica se inscreve, chamada normalmente de Constituição. Não é necessário que a Constituição seja escrita ou esteja corporificada num documento único. O que interessa é a existência de um conjunto de normas, até mesmo costumeiras, que subordinem todas as outras, configurando também princípios gerais a que as outras hão forçosamente de conformar-se. Neste sentido, nos países democráticos a Constituição é o verdadeiro pacto nacional, ou seja, o conjunto de normas sob as quais o país escolheu viver.
   O estudo das Constituições é o objeto de um vastíssimo ramo do direito — o direito constitucional, de enorme complexidade. Dentro dele, abre-se espaço para o exame de questões muito importantes, até de conteúdo filosófico, que um manual deste tipo não pode enfocar, dado seu caráter prático e elementar. Mas deve ser lembrado que poucos dos assuntos tratados aqui ficam mais empobrecidos com a simplificação do que este, o que significa, para quem tem maior interesse por ele, a necessidade imperiosa de informação adicional, na vasta bibliografia disponível.
   Fisicamente, uma Constituição como a brasileira é, para a maioria das pessoas, um documento intimidador, de leitura difícil ou quase impossível. Isso se deve (além, é claro, de se tratar de matéria cujo perfeito entendimento requer qualificação especializada) à linguagem necessariamente impessoal, comum a toda lei e à arrumação técnica dos diversos dispositivos. Não é indispensável que o texto constitucional seja estruturado da forma consagrada na técnica legislativa brasileira. A Constituição poderia ter redação e estrutura diversas e, portanto, não se deve manter a impressão de que ela é “uma coisa cheia de artigos e parágrafos”. Deve-se atentar, sim, no seu conteúdo e no seu significado.
   De qualquer maneira, não custa, para ajudar a que se perca o medo de enfrentar um texto constitucional, esclarecer como as Constituições brasileiras costumam ser fisicamente estruturadas. As primeiras palavras da Constituição são o preâmbulo, uma declaração curta que normalmente se refere à fonte de que emana a lei constitucional (a Constituição vigente no Brasil menciona também a proteção de Deus). Em seguida, o texto vai dividido em títulos muito genéricos e abrangentes. Os títulos, por sua vez, dividem-se em capítulos, e os capítulos podem dividir-se em seções. Os capítulos ou seções são compostos de artigos, os quais também podem conter parágrafos (indicados, quando mais de um, pelo símbolo seguido do ordinal correspondente; quando só há um parágrafo, o costume é escrever “parágrafo único”, por extenso). Em caso de enumeração, dois recursos são usados. O mais abrangente se denomina inciso e é representado por um numerai romano (as seções, capítulos e títulos também são, mas o exame do texto mostrará que não há possibilidade de confusão). O mais “pormenorizado” se chama alínea e é designado por uma letra minúscula, em ordem alfabética.
   A Constituição emana, por definição, do Poder Constituinte. Tratando-se de poder tão alto na pirâmide da ordem jurídica, que plasmará, por assim dizer, toda a índole do Estado, segue-se a inferência de que o Poder Constituinte é inerente a quem detém a soberania. Se, no Brasil, adotamos como princípio universal a soberania popular, reside então no povo o Poder Constituinte. Seria legítima, por conseguinte, a Constituição que fosse o resultado do exercício concreto dessa soberania, através dos mecanismos de representação e participação reconhecidos. E, como se sabe pelo estudo de nossa história, este não costuma ser o caso do Brasil, que já teve diversas Constituições. As Constituições podem ser de dois tipos:

a) promulgadas, quando foram votadas por uma assembleia eleita para este fim, e

b) outorgadas, quando são escritas por um ou mais juristas e impostas ao país pelo governante. Nossa primeira Constituição, outorgada no Primeiro Império, em 1824, deveria ter sido fruto do trabalho de uma Assembleia Constituinte, com representantes das então 17 províncias brasileiras. Isto não quer dizer que resultaria de um processo democrático, como o entendemos hoje, porque se tratava de representantes de oligarquias (eleitos indiretamente) a que a grande massa do povo não tinha acesso, até mesmo porque vivíamos em pleno regime escravocrata.  

    De qualquer forma, a discussão é acadêmica, porque d. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte e outorgou sua própria Constituição ao país, cujo regime ficou definido como “monárquico, hereditário e constitucional representativo”. “Inviolável e sagrado”, o imperador exercia ainda o Poder Moderador, figura hoje inexistente, que lhe conferia enorme gama de prerrogativas e atribuições, tornadas mais significativas pelo fato de que cabia a ele também a chefia do Poder Executivo. São ainda características interessantes da Constituição de 1824: a Câmara dos Deputados era composta por representantes eleitos para um mandato temporário e o Senado era vitalício, com seus membros nomeados pelo imperador a partir de listas tríplices de eleitos; a renda mínima para que se pudesse ser eleito deputado era de 200 mil-réis anuais líquidos e, para senador, 800 mil-réis; as eleições eram indiretas e os trabalhadores não votavam, pois não possuíam a renda mínima necessária para serem eleitores (por isso se diz que a eleição era censitária, isto é, só podia ser eleitor quem possuísse uma determinada renda; para ser eleito, já vimos acima a renda mínima); os analfabetos podiam votar, porque a maioria dos proprietários rurais não era alfabetizada; a religião oficial era a Católica Apostólica Romana, cabendo ao imperador a nomeação dos bispos.
   As Constituições republicanas se sucederam a partir de 1891, com a promulgação da primeira, largamente inspirada em sua equivalente americana e fruto, inicialmente, do trabalho de uma comissão de juristas, o chamado anteprojeto. O projeto que resultou desse trabalho foi promulgado por decreto, sujeito à aprovação de um Congresso Constituinte, o que terminou por acontecer depois de um processo tumultuado.
   Novamente a participação popular na elaboração da Constituição foi mínima. As mudanças na ordem jurídica, contudo, foram bastante amplas, a começar, é claro, pela extinção da monarquia e do Poder Moderador. Instituiu-se o sufrágio universal, isto é, o direito de voto para todos os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos, sem distinção de renda, mas os analfabetos perderam o direito ao voto; o mandato dos senadores se tornou temporário (nove anos), enquanto o dos deputados se fixou em três anos, eleitos pelo voto distrital misto (nos próximos capítulos examinaremos melhor isto); adotou-se a forma de Estado federativo (que também veremos adiante), com vinte estados e um distrito federal; instituiu-se a eleição direta em todos os níveis, inclusive para presidente da República; a Igreja Católica deixou de ser oficial; criaram-se garantias individuais amplas, tais como o habeas corpus, a liberdade de opinião e de imprensa, o direito de reunião, o sigilo de correspondência etc. Contudo, esses avanços padeceram ainda, como padeceriam outros que viriam a seguir, de um distanciamento entre a lei e a realidade — o fenômeno, conhecido pelos brasileiros, da “lei que não cola” — pois, até hoje, muitos dos princípios consagrados na Constituição de 1891 continuam a vigorar, mas apenas no papel. 
   Depois da Revolução de 1930, em período muito conturbado da vida brasileira, uma Assembleia Constituinte elabora e promulga, em 1934, uma nova Constituição, que também representou algumas mudanças, tais como a extensão do direito de voto às mulheres e certos benefícios para os trabalhadores, entre os quais salário mínimo, férias remuneradas e indenização por demissão sem justa causa.
   A Constituição de 1934, entretanto, teve vida curta. Em 10 de novembro de 1937, depois de um golpe que fechou o Congresso, o Brasil recebia nova Constituição, desta feita outorgada e de cunho declaradamente autoritário. O presidente da República (leia-se ditador) recebeu poderes amplíssimos, desde a decretação, a seu arbítrio, de estado de emergência nacional (com a consequente suspensão das liberdades públicas) até a nomeação de interventores para os estados. Quanto aos trabalhadores, preservaram-se as conquistas trabalhistas de cunho paternalista e se cerceou a liberdade sindical, abolindo-se até mesmo o direito de greve.
   Esse período, conhecido como Estado Novo, abrangeu uma ditadura opressiva e mesmo sanguinária, cujo fim só chegou com o golpe de 29 de outubro de 1945, que depôs o ditador e promoveu eleições diretas para a Presidência da República e para uma Assembleia Constituinte. Pode-se afirmar que, na formação dessa Assembleia Constituinte, o grau de participação popular foi bem maior que nos casos precedentes, embora longe de ser tão significativo quanto devia. O alto número de analfabetos, as dificuldades burocráticas para votar, a existência de currais eleitorais e fraudes generalizadas contribuíram de modo decisivo para tornar essa participação comparativamente reduzida. A Constituição de 1946 é conhecida como liberal, e muitos de seus dispositivos, de feitio progressista e alicerçados em princípios avançados, nunca passaram de letra morta. Mas não chega a ser injusto dizer-se que ela foi a mais democrática que tivemos, como frequentemente se alega.
   A essa Constituição seguiu-se a situação criada a partir de 1964. Instalado no poder, o governo militar inicialmente baixou instrumentos denominados atos institucionais, de que continuou a dispor mesmo depois de ter promulgado sua Constituição. Ao declarar-se vitorioso, o movimento de 1964, em suas próprias palavras, “investiu-se do Poder Constituinte”. Alicerçado nessa auto investidura, que na verdade usurpou a soberania popular, ele exerceu esse Poder Constituinte, de início, através dos atos institucionais. Seguiram-se, convivendo ainda com os atos institucionais, a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969, tão extensa e restritiva que é considerada por muitos uma outra Constituição. Em 1979 foram feitas novas alterações constitucionais, inclusive com a revogação dos atos institucionais, no que conflitassem com a Constituição.
   Com o advento da chamada Nova República, o Brasil convocou uma Assembleia Constituinte para elaborar a nova Constituição, a partir de um anteprojeto preparado por uma comissão de notáveis indicada pelo Ministério da Justiça. O crescente grau de conscientização política da população, canalizado em grande parte por entidades associativas dos tipos mais variados, aumentou muito o interesse popular pela Constituição.
   Contudo, uma consequência desse interesse em torno da Constituição foi a hipertrofia de sua imagem pública. Pretendeu-se incluir no texto constitucional uma gama de dispositivos excessivamente específicos — como se do texto dependesse o atendimento direto de todo tipo de reivindicação ou aspiração. Paralelamente, atribuiu-se à Constituição um poder que, por certo, nenhum texto legal consegue ter, ou seja, resolver todos os problemas da sociedade. Por isso, a chamada “Constituição cidadã”, como passou a ser conhecida a Constituição de 88, listou mais direitos que deveres, atendeu a reivindicações setoriais e regionais e, de certa forma, “engessou” o desenvolvimento brasileiro. Por isso mesmo, começou a ser reformada já em 1993, num processo que ainda está longe de seu fim.
   Desprezando o trabalho da Comissão Arinos (como se chamou a comissão de notáveis que redigiu o anteprojeto), os constituintes votaram uma Constituição muito extensa, composta de 245 artigos e mais setenta de disposições transitórias. As grandes novidades da Constituição de 1988, comparada às anteriores, tratam da extensão do sufrágio universal, da participação popular no processo legislativo e da possibilidade de edição de medidas provisórias (com força de lei) pelo presidente da República.
   A Constituição estendeu os limites do sufrágio universal, tornando facultativo o voto dos analfabetos, jovens (entre 16 e 18 anos) e idosos (maiores de setenta anos). Quanto à participação popular, até 1988 as Constituições brasileiras contemplavam a representação, mas não a participação. Na representação, o cidadão abre mão de sua capacidade de participar do processo legislativo, em nome de alguém que o representa através do voto. Já a participação é direta, através de plebiscitos, referendos e iniciativa popular.
   O plebiscito é uma consulta popular sobre uma medida a ser tomada. O referendo é uma consulta popular sobre alguma medida que já foi tomada. Por exemplo, faz-se uma lei e esta é submetida à população, que referenda ou não o seu texto. Estas duas formas de participação popular servem para consultar a população sobre questões que não são partidárias, mas da sociedade como um todo. Aborto, divórcio, determinado tipo de imposto etc. são temas típicos de consulta popular. No caso brasileiro, o plebiscito de 1961 para saber se a população queria continuar com o sistema parlamentarista foi um caso típico de referendo (embora tenha ficado conhecido como plebiscito). Já o plebiscito de 1993, sobre a forma de governo (monarquia ou república) e o sistema (parlamentarismo ou presidencialismo) a serem adotados no país, foi chamado corretamente de plebiscito.
   A iniciativa popular foi inspirada na Constituição americana. Se um grupo de cidadãos quiser enviar um projeto de lei à Câmara dos Deputados, poderá fazê-lo sem a intermediação dos partidos políticos, mas o processo não é simples; o projeto de lei deve ser subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco estados, com não menos de 3/10% dos eleitores de cada um deles.
   Finalmente, há o caso das medidas provisórias, inspirado na Constituição italiana, parlamentarista. Com este mecanismo, colocou-se enorme poder nas mãos do presidente da República, pois este, em caso de “relevância e urgência”, pode adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Estas medidas devem ser convertidas em lei no prazo máximo de trinta dias, caso contrário perdem a eficácia. Mas o Poder Executivo pode reeditá-las, o que tem feito reiteradamente. Até agora, as tentativas de se limitar o número e o prazo de validade das MPs não têm obtido êxito.
   Na verdade, a existência de uma Constituição, por melhor que ela seja, não quer por si dizer muita coisa. É uma piada corrente afirmar que, se Constituição resolvesse alguma coisa, a Bolívia, que já teve dezenas de Constituições, seria mais desenvolvida que a Suécia. Enquanto os Estados Unidos, país desenvolvido e democrático, estão em sua primeira e única Constituição, a França, igualmente desenvolvida e democrática, está em sua trigésima Constituição.
   A Constituição é apenas um marco referencial, um arcabouço genérico, uma definição de princípios abrangentes. Cabe à lei ordinária reger as questões do dia-a-dia dentro desse arcabouço, e cabe à sociedade promover os meios para cumprir os ideais corporificados no texto constitucional. Uma Constituição não existe no vácuo, mas em funcionamento. E só funcionará se, além de legítima, for um texto suficientemente genérico e econômico (as Constituições muito longas e detalhadas costumam, historicamente, ter vida curta, o que não é de surpreender) para acomodar o pluralismo que se pretende numa sociedade democrática e para ter o grau de flexibilidade necessário à sua sobrevivência diante de futuras alterações da realidade.

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1 - Você acha que é possível haver um Estado democrático sem Constituição? 

2 - Dê uma olhada em alguns textos constitucionais, não só do Brasil mas de outros países. Depois disso, você acha que conceberia uma estrutura formal para a Constituição brasileira melhor do que a atualmente adotada? 

3 - Imagine que você é uma espécie de “reformador constitucional” e escolha um dispositivo (artigo, seção ou capítulo) da Constituição para mudá-lo, dando-lhe o conteúdo e a redação que achar melhor. 

4 - Na sua opinião, o Poder Constituinte deve residir mesmo no povo ou estaria melhor se conferido a um grupo especialmente preparado para a tarefa? 

5 - Experimente dar uma ideia do que você entende por uma Constituição legítima. 

6 - Você acha necessário que a Constituição brasileira contenha dispositivos mencionando especificamente os problemas da mulher, do negro, do índio e de outras categorias discriminadas? Em caso afirmativo, por quê?

continua na página 082...

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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Governo e Constituição
João Ubaldo Ribeiro - Política: Escolha de Governantes(1)
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

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