"eu me imaginava mais forte. porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava... enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."
na voz de Aracy Balabanian
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.
na voz de Aracy Balabanian
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de
Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória,
sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube
também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de
sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem
nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O
sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha
podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e
reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu
carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas
livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu
eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e
controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as
pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos,
que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda
enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca
infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos
antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham
ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de
súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus
querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o
sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o
sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra
terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele
instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e
persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e
raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando
de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e
insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão
inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas
só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra
um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura
só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é
que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa
coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava
mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e
vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos,
mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas
Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso
mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
...mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava
pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um
cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que,
somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho,
pensei que amar é fácil.
É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a
incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito,
meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei
ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não
sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me
ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa.
É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também
queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na
mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que
eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o
formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o
meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este
mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e
talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez
eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato.
Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive
os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não
olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de
"mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se
não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só
porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que
sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário
quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não
me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou
tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra
menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um
dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não
existe.
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