quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O Cortiço - IX: O capadócio ia dormir

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


IX 
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continuando...

   O capadócio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava na estalagem; tinha o seu cômodo na oficina em que trabalhava. Só pelos domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de pândega. Uma vez em que ele gazeara o serviço, o que não era raro, foi vê-la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto à tina com o português. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao número 9, onde ela foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das suas apreensões, mas também não escondeu o seu mau humor; esteve impertinente e rezingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o parati, depois do café, só falou em rolos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrível, recordando façanhas de capoeiragem, nas quais sangrara tais e tais tipos de fama; “não contando dois galegos que mandara pras minhocas, porque isso para ele não era gente - Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos para sempre!” Rita percebeu os ciúmes do amigo e fez que não dera por coisa alguma.
   No dia seguinte, às seis horas da manhã, quando ele saia da casa dela, encontrou-se com o português, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu em silêncio para o seu lado.
   Rita deliberou prevenir Jerônimo de que se acautelasse. Conhecia bem o amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influência dos ciúmes; mas, na ocasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escândalo acabava de explodir, agora no número 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda.
   Marciana andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal desta se desregrara havia três meses, quando, nesse dia, não tendo as duas acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para o quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio.

- Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar inquiridor.

- Não sei, mamãe...

- Que sentes tu?...

- Nada...

- Nada, e estás lançando?... Hein?!

- Não sinto nada, não senhora!...

   A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tateando-lhe o ventre, já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligências, correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla, sem se alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao número 12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe várias perguntas e mais à mãe, e depois disse friamente:

- Está de barriga.

   E afastou-se, sem um gesto de surpresa, nem de censura.
   Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando escapar-lhe, berrava como uma louca.
   Abandonaram-se logo todas as tinas do pátio e algumas das mesas do frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o número 12, batendo na porta e ameaçando entrar pela janela.
   Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão, perguntava-lhe gritando e repetindo:

- Quem foi?! Quem foi?!

   E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas.

- Quem foi?!

   A pequena berrava, mas não respondia.

- Ah! não queres dizer por bem? Ora espera!

   E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura no canto da sala.
   Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janela e caiu de um salto lá fora, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de altura.
   As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendê-la da mãe, que surgiu logo à porta, ameaçando para o grupo, terrível e armada de pau.
   Todos procuraram chamá-la à razão:

- Então que é isso, tia Marciana?! Então que é isso?!

- Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está ai o que é! Para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se matando, como sucede sempre que há um pouco mais de serviço e é necessário puxar pelo corpo! Ora está ai o que é!

- Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da pele!

- Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos!

- Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das Dores.

   Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido, cheio de curiosidade.

- Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não!

   E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria crescer de novo para a filha.
   Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado. “Quem foi?! Quem foi?!” esta frase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remédio:

- Foi seu Domingos... disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na luta.

- O Domingos!...

- O caixeiro da venda!...

- Ah! foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem cá!

   E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até à venda.
   Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira.
   A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorrência.
   Ao balcão daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa roda-viva. Havia muitos negros e negras. O baralho era enorme. A Leonor lá estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de couro nas suas magras e escorridas nádegas de negrinha virgem Três marujos ingleses bebiam gengibirra, cantando, ébrios, na sua língua e mascando tabaco.
   Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da venda, berrou:

- Ó seu João Romão!

- Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço.

   Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu à porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para seu homem:

- Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!

   Ele veio afinal.
   Que diabo era aquilo?

- Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela!

   João Romão ficou perplexo.

- Hein! Que é lá isso?!

- Foi o Domingos! disseram muitas vozes.

- Ó seu Domingos!

   O caixeiro respondeu: “Senhor...” com uma voz de delinqüente.

- Chegue cá!

   E o criminoso apresentou-se, lívido de morte.

- Que fez você com esta pequena?

- Não fiz nada, não senhor!...

- Foi ele, sim! desmentiu-o a Florinda. - O caixeiro desviou os olhos, para a não encarar. - Um dia de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...

   O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas.

- Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o patrão, meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como não gosto de caixeiros amigados, pode procurar arranjo noutra parte!...

   Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente.
   O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda, pelo portão da esta agem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos magotes que discutiam o fato. Principiaram os comentários, os juízos pró e contra o caixeiro; fizeram-se profecias.
   Entretanto, Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa.

- Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?

   Ele não deu resposta.

- Vamos! vamos! fale! desembuche!

   Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera.

- Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é menor!

   Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.

- Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!

   E despejou da venda, gritando para todos:

- Sabe? O cara de nabo diz que não casa!

   Esta frase produziu o efeito de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação.

- Como, não casa?!...

- Era só o que faltava!

- Tinha graça!

- Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha?

- Se não queria casar pra que fez mal?

- Quem não pode com o tempo não inventa modas!

- Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!

- Quem não quer ser loto não lhe vista a pele!

   A mais empenhada naquela reparação era a Machona, e a mais indignada com o fato era a Dona Isabel. A primeira correra à frente da venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo não tardou que em cada porta, onde era possível uma escapula, se postassem as outras de sentinela, formando grupos de três e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e ameaças:

- Das Dores! toma cuidado, que o patife não espirre por ai!

Continua página 53...
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

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