segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / IX — Um lugar onde se vão formar convicções

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


IX — Um lugar onde se vão formar convicções

   Madelaine deu um passo, fechou maquinalmente a porta atrás de si e conservou-se de pé, contemplando quanto estava vendo.
   Era um vasto recinto frouxamente alumiado, ora cheio de rumor, ora em completo silêncio, onde todo o aparato de um processo criminal se desenvolvia com a sua gravidade mesquinha e lúgubre, no meio da multidão.
   No extremo da sala em que ele se achava, alguns juízes com ar distraído, de togas muito usadas, roendo as unhas, ou fechando os olhos com sono; no extremo oposto uma multidão de farrapos, gente de justiça em toda a espécie de atitudes, soldados de fisionomias honestas e rudes, velhas obras de talha ensebadas, um teto muito sujo, mesas cobertas de uma baeta mais amarela do que verde, portas enegrecidas pelo contato de muitas mãos, pendurados quase junto do teto alguns candeeiros de botequim, dando mais fumo do que luz; sobre as mesas, castiçais de cobre com velas, a escuridão, a fealdade e a tristeza; e, destacando-se de tudo isto, uma impressão austera e augusta, que fazia sentir a presença dessa grande coisa humana que se chama lei, e a dessa outra divina a que se chama justiça.
   Ninguém de toda aquela multidão atentou nele. Todos os olhos convergiam para um único ponto, para um banco de pau, encostado à portinha que ficava à esquerda do presidente. Neste banco, alumiado por muitas velas, estava sentado um campónio entre dois gendarmes.
   Este campónio era o tal homem.
   Madelaine não o procurou, viu-o logo. Os olhos fitaram-se nele, como se soubessem antecipadamente onde o haviam de encontrar.
   Julgou ver-se a si mesmo, envelhecido, não completamente nas feições, mas sim na atitude e no aspecto, os cabelos eriçados, com o olhar bravio e inquieto, com uma blusa, tal como ele estava no dia em que entrara em Digne cheio de ódio e ocultando na alma o pavoroso tesouro de pensamentos medonhos, que em dezanove anos de galé ali acumulara.
   Então, estremecendo, disse consigo: «Oh, meu Deus! Tornar-me-ei assim?!»
   O acusado parecia ter, pelo menos, sessenta anos, e apresentava aspecto rude, estúpido e espantadiço.
   Ao ruído produzido pela porta, tinham-se afastado os que se lhe achavam próximos para dar lugar ao recém-chegado; o presidente olhara para aquele lado, e compreendendo que o personagem que entrara era o maire de Montreuil-sur-mer, cumprimentara-o. O delegado do procurador-régio que conhecera o senhor Madelaine em Montreuil-sur-mer, onde as funções do seu ministério o tinham chamado mais de uma vez, reconheceu-o e cumprimentou-o também.
   Ele apenas reparou nos cumprimentos; parecia alucinado, olhava e nada mais. Juízes, um escrivão, gendarmes, uma multidão de cabeças cruelmente curiosas, era o que já tinha visto uma vez, noutro tempo, havia vinte e sete anos. Tornava a encontrar todas estas coisas funestas; estavam todas ali, moviam-se, existiam; não representavam esforço de memória, ou miragem do pensamento, eram verdadeiros juízes e verdadeiros gendarmes; verdadeira multidão; homens de carne e osso. Era tudo facto, via distintamente reaparecer e reviver em torno de si, com tudo o que a realidade tem de terrível, os aspectos monstruosos do seu passado. Via tudo aquilo como veria a abertura de medonho abismo.
   Sentiu-se horrorizado, fechou os olhos e exclamou no mais profundo da sua alma: Nunca!
   E por um trágico brinquedo do destino que lhe fazia vacilar todas as ideias e quase o enlouquecia, tinha na sua presença um homem que era a sua sombra, que era outro ele, a quem iam julgar e a quem todos chamavam Jean Valjean!
   Tinha diante dos olhos, inaudita visão!, uma espécie de comemoração do momento mais horrível da sua vida, executada pelo seu fantasma.
   Não faltava nada; o mesmo aparato, a mesma hora da noite, quase os mesmos rostos de juízes, de soldados e de espectadores. A única diferença consistia em que por cima da cabeça do presidente havia um crucifixo, coisa que não se via nos tribunais do tempo em que fora condenado. 
    Deus, quando o tinham julgado estava ausente. Atrás dele estava uma cadeira; sentou-se apavorado pela ideia de que poderiam vê-lo. Depois de estar sentado, aproveitou-se de uma ruma de pastas que viu sobre a mesa dos juízes, para ocultar o rosto a toda a sala.
   Assim podia ver sem ser visto. Entrou completamente no sentimento da realidade; a pouco e pouco, foi recobrando a presença de espírito. Chegou por fim à fase do sossego em que é possível escutar.
   O senhor Barmatabois era um dos jurados.
   Procurou Javert, mas não o viu. O banco das testemunhas ficava oculto pela mesa do escrivão. Além disto, como já dissemos, a sala estava quase às escuras. No momento em que ele entrou terminara o advogado do réu o seu discurso. A atenção geral chegara ao maior grau de excitação; a audiência durava havia três horas.
   Havia três horas que aquela multidão estava vendo vergar, a pouco e pouco, sob o peso de terrível verossimilhança um homem, um desconhecido, uma espécie de ente miserável, profundamente estúpido, ou profundamente hábil.
   Este homem, é já sabido, era um vagabundo que fora encontrado no campo, levando um ramo de árvore carregado de fruta madura, e que tinha sido partido no pomar dum cerrado de um vizinho que se chamava Pierron.
   Quem era este homem?
   Fizera-se a inquirição, tinham sido ouvidas as testemunhas, unânimes nos seus depoimentos, a luz brotara de todos os pontos da contestação.
   A acusação dizia:

«Temos diante de nós, não somente um ladrão de fruta, um ratoneiro, temos em nosso poder um bandido, um relapso fora da residência marcada; um ex-forçado, um celerado dos mais perigosos, um malfeitor chamado Jean Valjean, que a justiça procura há muito tempo, e que há oito anos, saindo das galés de Toulon, roubou na estrada, à mão armada, um rapaz saboiano chamado Gervásio, crime previsto pelo art.º 383.º do código penal, pelo qual o processaremos depois, quando a identidade estiver judicialmente provada. E cometeu agora um novo roubo. É um caso de reincidência. Condenai-o pelo facto recente; mais tarde será julgado pelo facto remoto».

   Em presença desta acusação, em presença da unanimidade das testemunhas, mostrava-se o réu, sobretudo, espantado. Ou fazia sinais e gestos negativos, ou olhava para o teto. Falava com dificuldade, respondia com embaraço, mas, dos pés à cabeça, todo ele era uma negativa. Estava como um idiota na presença de todas aquelas inteligências dispostas em batalha à roda dele, como um estranho no meio daquela sociedade que lhe lançara a mão.
   Todavia, tratava-se para ele do futuro mais ameaçador; a verossimilhança aumentava de minuto para minuto e toda aquela multidão encarava com mais ansiedade do que ele próprio, a sentença cheia de calamidades, que cada vez lhe estava mais iminente sobre a cabeça. Uma eventualidade deixara mesmo entrever como possível, além das galés, a pena de morte, se o roubo de Gervásio terminasse mais tarde por uma condenação.
   Quem era aquele homem? De que natureza era a sua apatia? Seria imbecilidade ou astúcia? Compreendia ele tudo ou nada?
   Eram estas perguntas que dividiam a multidão e que pareciam dominar também o júri.
   Havia naquele processo qualquer coisa de aterrador e intrincado; não era apenas sombrio aquele drama, era escuro, tenebroso.
   O defensor do réu desempenhara admiravelmente a sua missão, na linguagem de província que noutro tempo constituía inteiramente a eloquência do foro e da qual usavam antigamente todos os advogados, tanto em Paris, como em Romorantin ou em Montbrison, e que hoje, tendo-se tornado clássica, não é já usada senão pelos oradores oficiais dos tribunais, aos quais ela convém pela sonoridade grave e tom majestoso; linguagem em que a um marido se chama um esposo, a uma mulher uma esposa, a Paris, o centro das artes e da civilização; ao rei um monarca, ao bispo um santo pontífice, ao delegado do procurador-régio o eloquente intérprete da vindicta, às acusações e defesas o s acentos que se acabam de ouvir, a um teatro, o templo de Melpomene, à família reinante o augusto sangue dos nossos reis, a um concerto uma solenidade musical, ao general comandante da divisão o ilustre guerreiro, etc., aos alunos do seminário tenros levitas, aos erros imputados aos periódicos a impostura que destila o seu veneno nas colunas desses órgãos, etc., etc.
   O advogado, pois, começara por se explicar sobre o roubo da fruta coisa pouco usada para bom estilo, mas o próprio Benigne Bossuet foi obrigado a aludir a uma galinha, em plena oração fúnebre, e soube sair-se deste grave embaraço pomposamente.
   O advogado estabelecera que não estava materialmente provado o roubo da fruta.
   O seu cliente, a quem ele, na qualidade de defensor persistia em chamar Champmathieu, não fora visto por pessoa alguma escalando o muro, ou quebrando o tronco. Tinham-no prendido conduzindo aquele tronco (a que o advogado preferia chamar ramo); mas ele dizia tê-lo achado no chão. Onde estava a prova contrária?
   Não havia dúvida que aquele tronco fora quebrado e subtraído depois da escalada, e em seguida abandonado pelo ratoneiro assustado; havia decerto um ladrão, mas o que provava que fosse Champmathieu esse ladrão? Uma única circunstância. A sua qualidade de ex-forçado. O advogado não negava que esta qualidade parecesse, desgraçadamente, provada; o acusado residia em Faverolles, exercera ali a profissão de podador; o nome de Champmathieu bem podia ter tido por origem o de Jean Mathieu; tudo isto era verdade; enfim, quatro testemunhas reconheciam sem hesitar e positivamente Champmathieu, como sendo o forçado Jean Valjean; a estas indicações, a estes testemunhos, não podia o advogado opor senão as negativas interessadas, e portanto suspeitas, mas supondo mesmo que o forçado fosse Jean Valjean, era isso prova de que tivesse roubado a fruta? Era, quando muito, uma suposição e não uma prova.
   O advogado devia convir, na sua boa fé, que fora péssimo o sistema de defesa que o acusado adoptara. Obstinara-se a negar tudo: o roubo e a sua qualidade de forçado. Ter-lhe-ia sido inquestionavelmente muito mais útil confessar este último ponto, o que lhe conciliaria a indulgência dos juízes; o advogado aconselhara-lhe, mas o acusado recusara-se obstinadamente a isso, julgando sem dúvida salvar-se não confessando coisa alguma.
   Era um erro, mas não devia ter-se em conta a sua curta inteligência? Aquele homem era visivelmente estúpido. A sua longa permanência nas galés, a sua grande miséria fora delas, tinham-no embrutecido, etc., etc.; defendia-se mal, por conseguinte, mas seria isso uma razão para o condenarem? Quanto ao caso de Gervásio, não tinha o advogado que o discutir, por isso que não fazia parte da acusação.
   O advogado concluíra suplicando ao júri, se achasse evidente a identidade de Jean Valjean, que lhe aplicasse as penas de polícia que puniam o condenado quando mudava de residência sem licença, e não o espantoso castigo que as leis impunham ao forçado reincidente.
   O delegado do procurador-régio replicou ao defensor do réu; e foi veemente e florido, como são habitualmente os delegados dos procuradores-régios. Felicitou o advogado pela sua lealdade, de que ele se aproveitou com extrema finura. Atacou o acusado com todas as concessões do defensor. O advogado parecia conceder que o acusado fosse Jean Valjean. Tomou nota. O homem era, pois, Jean Valjean.
   Pertencia isto à acusação e não podia contestar-se.
   Aqui, o delegado, por uma hábil antonomásia, remontando às fontes e às causas da criminalidade, declamou contra a imoralidade da escola romântica, então nascida apenas sob o nome de escola satânica, e que era combatida pelos críticos da Quotidienne e da Oriflemane; e atribuiu, não sem verossimilhança à influência desta literatura perversa o dileto de Champmathieu, ou para melhor dizer, de Jean Valjean.
   Esgotadas estas considerações, passou a tratar do próprio Jean Valjean. Quem era Jean Valjean? Descrição de Jean Valjean: um monstro vomitado, etc.
   O modelo desta espécie de descrições acha-se no recitativo de Théramène, que não é útil à tragédia, mas que presta todos os dias grandes serviços à eloquência jurídica.
   O auditório e os jurados tremeram. Terminada a descrição, continuou o delegado num repto oratório, próprio para no dia seguinte excitar ao mais alto ponto o entusiasmo do jornal da prefeitura:

— E é um tal homem, etc., etc., etc., vagabundo, mendigo, sem meios de subsistência, etc., etc., habituado pela sua vida passada às ações culpáveis, e pouco corrigido pela pena de galés, que sofreu, como o prova o crime cometido para com Gervásio, etc., etc.; é semelhante homem, que encontrado numa estrada em flagrante delito de roubo e escalada, nega tudo, nega o seu nome, a sua identidade! Além de cem outras provas, sobre as quais não insistimos, quatro testemunhas o reconheceram; Javert, o íntegro inspetor de polícia Javert, e três dos seus antigos companheiros de ignomínia, os forçados Brevet, Cheneldieu e Cochepaile! Nega tudo. Que endurecimento! Fareis justiça, senhores jurados, etc., etc. 

   Enquanto o delegado falara, o acusado escutara-o de boca aberta, com uma espécie de espanto que não era isento de admiração. Achava-se evidentemente surpreendido de que um homem pudesse falar de semelhante modo. De tempos a tempos, nos momentos mais enérgicos da requisitória, nos instantes em que a eloquência, não podendo conter-se, transborda num fluxo de epítetos infamantes e envolve o acusado como uma tempestade, meneara ele lentamente a cabeça da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita, espécie de protesto mudo e triste, com que se contentara desde o começo do julgamento.
   Duas ou três vezes, os espectadores colocados mais perto dele lhe ouviram dizer a meia voz:

— Aqui está o que eu fiz em não pedir ao senhor Baloup!

   O delegado chamou a atenção do júri para aquela atitude estúpida, evidentemente calculada, e que denotava não imbecilidade, mas destreza, astúcia, hábito de iludir a justiça, e que punha completamente a descoberto a profunda perversidade daquele homem. Terminou em seguida mostrando-se reservado para com o caso de Gervásio e reclamando severa punição.  
   Esta punição como deve lembrar era o trabalho forçado por toda a vida.
   O defensor levantou-se, começou por cumprimentar o senhor delegado do procurador-régio, pelas suas admiráveis palavras, e em seguida replicou como pôde, mas com menos firmeza: era claro que o terreno lhe fugia debaixo dos pés.

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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo -  IX — Um lugar onde se vão formar convicções
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

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