Audioconto
na voz de Aracy Balabanian
"não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete..."
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil,
nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à
porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas
coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um
lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como
ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal
modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de
encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de
máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no
contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes
encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era
essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa
tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles
meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos
frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu
sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e
pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me
sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar
que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha
resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e
folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma
flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de
pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias
mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a
mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja,
ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia
de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o
que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada:
minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos
combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo
vestidas - à idéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de
oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos
ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra,
engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me
dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico?
De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado
pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três
horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não
posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando
eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem
batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em
casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa -
mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil -
fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A
alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou
me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre
fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era
de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço
pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre
mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto
precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse
menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e
sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando,
sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim
alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
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