E se chover... a terra voltará a ficar mole? E o dique vai suportar? Desta vez, não suportou. E as bombas vão continuar as mesmas? O desmatamento vai continuar livre e solto? Vamos continuar acreditando nas mesmas mentiras? A falta de manutenção não é crime? Vão continuar com a vontade insaciável de derrubar o muro? Vamos seguir resmungando sem pensar? E os oportunistas de plantão?
Não existem respostas fáceis, meu filho, Me sinto péssimo, mãe, Todos estamos nos sentindo assim, O que fazer, então, É preciso pensar, Esses tipos de sempre, Talvez sim, talvez não, quem sabe... querem que pensemos assim, Pai, estou perdido, só sei o que não quero, Isso já é um começo, meu filho, Vamos dormir, meu bem.
amanheceu mais um dia cinzento
e o dalton, aluno do terceiro ano do médio, chega se anunciando, Ehaaí, Gustavo, os dois se cumprimentam, são meus colegas de turma, jamais me adularam, sempre os mesmos juntos, nos mesmos lugares, tudo normal, estávamos de volta, mas não éramos mais os mesmos
o aperto das mãos anuncia aquele pequeno encontro de atitude, um soco encurtado e frágil de mútuo consentimento, o ritual da tribo permanecia, me pergunto sobre o que ainda continuava
gente, eu sei que não parece, mas sou o mais moço dos três,
também sou grande e o mais feio, aquele cara em que as garotas não se deitam no mesmo lençol, tenho
quinze anos, às vezes, me sinto fora do lugar e do tempo, muito triste, sei lá,
sinto um frio como se tivesse sessenta, e viajando no tempo com esses quinze
anos, é isso, têm momentos em que estou sonhando fora do lugar para mais,
outras vezes grito para menos, nem sempre faço o meu melhor
sentamos no mesmo banco de cimento desde o primeiro dia do
primeiro ano, eles com sete, eu com seis anos, é bastante tempo observando o
futuro duvidoso, imaginando loucuras e mascando chicles sem fazer nada,
sobrevivendo aos alinhamentos pedagógicos – como sei sobre esses alinhamentos
pedagógicos? sou filho de professores – com suas chamadas, avaliações,
conselhos, gritos temáticos, risos recortados e avisos urgentes, para ser
sincero, só não suporto professor sem paixão que não se arrisca fora do script, acomodado, medroso, gosto daqueles que nos levam para ver o sol se esconder, apreciar estrelas,
complicam menos, enchem meu coração
Como vai tudo, Mauro?
senti vontade de chorar e dizer adeus, queria voltar, mas
ainda não estou pronto, dá pra imaginar o medo da chuva no silêncio da noite, Fique calado, pensei, desatento a resposta pro dalton
Uma merda...
e esse sol que não vem, tudo ainda é frio, muito frio, pouco sol, os dias não estão fáceis, a vida devia ser melhor, o mau cheiro se espalhando, montanhas de entulho
Sei... observamos as meninas e marcamos os chicles com dentes
brancos e jovens, mordemos e vigiamos, os cabelos estão diferentes, não usamos
mais o cabelo arrepiado e empastado de gel, tudo mais simples e curto, uma
sequência dégradée contínua da altura
do corte, suas intensidades formando uma transição suave entre as partes, bem normal, não é
nada original, Fodam-se! Estivemos dois passos do inferno... estou só esperando
pela noite longa pra poder chorar por mim e por nós, os afogados.
antes do aguaceiro usávamos calças folgadas, um número acima, nesta nova versão,
estamos ajustados às calças desocupadas e doadas, a tempestade ainda não estava
distante o suficiente, o medo deixa luzes acessas
eu, com o meu metro e noventa... por aí, parecia mais velho
naquela pequena tribo, continuava com espinhas, cravos e a cara indecifrável,
um nojo, pelo menos, eu me sentia nojento, por certo, os demais sentiam o
mesmo, mas enfim, julgava ser uma troca justa, já que aturava suas súplicas de
ajuda nas provas, tudo oportuno e proveitoso, algumas coisas não mudam
faço o estilo altíssimo magro, feio e fraco, acho que já disse isso, tudo bem repetir, as mentiras se repetem mais que as verdades, sou aquele sujeito
que nenhuma garota vai fazer nada pra chamar minha atenção, eles, ao contrário, têm o
charme fortão, músculos saltando, à vista de todas, muitos chicles e nem mesmo
precisam dizer nada pra agradar
gustavo e dalton observam tudo por trás dos óculos ray-ban,
só usam acessórios de marca importada às escondidas pela fronteira paraguaia,
dignos representantes dos predadores desatinados, às vezes, por ser cedo,
outras vezes, por ser tarde demais, ficamos sozinhos no banco de cimento, gustavo
com armação dourada e o dalton com seus óculos de armação vermelha como brasas
de cigarro, são garotões bonitos, ninguém fingirá dizer isso pra mim, não dou
motivo pra tanto, me aproveito deles
nossas caras são todas conhecidas, o medo nelas é a novidade
sujeitos como eu, independente do que aconteça, não têm a
menor chance ao lado desses garotos bonitos, a vida é isso mesmo, eu finjo não
me importar, não fazer caso
Olhem aquela ali...
Quem, perguntei, esperançoso de algum reconhecimento como um
jovem macho alfa, perigoso e atraente que desafia às regras comuns da atração e
comportamento, uma tempestade magnética silenciosa do segundo sol realinhando
as órbitas dos planetas, com meu jeans, camiseta branca, músculos que não tenho
para mostrar e aquele olhar que não tem explicação, parecendo saber um segredo
que o mundo inteiro quer descobrir
um rosto feio com um charme intrigante, um furacão sem todo o
tempo do mundo, um sorriso devastador que desafia e exige escolhas diferentes,
anuncia que não é tempo perdido enquanto saboreamos aquela sobremesa ao final
de um jantar
capaz de rir de mim mesmo, mas incapaz de mudar o mundo
girando ao meu redor se assim o mundo deseja, pronto para gargalhadas, compaixão e
até um pouco de confusão desajeitada como uma obrigação inevitável em
frangalhos, um lembrete colorido que a vida é uma paixão bem-humorada com um
toque de audácia, trazendo mais cores ao cotidiano
A Mariá... foi a resposta imediata do gustavo, fez um sinal
à esquerda, olhei surpreendido, lá vinha ela toda bonitinha de blusinha branca,
aparecendo do nada, continuei lutando com meus pensamentos, O amor não tem
hora, não tem explicação, ele até se esconde, se deixa fingir como um bobo, uma
distância tão pequena e tão longe, quis chamar, não disse nada, não sou um lobo
mau, só quero ser feliz, gosto muito desta menina, é lindinha daquele jeito que
dá vontade de ficar olhando, escutando as vozes do coração, quero uma chance
saboreando com o olhar até ficar em frangalhos, hoje eu tô me repetindo adoidado
nunca senti o gosto de um beijo, acho que isso é um motivo
para viver, quem sabe um anjo do céu me trás você
É menina muito parceira, a voz do gustavo está doce, sei que posso contar com essa gatinha a qualquer hora.
o dalton tirou seus óculos
vermelhos, continuamos sentados sob a imensa figueira, a vida passando, ele deixa
em seu olhar uma pequena nuvem de dúvida, Você tem certeza?
Ela é muito especial, foi a resposta acalorada, você não
sabe quanto essa garota caminhou até chegar aqui.
Entendi, sutilmente disfarçou sua inveja, fechou os olhos e
apenas deixou que sua voz fosse levada cheia de ironia nas entrelinhas, senti
como se o mundo acabasse ali
confesso que imaginei vozes no meu deserto, estava perdendo
minha chance de viver, nuvens escuras estavam lá no céu, no mesmo lugar, a
menina bonita caminhando com seus olhos negros na sombra da figueira sob o
amanhecer, Deixa eu te amar, a menina mais linda de toda escola, a mais bela
com seus olhos negros, quero teu cheiro dos cabelos em meu rosto... vamos
fugir, menina!
minhas pernas tremiam, mal conseguia ficar em pé, ela entrava
em mim e colava meus pedaços
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Leia também:Ensaio - primeiro dia: 01
Ensaio - cartão magnético: 02
Ensaio - a dois passos do céu, as pernas tremendo: 03
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