Machado de Assis
Conto
A parasita azul
Capítulo VI
A revelação
Não há mistérios para um autor que sabe investigar todos os recantos do
coração. Enquanto o povo de Santa Luzia faz mil conjecturas a respeito da
causa verdadeira da isenção que até agora tem mostrado a formosa
Isabel, estou habilitado para dizer ao leitor impaciente que ela ama.
— E a quem ama? pergunta vivamente o leitor.
Ama... uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita.
Deve ser então uma flor muito linda, — um milagre de frescura e de
aroma. Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadáver de flor, seco,
mirrado, uma flor que devia ter sido lindíssima há muito tempo, no pé,
mas que hoje na cestinha em que ela a traz, nenhum sentimento inspira,
a não ser de curiosidade. Sim, porque é realmente curioso que uma moça
de vinte anos, em toda a força das paixões, pareça indiferente aos
homens que a cercam, e concentre todos os seus afetos nos restos
descorados e secos de uma flor.
Ah! mas aquela foi colhida em circunstâncias especiais. Dera-se o caso
alguns anos antes. Um moço da localidade gostava então muito de Isabel,
porque era uma criança engraçada, e costumava chamá-la sua mulher,
gracejo inocente que o tempo não sancionou. Isabel também gostava do
rapaz, a ponto de fazer nascer no espírito do pai da moça a seguinte
ideia:
— Se daqui a alguns anos as coisas não mudarem por parte dela, e se ele
vier a gostar seriamente da pequena, creio que os posso casar.
Isabel ignorava completamente esta ideia do pai; mas continuava a
gostar do moço, o qual continuava a achá-la uma criança
interessantíssima.
Um dia viu Isabel uma linda parasita azul, entre os galhos de uma árvore.
— Que bonita flor! disse ela.
— Aposto que você a quer?
— Queria, sim... disse a menina que, sem aprender, conhecia já esse falar
oblíquo e disfarçado.
O moço despiu o paletó com a sem-cerimônia de quem trata com uma
criança e trepou pela árvore acima. Isabel ficou embaixo ofegante e
ansiosa pelo resultado. Não tardou que o complacente moço deitasse a
mão à flor e delicadamente a colhesse.
— Apanhe! disse ele de cima.
Isabel aproximou-se da árvore e recolheu a flor no regaço. Contente por
ter satisfeito o desejo da menina, tratou o rapaz de descer, mas tão
desastradamente o fez, que no fim de dois minutos jazia no chão aos pés
de Isabel. A menina deu um grito de angústia e pediu socorro; o rapaz
procurou tranquilizá-la dizendo que nada era, e tentando levantar-se
alegremente. Levantou-se com efeito, com a camisa salpicada de sangue;
tinha ferido a cabeça.
A ferida foi declarada leve; dentro de poucos dias estava o valente moço
completamente restabelecido.
A impressão que Isabel recebeu naquela ocasião foi profunda. Gostava
até então do rapaz; daí em diante passou a adorá-lo. A flor que ele lhe
colhera veio naturalmente a secar; Isabel guardou-a como se fora uma
relíquia; beijava-a todos os dias; e de certo tempo em diante até chorava
sobre ela. Uma espécie de culto supersticioso prendia o coração da moça
àquela mirrada parasita.
Não era ela porém tão mau coração que não ficasse vivamente
impressionada quando soube da doença de Camilo. Fez indagar com
assiduidade do estado do moço, e cinco dias depois foi com o pai visitá-lo
à fazenda do comendador.
A simples visita da moça, se não curou o doente, deu em resultado
consolá-lo e animá-lo; viçaram-lhe algumas esperanças, que já estavam
mais secas e mirradas que a parasita cuja história acima narrei.
“Quem sabe se me não amará agora?” pensou ele.
Apenas ficou restabelecido foi o seu primeiro cuidado ir à fazenda do Dr.
Matos; o comendador quis acompanhá-lo. Não o acharam em casa;
estavam apenas a irmã e a filha. A irmã era uma pobre velha, que além
desse achaque, tinha mais dois: era surda e gostava de política. A ocasião
era boa; enquanto a tia de Isabel confiscava a pessoa e a atenção do
comendador, Camilo teve tempo de dar um golpe decisivo e rápido,
dirigindo à moça estas palavras:
— Agradeço-lhe a bondade que mostrou a meu respeito durante a minha
moléstia. Essa mesma bondade anima-me a pedir-lhe uma coisa mais...
Isabel franziu a testa.
— Reviveu-me uma esperança há dias, continuou Camilo, esperança que
já estava morta. Será ilusão minha? Uma palavra sua, um gesto seu
resolverá esta dúvida.
Isabel ergueu os ombros.
— Não compreendo, disse ela.
— Compreende, disse Camilo em tom amargo. Mas eu serei mais franco,
se o exige. Amo-a; disse-lho mil vezes; não fui atendido. Agora porém..
Camilo concluiria de boa vontade este pequeno discurso, se tivesse diante
de si a pessoa que ele desejava o ouvisse. Isabel, porém, não lhe deu
tempo de chegar ao fim. Sem dizer palavra, sem fazer um gesto,
atravessou a extensa varanda e foi sentar-se na outra extremidade onde
a velha tia punha à prova os excelentes pulmões do comendador.
O desapontamento de Camilo estava além de toda a descrição.
Pretextando um calor que não existia saiu para tomar ar, e ora vagaroso,
ora apressado, conforme triunfava nele a irritação ou o desânimo, o
mísero pretendente deixou-se ir sem destino. Construiu mil planos de
vingança, ideou mil maneiras de ir lançar-se aos pés da moça,
rememorou todos os fatos que se haviam dado com ela, e ao cabo de
uma longa hora chegou à triste conclusão de que tudo estava perdido.
Nesse momento deu acordo de si: estava ao pé de um riacho que
atravessava a fazenda do Dr. Matos. O lugar era agreste e singularmente
feito para a situação em que ele se achava. A uns duzentos passos viu
uma cabana, onde pareceu que alguém entoava uma cantiga do sertão.
Importuna coisa é a felicidade alheia quando somos vítima de algum
infortúnio. Camilo sentiu-se ainda mais irritado, e ingenuamente
perguntou a si mesmo se alguém podia ser feliz estando ele com o
coração a sangrar de desespero. Daí a nada aparecia à porta da cabana
um homem e saía na direção do riacho. Camilo estremeceu; pareceu-lhe
reconhecer o misterioso que lhe falara no dia do Espírito Santo. Era a
mesma estatura e o mesmo ar; aproximou-se rapidamente e parou a
cinco passos de distância. O homem voltou o rosto: era ele!
Camilo correu ao desconhecido.
— Enfim! disse ele.
O desconhecido sorriu-se complacentemente e apertou a mão que Camilo
lhe oferecia.
— Quer descansar? perguntou-lhe.
— Não, respondeu o médico. Aqui mesmo, ou mais longe se lhe apraz,
mas desde já, por favor, desejo que me explique as palavras que me
disse outro dia na igreja.
Novo sorriso do desconhecido.
— Então? disse Camilo vendo que o homem não respondia.
— Antes de mais nada, diga-me: gosta deveras da moça?
— Oh! muito!
— Jura que a faria feliz?
— Juro!
— Então ouça. O que vou contar a V. S.ª é verdade, porque o soube por
minha mulher que foi mucama de D. Isabel. É aquela que ali está.
Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante,
que olhava para ele com curiosidade.
— Agora, continuou o desconhecido, afastemo-nos um pouco; para que
ela nos não ouça, porque eu não desejo venha a saber-se de quem V. S.ª
ouviu esta história.
Afastaram-se com efeito costeando o riacho. O desconhecido narrou então
a Camilo toda a história da parasita, e o culto que até então a moça
votava à flor já seca. Um leitor menos sagaz imagina que o namorado
ouviu essa narração triste e abatido. Mas o leitor que souber ler adivinha
logo que a confidência do desconhecido despertou na alma de Camilo os
mais incríveis sobressaltos de alegria.
— Aqui está o que há, disse o desconhecido ao concluir, creio que V. S.ª
com isto pode saber em que terreno pisa.
— Oh! sim! sim! disse Camilo. Sou amado! sou amado!
Sabedor daquela novidade ardia o médico por voltar a casa, donde saíra
havia tanto tempo. Meteu a mão na algibeira, abriu a carteira e tirou uma
nota de vinte mil-réis.
— O serviço que me acaba de prestar é imenso, disse ele; não tem preço.
Isto porém é apenas uma lembrança...
Dizendo estas palavras, estendeu-lhe a nota. O desconhecido riu-se
desdenhosamente sem responder palavra. Depois, estendeu a mão à nota
que Camilo lhe oferecia, e, com grande pasmo deste, atirou-a ao riacho.
O fio d’água, que ia murmurando e saltando por cima das pedras, levou
consigo o bilhete, de envolta com uma folha que o vento lhe levara
também.
— Deste modo, disse o desconhecido, nem o senhor fica devendo um
obséquio, nem eu recebo a paga dele. Não pense que tive tenção de
servir a V. S.ª; não. Meu desejo é fazer feliz a filha do meu benfeitor.
Sabia que ela gostava de um moço, e que esse moço era capaz de a fazer
feliz; abri caminho para que ele chegue até onde ela está. Isto não se
paga; agradece-se apenas.
Acabando de dizer estas palavras, o desconhecido voltou as costas ao
médico, e dirigiu-se para a cabana. Camilo acompanhou com os olhos
aquele homem rústico. Pouco tempo depois estava em casa de Isabel,
onde já era esperado com alguma ansiedade. Isabel viu-o entrar, alegre e
radiante.
— Sei tudo, disse-lhe Camilo pouco antes de sair.
A moça olhou espantada para ele.
— Tudo? repetiu ela.
— Sei que me ama, sei que esse amor nasceu há longos anos, quando era
criança, e que ainda hoje...
Foi interrompido pelo comendador que se aproximava. Isabel estava
pálida e confusa; estimou a interrupção, porque não saberia que
responder.
No dia seguinte escreveu-lhe Camilo uma extensa carta apaixonada,
invocando o amor que ela conservara no coração, e pedindo-lhe que o
fizesse feliz. Dois dias esperou Camilo a resposta da moça. Veio no
terceiro dia. Era breve e seca. Confessava que o amara durante aquele
longo tempo, e jurava não amar nunca a outro.
Apenas isso, concluía Isabel. Quanto a ser sua esposa, nunca. Eu quisera
entregar a minha vida a quem tivesse um amor igual ao meu. O seu amor
é de ontem; o meu é de nove anos; a diferença de idade é grande
demais; não pode ser bom consórcio. Esqueça-me e adeus.
Dizer que esta carta não fez mais do que aumentar o amor de Camilo, é
escrever no papel aquilo que o leitor já adivinhou. O coração de Camilo só
esperava uma confissão escrita da moça para transpor o limite que o
separava da loucura. A carta transtornou-o completamente.
continua na página 29...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (VI)
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Advertência
Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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