sábado, 31 de agosto de 2024

Moby Dick: 20 - Tudo em atividade

Moby Dick

Herman Melville


20 - TUDO EM ATIVIDADE

     Passaram-se um ou dois dias e havia grande atividade a bordo do Pequod. Não só eram remendadas as velas antigas como chegavam novas velas, junto com peças de lona e rolos de cordame; em suma, tudo indicava que os preparativos do navio estavam chegando ao fim. O Capitão Peleg quase nunca vinha a bordo, mas sentava-se no wigwam, de onde observava os marinheiros; Bildad fazia as compras e cuidava das provisões nos armazéns; e os homens, ocupados com o porão e os apetrechos, varavam a noite trabalhando.
     No dia seguinte à assinatura do contrato por Queequeg, comunicaram em todas as estalagens onde os homens da tripulação se encontravam hospedados que as suas arcas deveriam estar a bordo antes do anoitecer, porque o navio poderia sair a qualquer momento. Queequeg e eu levamos nossa bagagem, mas estávamos resolvidos a dormir em terra até o fim. Mas parece que nesses casos sempre avisam com muita antecedência, e o navio demorou ainda alguns dias antes de partir. Não era de admirar: havia muita coisa a ser feita, e mais ainda a ser pensada antes que o Pequod pudesse ser considerado pronto para partir.
      Todo mundo sabe que uma multidão de objetos – camas, panelas, facas e garfos, pás e pinças, guardanapos, quebra-nozes, e não sei o que mais – é indispensável numa casa. O mesmo sucede com a pesca de baleias, que necessita do equivalente à manutenção de uma casa durante três anos no mar, longe de mercearias, verdureiros, doutores, padeiros e banqueiros. Embora isto também se aplique aos navios mercantes, não é de forma alguma na mesma proporção que para os baleeiros. Além de a viagem de pesca de baleias ser muito longa, e apesar dos numerosos objetos específicos para a pesca e da impossibilidade de substituí-los nos portos distantes, é preciso lembrar que, dentre todos os navios, os baleeiros são os mais expostos a acidentes de todo tipo, especialmente à destruição e perda dos objetos dos quais depende o êxito da viagem. Por isso é necessário levar botes de reserva, vergas de reserva, linhas e arpões de reserva, quase tudo de reserva, exceto um Capitão e um navio de reserva.
      Ao tempo de nossa chegada na ilha, a carga mais pesada do Pequod já tinha sido embarcada, como a carne, o pão, a água, o combustível, os arcos de ferro e as aduelas. Mas, como disse antes, durante algum tempo diferentes coisas, tanto grandes quanto pequenas, foram levadas a bordo.
     Dentre as pessoas que mais levaram e carregaram coisas estava a irmã do Capitão Bildad, uma velha senhora enxuta, que tinha um espírito determinado e infatigável, além de um bom coração, e que estava decidida, no que dependesse dela, a não deixar faltar nada no Pequod depois que partisse para o mar. Primeiro ela veio a bordo com um pote de picles para a despensa; depois veio com um feixe de penas, que colocou sobre a mesa do imediato; uma terceira vez apareceu com uma peça de flanela para o caso de alguma dor nas costas. Nenhuma mulher jamais recebeu um nome mais acertado do que Charity [Caridade] – Tia Charity, como todos a chamavam. Como uma irmã de caridade, a caridosa Tia Charity se alvoroçava, pronta para dar uma mão e empenhar todo o seu coração em algo que pudesse trazer segurança, conforto e consolo aos que embarcassem no navio de seu querido irmão Bildad, e no qual ela investira os seus poucos dólares economizados.
     Foi surpreendente ver essa Quacre de bom coração subir a bordo, como fez no último dia, com uma longa concha de óleo numa mão e um arpão ainda mais longo na outra. Não ficou atrás nem de Bildad e nem do capitão Peleg. Bildad carregava uma lista longa de objetos que eram necessários a cada chegada e riscava seus nomes à medida que iam sendo embarcados. De vez em quando, Peleg saía depressa de seu covil de ossos de baleia, e gritava com os homens das escotilhas, gritava com os homens do topo do mastro, e voltava gritando para o wigwam.
      Durante esses dias de preparativos, Queequeg e eu visitamos o navio diversas vezes, e em todas as vezes perguntei sobre o Capitão Ahab, como estava e quando voltaria ao navio. Respondiam a essas perguntas dizendo que ele estava melhorando, que qualquer dia viria a bordo; enquanto isso, os dois Capitães, Peleg e Bildad, podiam ajudar com o que fosse necessário à preparação do navio para a viagem. Se tivesse sido honesto comigo mesmo, teria percebido que no fundo do coração eu não estava gostando da idéia de me comprometer com uma viagem tão longa sem nunca ter visto o homem que era o tirano absoluto do navio antes de partir. Quando um homem suspeita de que há algo de errado, acontece de ele, às vezes, no caso de já se encontrar envolvido, lutar insensivelmente para esconder essas suspeitas até de si próprio. Foi o que aconteceu comigo. Não disse nada, tentei não pensar em nada.
     Afinal, comunicaram que o navio partiria no dia seguinte, sem hora marcada. Portanto, nesse dia, Queequeg e eu nos levantamos mais cedo.

Moby Dick: 20 - Tudo em atividade
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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