sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Marcel Proust - A Prisioneira (Dentre as razões)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira

continuando...

   Dentre as razões que faziam feliz o Sr. de Charlus com o casamento dos dois jovens, havia esta: a sobrinha de Jupien seria de algum modo uma extensão da personalidade de Morel e, assim, do poder e ao mesmo tempo do conhecimento que o barão possuía acerca dele. O Sr. de Charlus não teria um segundo sequer o menor escrúpulo de "enganar", no sentido conjugal do termo, a futura esposa do violinista. Mas ter "um jovem casal" para dirigir, sentir-se o protetor temido e todo poderoso da mulher de Morel, a qual considerando o barão como um deus provaria desse modo que o caro Morel lhe inculcara essa idéia e assim conteria algo de Morel, fizeram variar o gênero de dominação do Sr, de Charlus e nascer em sua "coisa", Morel, uma criatura a mais, o esposo, ou seja, conferiram-lhe algo a mais, algo novo e curioso para amar nele.

   Talvez até essa dominação fosse agora maior que nunca. Pois, naquilo em que Morel, sozinho por assim dizer, resistia muitas vezes ao barão, a quem se sentia seguro de reconquistar, uma vez casado, tremeria mais facilmente pelo seu lar, seu apartamento, seu futuro, e ofereceria às vontades do Sr. de Charlus mais superfície e mais tomada. Tudo isto, e mais, em caso de necessidade, nas noites de tédio, atear a guerra entre marido e mulher (o barão jamais detestara os quadros de batalha), agradava ao Sr. de Charlus. Menos, entretanto, do que pensar na dependência em que viveria dele o jovem casal. O amor do Sr. de Charlus por Morel reassumia uma novidade deliciosa quando ele dizia consigo: sua mulher também será minha, tanto quanto ele é meu, eles só agirão de modo a não me contrariar, obedecerão aos meus caprichos e, assim, ela será um sinal (até agora desconhecido para mim) do que eu quase esquecera e que é tão sensível ao meu coração como para todo mundo, um sinal para aqueles que me verão protegê-los, hospedá-los, e para mim mesmo, de que Morel é meu. Dessa evidência aos olhos dos outros e a seus próprios, sentia-se o Sr. de Charlus mais feliz que de tudo mais. Pois a posse daquilo que se ama é uma alegria maior ainda que a do amor. Freqüentemente os que escondem a todos essa posse fazem-no apenas de medo que o objeto querido lhes seja roubado. E essa prudência de se calarem diminui-lhes a felicidade.

   lhes a felicidade. Talvez sejam lembrados de que antigamente Morel dissera ao barão que seu desejo era seduzir uma mocinha, especialmente esta, e que, para consegui-lo lhe prometeria casamento, mas, uma vez realizada a violação, ele "daria o fora para bem longe". Porém isto o Sr. de Charlus havia esquecido, diante das confissões de amor pela sobrinha de Jupien que Morel acabava de lhe fazer. Ainda mais, o mesmo talvez tivesse ocorrido com Morel. Talvez houvesse uma verdadeira lacuna entre a natureza de Morel, tal como a confessara de modo cínico e talvez mesmo habilmente exagerara e o momento em que ela voltara a impor-se. Convivendo mais com a moça, agradara-se dela e amava-a. Conhecia-se tão pouco que certamente imaginava estar amando, talvez mesmo para sempre. Claro, seu desejo inicial, seu projeto criminoso, subsistiam, mas recobertos por tantos sentimentos superpostos que nada nos pode afirmar que o violinista não fora sincero ao dizer que aquele desejo vicioso não era o verdadeiro móvel do seu ato. Aliás, houve um período de curta duração em que, sem que ele propriamente o confessasse, tal casamento lhe pareceu necessário. Naquele momento, Morel sofria de cãibras muito fortes na mão e via-se obrigado a encarar a eventualidade de ter de deixar de tocar violino. Como, afora a sua arte, era de uma preguiça incompreensível, impunha-se a necessidade de se fazer sustentar, e ele preferia sê-lo pela sobrinha de Jupien do que pelo Sr. de Charlus, oferecendo-lhe aquela combinação maior liberdade, e também uma grande escolha de mulheres diferentes, tanto pelas aprendizes sempre novas que ele encarregaria a sobrinha de Jupien de corromper, como pelas senhoras ricas às quais a prostituiria. Que sua futura esposa pudesse recusar-se a condescender a tais complacências e fosse perversa a esse ponto, nem por um instante entrava nos cálculos de Morel. Além disso, passaram ao segundo plano, dando lugar ao amor puro, logo que as cãibras cessaram. O violino bastaria, com o que lhe dava o Sr. de Charlus, e as exigências deste certamente diminuiriam uma vez que ele, Morel, estivesse casado com a moça. O casamento era a coisa urgente, por causa de seu amor e no interesse de sua liberdade. Mandou pedir a mão da sobrinha de Jupien, que a consultou. Afinal, não havia necessidade disto. A paixão da moça pelo violinista jorrava em torno dela, como seus cabelos quando estavam soltos, como a alegria de seus olhares esparsos. Em Morel, quase tudo que lhe era agradável ou proveitoso despertava emoções morais e palavras do mesmo gênero, às vezes até lágrimas.

   Portanto, era com sinceridade - se tal palavra pode aplicar-se a ele - que mantinha com a sobrinha de Jupien conversas tão sentimentais (sentimentais são igualmente as que tantos jovens nobres, desejando não fazer coisa alguma na vida, mantêm com a deslumbrante filha de um burguês riquíssimo) como eram de uma baixeza sem disfarce as teorias que ele havia exposto ao Sr. de Charlus a propósito da sedução e do defloramento. Só que o entusiasmo virtuoso a respeito de uma pessoa que lhe causava prazer e os solenes compromissos que assumia para com ela tinham o seu reverso em Morel. Desde que a pessoa já não lhe causasse prazer, ou até, por exemplo, se a obrigação de satisfazer as promessas feitas lhe provocava desagrado, ela tornava-se logo, da parte de Morel, objeto de uma antipatia que ele justificava aos próprios olhos, e que, após algumas perturbações neurastênicas, permitia-lhe provar a si mesmo, uma vez reconquistada a euforia de seu sistema nervoso, que estava até mesmo considerando as coisas de um ponto de vista puramente virtuoso, isento de toda obrigação.

   Desse modo, no fim de sua temporada em Balbec, havia perdido em não sei o que todo o seu dinheiro e, não tendo ousado dizê-lo ao Sr. de Charlus, buscava alguém a quem pudesse pedi-lo. Aprendera com o pai (que, apesar de tudo, proibira-lhe tornar-se um "facadista") que, nesse caso, é conveniente escrever, à pessoa a quem se deseja dirigir-se, "que se tem necessidade de lhe falar de negócios". Esta fórmula mágica encantava de tal maneira Morel, que imagino tenha desejado perder dinheiro apenas pelo prazer de solicitar um encontro "para negócios". Depois, na vida, viu que a fórmula não possuía toda a virtude que lhe atribuía. Havia constatado que as pessoas a quem ele próprio não teria escrito se não fosse para aquilo, não lhe tinham respondido cinco minutos após terem recebido a carta "para tratar de negócios".

   Se a tarde se escoava sem que Morel obtivesse uma resposta, não lhe passava pela cabeça que, na melhor das hipóteses, o senhor solicitado não tivesse voltado para casa, pudesse ter outras cartas para escrever, nem que estivesse viajando, ou se encontrasse enfermo etc. Se, por extraordinário acaso, Morel recebia uma resposta marcando-lhe um encontro para a manhã seguinte, abordava o solicitado com estas palavras: "Já estava surpreso de não ter recebido resposta e me perguntava se acontecia alguma coisa, quer dizer que sua saúde vai sempre bem etc." Logo, em Balbec, e sem me dizer que desejava falar-lhe de um "negócio", pedira que o apresentasse àquele mesmo Bloch com quem fora tão desagradável no trem, uma semana antes. Bloch não vacilara em lhe emprestar-ou melhor, em conseguir que o Sr. Nissim Bernard lhe emprestasse cinco mil francos. Desde aquele dia, Morel passara a adorar Bloch. Perguntava a si mesmo, com lágrimas nos olhos, de que modo poderia prestar serviço a alguém que lhe salvara a vida. Enfim, encarreguei-me de pedir, para Morel, mil francos mensais ao Sr. de Charlus, dinheiro que este remeteria imediatamente a Bloch, que assim rapidamente seria reembolsado. No primeiro mês, Morel, ainda sob a impressão da bondade de Bloch, enviou-lhe de imediato os mil francos, mas, depois disso, achou sem dúvida que um emprego diverso dos outros quatro mil restantes poderia ser mais agradável, pois começou a falar muito mal de Bloch. Bastava que o visse para ficar com idéias negras e Bloch, tendo ele próprio esquecido exatamente o quanto havia emprestado a Morel e reclamado três mil e quinhentos francos em vez de quatro mil, o que faria o violinista ganhar quinhentos francos, este último respondeu que, diante de tamanha falsidade, não só não pagaria mais um tostão como o seu credor devia julgar-se muito feliz que ele não o processasse. E dizendo isto seus olhos chamejavam. Aliás, Morel não se contentou com dizer que Bloch e o Sr. Nissim Bernard não tinham motivo para ter queixas dele, mas eles sim é que deveriam considerar-se felizes que não lhes guardasse rancor. Enfim, tendo o Sr. Nissim Bernard, ao que parece, declarado que Thibaud tocava tão bem quanto Morel, este julgou dever atacá-lo diante dos tribunais, pois tal afirmativa o prejudicava na profissão; depois, como não existe mais justiça na França, sobretudo contra os judeus (o antisemitismo em Morel fora o efeito natural do empréstimo de cinco mil francos por um israelita), passou a sair sempre com um revólver carregado. Um tal estado nervoso, seguindo-se a uma viva ternura, devia logo ocorrerem Morel relativamente à sobrinha do coleteiro. É verdade que o Sr. de Charlus foi, talvez sem desconfiar, um pouco responsável por essa mudança, pois muitas vezes declarava, sem acreditar no que dizia, e para aborrecê-los, que, uma vez casados, ele não voltaria a vê-los e os deixaria voar com as próprias asas. Tal idéia era em si mesmo absolutamente insuficiente para desprender Morel da moça; permanecendo no espírito de Morel, estava pronta a se combinar um dia com outras idéias afins e capazes, uma vez que a mistura se realizasse, de se tornarem um poderoso agente de ruptura.

   Aliás, não era muito seguido que me ocorria encontrar o Sr. de Charlus e Morel. Muitas vezes eles já tinham entrado na loja de Jupien quando eu deixava a duquesa, pois o prazer que sentia junto dela era tanto que acabava por esquecer não só a espera ansiosa que precedia o regresso de Albertine, mas até a hora desse regresso.

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