sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Sarau... Mulheres: A moça da cicatriz no queixo 7 (Eduardo Galeano)

Mulheres




Eduardo Galeano


023.


A MOÇA DA CICATRIZ NO QUEIXO


7

   Em plena noite fomos despertados por fortes batidas na porta e por gritos. Por pouco a porta não veio abaixo.
   Eu e Flávia saímos correndo para a casa do maneta Justino. Peguei o que pude e voamos para lá.
   Anos atrás, um tubarão-tigre havia arrancado o braço de Justino. O tubarão tinha dado a volta quando Justino tentava tirá-lo da rede. Eu conhecia Justino muito pouco, mas disso eu sabia.
   No casebre, o lampião a querosene cambaleou.
   A mulher do sem-braço gritava com as pernas abertas. As coxas estavam inchadas e roxas. Na pele esticada via-se uma seiva de minúsculas veias.
   Pedi a Flávia para ferver uma panela de água. Mandei Justino, que estava muito nervoso e tropeçando em tudo, esperar lá fora. Um cachorro escondeu-se debaixo da cama e expulsei-o a pontapés.
   Com alma e vida debrucei-me sobre o ventre da mu-lher. Ela uivava como um animal, gemia e xingava – não aguento mais, está doendo, caralho, eu morro –, fervendo de suor, e a cabecinha vinha aparecendo entre as pernas mas não saía, não saía nunca, e eu fazia força com o corpo todo e aí a mulher deu um soco num travessão de madeira e o teto quase veio abaixo, e deu um longo grito esganiçado.
   Flávia estava ao meu lado.
   Fiquei paralisado. A pequenina tinha nascido com o cordão dando-lhe duas voltas no pescoço. O rostinho estava roxo, inchado, sem traços, e estava toda oleosa e coberta de sangue e de uma merda verde e tinha a dor estampada no rosto. Não se viam as feições mas se via a dor, e creio que pensei: pobrezinha, já tão cedo.
   Eu tremia da cabeça aos pés. Quis segurá-la. Faltavam-me mãos. Escorregou.
   Foi Flávia quem desenroscou o cordão. Eu atinei, não sei como, dar dois nós bem fortes com um fio qualquer, e com uma gilete cortei o cordão de uma vez.
   E esperei.
   Flávia segurava pelos pés e a mantinha suspensa no ar.
   Dei-lhe uma palmadinha nas costas.
   Os segundos voavam.
   Nada.
   E esperamos.
   Creio que Justino estava na porta, de joelhos, rezando. A mulher gemia, queixando-se com um fio de voz. Estava longe. E nós esperando, com a menininha de cabeça para baixo, e nada.
   Tornei a dar-lhe uma palmada nas costas.
   Aquele cheiro imundo e adocicado revirava o meu estômago.
   Aquele cheiro imundo e adocicado revirava o meu estômago. Então, rapidamente, Flávia agarrou-a pela cabeça, levou-a à boca e a beijou violentamente. Aspirou e cuspiu e tornou a aspirar e cuspir crostas e escarros e baba branca. E finalmente a pequenina chorou. Tinha nascido. Estava viva.
   Ela me entregou a menina e eu a lavei. As pessoas foram entrando. Flávia e eu saímos.
   Estávamos exaustos e atordoados. Fomos sentar na areia, junto ao mar, e sem dizer nada, nos perguntávamos: “Como foi? Como foi?”.
   Eu confessei:

– Nunca havia presenciado. Não sabia como era. Para mim, foi a primeira vez.

   E ela disse: 

– Nem eu.

   Apoiou a cabeça no meu peito. Senti a força de seus dedos agarrando-se nas minhas costas. Adivinhei que tinha lágrimas presas nos olhos.
   Depois perguntou ou fez a pergunta para si mesma:

– Como será ter um filho? Um filho próprio, da gente?

   E disse. 

– Eu nunca vou ter.

   E depois, um marinheiro chegou perto, mandado por Justino, perguntando a Flávia qual era seu nome. Precisavam do nome para o batismo.
   
– Mariana – respondeu Flávia.

   Fiquei surpreso. Não disse nada.
   O marinheiro deixou-nos uma garrafa de grapa. Bebi no gargalo. Flávia também.

– Sempre quis me chamar assim – disse-me.

   E eu me lembrei que esse era o nome que constava no passaporte que estava preparando – lenta, lentamente – para que ela fosse embora.

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Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.
1. Ficção uruguaia- Crônicas. I. Título. II. Série.
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Leia também: 

Sarau... Mulheres: Para inventar o mundo cada dia
Sarau... Mulheres: Amares
Sarau... Mulheres: A moça da cicatriz no queixo 7

pag 032...



El festejo que no fue


   Los peones de los campos de la Patagonia argentina se habían alzado en huelga, contra los salarios cortísimos y las jornadas larguísimas, y el ejército se ocupó de restablecer el orden.

   Fusilar cansa. En esta noche del 17 de febrero de 1922, los soldados, exhaustos de tanto matar, fueron al prostíbulo del puerto San Julián, a recibir su merecida recompensa.
   
   Pero las cinco mujeres que allí trabajaban les cerraron la puerta en las narices y los corrieron al grito de asesinos, asesinos, fuera de aquí

   Osvaldo Bayer ha guardado sus nombres. Ellas se llamaban Consuelo García, Ángela Fortunato, Amalia Rodríguez, María Juliache y Maud Foster.

   Las putas. Las dignas.

segue en la pag 25

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