terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXIII - Smorzando

Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA


O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos


DISPERSAS 


SMORZANDO

O véu da tarde cai pelas quebradas
Das serras altaneiras;
As aves condoreiras
Rompem da mata em místicas risadas
O largo espaço intérmino cindindo.

A livre natureza,
Humildemente, pura, vai caindo,
Caindo de joelhos
Como esse denso véu
Cai na viril e rútila grandeza
Do sol que desce em borbotões vermelhos
Como uma mancha tropical no céu.

E vibra a Ave-Maria
Como um soluço, estranho, indefinido;
Talvez como um gemido
Dentre a escalvada e agreste serrania.

E desce e desce e desce
De toda a imensidade
A salutar carícia de uma prece,
O eflúvio da saudade
Que alaga o nosso peito heroicamente

Como o luar de um treno
Mavioso e emoliente,
Mais doce que o sorrir do Nazareno.


GIULIETTA DIONESI
(Desterro)
Ao seu violino

Ah! Giulietta! Os sons do teu violino
Choram, suspiram, rugem como o leão,
Lembram sonoro rio cristalino
E tem soluços como um coração.

Ó da harmonia divinal sereia!
Rosas e estrelas e canções de ninhos
Nas cordas do violino que gorjeia
Passam cantando como os passarinhos.

Não sei que estranho espírito sereno
Para a harmonia essa alma te inspirou
Que dentro dum violino tão pequeno
A música do espaço concentrou!

Ah! peregrina do país do sonho,
Flor luminosa de região sonora,
No teu suave coração risonho
Vibram triunfantes os clarins da aurora.

Tudo dentro de ti gorjeia e trina,
Como trina e gorjeia o rouxinol
Nas paisagens silvestres da campina,
Aos esplendores siderais do sol.

Quem não há de chorar e rir não há de
De amor, de saudade e de esperança,
De assombro, vendo que na tenra idade
Já és tão grande, sendo uma criança?!

Os astros do cerúleo firmamento,
As meigas flores, o infinito mar
Que digam como tu nesse instrumento
Sabes sorrir e sabes soluçar...

Domadora feliz do som profundo,
Deusa imortal de ignotas harmonias,
Vai triunfar nas vastidões do mundo,
Da glória nas eternas sinfonias.


FILETES
(Desterro)

I
Ó pérola nitente,
Ó pérola do amor,
Ó imã redolente
Das pétalas da flor;

Ó lágrima sutil,
Ó lágrima ideal,
Do côncavo de anil
Caída no cristal

Do lago transparente,
Harmoniosamente,
Aos flocos do luar...

Tu és como as essências,
Conheces as ciências
Ocultas... de matar!

II
Cintila a estrela-d’alva
Bem como o olhar do crente!
Perpassa no ambiente
O fresco olor da malva.

Um tic de lirismo,
Simpático e harmônico,
Derrama no sinfônico
Riacho – um misticismo.

Há músicas supremas,
Um mundo de problemas
Nos montes seculares.

E como um lírio roxo,
A alma em canto frouxo
Emigra para os ares.

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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.
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Organização e Estudo
Lauro Junkes
Presidente da Academia Catarinense de Letras
© Copyright 2008
Avenida Gráfica e Editora Ltda.

Projeto Gráfico, Editoração e Capa
ESPAÇO CRIAÇÃO ARQUITETURA DESIGN E COMPUTAÇÃO GRÁFICA LTDA.
www.espacoecriacao.com.br
Fone/Fax: (48) 3028.7799

Revisão Linguístico-Ortográfica
PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES
PROF. Dr. LAURO JUNKES

Impressão e Acabamento
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Formato
14 x 21cm

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167
S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898
                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)
                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.
                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.
                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1

"A gente só tem saída na poesia."

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