Audioconto
"quando o outro me obriga a sair do lugar e provoca uma instabilidade em mim sou provocada a ver além..."
Às vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as que haviam
provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era propriamente para reproduzir o sucesso
passado, nem propriamente para provocar o movimento mudo da família. Mas para tentar
apoderar-se da chave de sua "inteligência". Na tentativa de descoberta de leis e causas, porém,
falhava. E, ao repetir uma frase de sucesso, dessa vez era recebido pela distração dos outros. Com
os olhos pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por que uma vez
conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina
alheia?
Mais tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria, entrou por um estado
de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o hábito de pestanejar de repente ao
próprio pensamento, ao mesmo tempo que franzia o nariz, o que deslocava os óculos -
exprimindo com esse cacoete uma tentativa de substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa
tentativa de aprofundar a própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de estática:
sempre fora capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se transformasse em
outro sentimento.
Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber, e dava
piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não estava com
ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranquila miopia
exigindo lentes cada vez mais fortes.
Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de permanente
incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não está com ninguém - foi
através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e vivendo em serena curiosidade. Paciente
e curioso. Um pouco nervoso, diziam, referindo-se ao tique dos óculos. Mas "nervoso" era o
nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família. Outro nome
que a instabilidade dos adultos lhe dava era o de "bem comportado", de "dócil". Dando assim um
nome não ao que ele era, mas à necessidade variável dos momentos.
Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo
brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração.
Foi, por exemplo, quando lhe disseram que daí a uma semana ele iria passar um dia inteiro
na casa de uma prima. Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. "Dia inteiro"
incluía almoço, merenda, jantar, e voltar quase adormecido para casa. E quanto à prima, a prima
significava amor extra, com suas inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade - e
tudo isso daria margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa dela, tudo
aquilo que ele era teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o amor, mais facilmente
estável de apenas um dia, não daria oportunidade a instabilidades de julgamento: durante um dia
inteiro, ele seria julgado o mesmo menino.
Na semana que precedeu "o dia inteiro", começou por tentar decidir se seria ou não natural
com a prima.
Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente - o que resultaria que
durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente. Ou se faria, logo de entrada, algo que ela
julgasse "bem comportado", o que faria com que durante o dia inteiro ele seria o bem
comportado. Ter a possibilidade de escolher o que seria, e pela primeira vez por um longo dia,
fazia-o endireitar os óculos a cada instante.
Aos poucos, durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi se alargando. E,
com a capacidade que tinha de suportar a confusão - ele era minucioso e calmo em relação à
confusão - terminou descobrindo que até poderia arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro
um palhaço, por exemplo. Ou que poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim
resolvesse. O que o tranquilizava era saber que a prima, com seu amor sem filhos e sobretudo
com a falta de prática de lidar com crianças, aceitaria o modo que ele decidisse de como ela o
julgaria. Outra coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria
realmente alterá-lo. Pois prematuramente - tratava-se de criança precoce - era superior à
instabilidade alheia e à própria instabilidade. De algum modo pairava acima da própria miopia e
da dos outros. O que lhe dava muita liberdade. Às vezes apenas a liberdade de uma incredulidade
tranquila. Mesmo quando se tornou homem, com lentes espessíssimas, nunca chegou a tomar
consciência dessa espécie de superioridade que tinha sobre si mesmo.
A semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às vezes seu estômago se
apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos ele estaria totalmente à mercê do amor sem
seleção de uma mulher. "Amor sem seleção" representava uma estabilidade ameaçadora: seria
permanente, e na certa resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A
estabilidade, já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no primeiro passo da
estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem da instabilidade, que é a de uma
correção possível.
Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da prima,
além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de poder de vez em quando ir ao
banheiro, o que faria o tempo passar mais depressa. Mas, com a prática de ser amado, já de
antemão o constrangia que a prima, uma estranha para ele, encarasse com infinito carinho as suas
idas ao banheiro. De um modo geral o mecanismo de sua vida se tornara motivo de ternura.
Bem, era também verdade que, quanto a ir ao banheiro, a solução podia ser a de não ir nenhuma
vez ao banheiro. Mas não só seria, durante um dia inteiro, irrealizável como - como ele não
queria ser julgado "um menino que não vai ao banheiro" - isso também não apresentava
vantagem. Sua prima, estabilizada pela permanente vontade de ter filhos, teria, na não ida ao
banheiro, uma pista falsa de grande amor.
Durante a semana que precedeu "o dia inteiro", não é que ele sofresse com as próprias
tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele já havia dado: aceitara a incerteza, e
lidava com os componentes da incerteza com uma concentração de quem examina através das
lentes de um microscópio.
A medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se sucediam, elas
foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de decidir que elementos daria à
prima para que ela por sua vez lhe desse temporariamente a certeza de "quem ele era".
Abandonou essas cogitações e passou a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da
prima, sobre o tamanho do pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas que abriria
enquanto ela não visse. E finalmente entrou no campo da prima propriamente dita. De que
modo devia encarar o amor que a prima tinha por ele?
No entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do lado esquerdo.
E foi isso - ao finalmente entrar na casa da prima - foi isso que num só instante
desequilibrou toda a construção antecipada.
O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse a tendência de pôr
as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia se chamar de "deslumbrante", se ele
fosse daqueles que esperam que as coisas o sejam ou não.
Houve o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a segurança que ele
encontrava na idéia de uma imprevisibilidade permanente, tanto que até usava óculos, não se
tornou inseguro pelo fato de encontrar logo de início algo com que não contara.
Em seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não começou por ser
evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera com uma naturalidade que
inicialmente o insultara, mas logo depois não o insultara mais. Ela foi logo dizendo que ia
arrumar a casa que ele podia ir brincando. O que deu ao menino, assim de chofre, um dia inteiro
vazio e cheio de sol.
Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe da
inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto uma
observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu
em resposta um "pois é", entre vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já
que tudo falhara, ele iria brincar de "não ser julgado": por um dia inteiro ele não seria nada,
simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade.
Mas à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo sentir. E
quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e
estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou com curiosidade ao gosto estranho daquela
comida, talvez marca de azeite diferente, adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que
não parecia com o amor dos outros adultos: era um amor pedindo realização, pois faltava à prima
a gravidez, que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor sem a prévia gravidez.
Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor impossível.
O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O dia
inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no ventre dela. A prima não
queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem
filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do
desejo irrealizável. A estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser
votado à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo
impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez teve então amor pela paixão.
E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e
simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. Não um relance de
pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse
enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez
que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e,
sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.
Lispector, Clarice, 1925-1977
____________
Felicidade clandestina: contos / Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
ISBN: 85-325-0817-0 1. Conto brasileiro. I. Título
Nenhum comentário:
Postar um comentário