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quinta-feira, 29 de agosto de 2024
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Epílogo Ditoso (Ópera)
Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
SEGUNDO ATO
EPÍLOGO DITOSO (Ópera)
VITÓRIA
Música, maestro!
Orquestra dá acorde seco que introduz a ópera. Do fundo do palco vem
surgindo João Alegre, sentado ao volante de um conversível modelo anos 40. De
agora em diante, tudo será cantado.
JOÃO ALEGRE
Telegrama
Do Alabama
Pro senhor Max
Overseas
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
TERESINHA
Chegou a confirmação
Da United coisa e tal
Que nos passa a concessão
Vara o náilon tropical
MAX
Então nós vamos montar
Em São Paulo um fabricão
TERESINHA
Depois vamos exportar
Fio de náilon pro Japão
MAX
Sei que o náilon tem valor
Mas começa a me enjoar
Tive ideia bem melhor
Nós vamos ramificar
TERESINHA
Já ramifiquei, ha há
Fiz acordo com a Shell
Coca-Cola, RCA
E vai ser sopa no mel
CORO
Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
MAX
Que tal juntarmos
Esses capitais
Pra abrir um banco
Em Minas Gerais
TERESINHA
Que brilhante ideia, meu amor
Que plano original
Com fundos do exterior
Você fundar
Um banco nacional
CAPANGAS
E eu que jâ fui
Um pobre marginal
Sem documento
E sem moral
Hei de ser um bom profissional
Vou ser quase um doutor
Continuo da senhora
E do senhor
Bancário ou contador
CORO
Que sucesso
O progresso
Corta o mal
Pela raiz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
CHAVES
Irmão
Nem começar eu sei
Receio te inibir
MAX
Sua vontade é lei
É falar
É mandar
É exigir
CHAVES
É que
Num mundo tão cruel
Cheio de inveja e fel
Não lhe fará mal
Ter à mão
Proteção
Policial
Quer os meus préstimos?
MAX
Eu acho ótimo
BARRABÁS
Serve um acólito?
MAX
Também
Vou te empregar
LÜCIA
Eu não
Tenho com quem deixar
Meu filho que já vem
MAX
Barrabás é um par
Exemplar
Quer casar
BARRABÁS
E adoro neném
CORO
Maravilha
Que família
Dois pombinhos
E um petiz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
VITÓRIA
Só tenho um único
Breve reparo
A tão preclaro
Genro viril
É o esquecimento
Do sacramento
Afinal
Se casou
Só no civil
Oh, oh, oh
Oh, oh, oh
Só no civil
Oh, oh, oh
Oh, oh, oh
Só no civil
MAX
Mas nesse ínterim
Mudei de crença
Já peço a bênção
No santo altar
VITÓRIA
Que maravilha
Não perco a filha
E um varão
Bonitão
Eu vou ganhar
Ah, ah, ah
Ah, ah, ah
Eu vou ganhar
Ah, ah, ah
Ah, ah, ah
Eu vou ganhar
DURAN
Minha filha, eu desejo pedir teu perdão
TERESINHA
Oh, meu pai, isso é bom demais! Finalmente! Até que
enfim!
DURAN
Não sei como fui pra você tão durão
Tão mandão, tão sem coração, tão malvado assim
MAX
Meu sogro, o senhor não sabe quanta alegria
Me dá, ao dizer que já se juntou aos nossos
DURAN
Só Deus sabe há quanto tempo eu tanto queria
Poder apertar esses ossos
CORO
Que alegria
Quem diria
Como os grandes
São gentis
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
DURAN
Não quero ser
Nas suas costas um fardo
Porém
Talvez
Eu necessite um resguardo
MAX
Tua instituição
Tão tradicional
Vai ter um padrão
Moderno
Cristão e ocidental
PUTAS
Vamos participar
Dessa evolução
Vamos todas entrar
Na linha de produção
Vamos abandonar
O sexo artesanal
Vamos todas amar
Em escala industrial
GENI
O sol nasceu
No mar de Copacabana
Pra quem viveu
Só de café e banana
TODOS
Tem gilete, Kibon
Lanchonete, neon
Petróleo
Cinemascope, sapólio
Ban-lon
Shampoo, tevê
Cigarros longos e finos
Blindex fume
Já tem napalm e Kolinos
Tem cassete e rai-ban
Camionete e sedan
Que sonho
Corcel, Brasília, plutônio
Shazam
Que orgia
Que energia
Reina a paz
No meu país
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz
Black-out; fecha a cortina; orquestra continua.
EPÍLOGO DO EPÍLOGO
Foco de luz sobre João Alegre que vem ao proscênio, batucando na
caixinha de fósforos; a orquestra vai parando aos poucos...
João Alegre canta "O Malandro N." 2"
O malandro/Tá na greta
Na sarjeta/Do país
E quem passa/Acha graça
Na desgraça/Do infeliz
O malandro /Tá de coma
Hematoma/No nariz
E rasgando/Sua bunda
Uma funda/Cicatriz
O seu rosto/Tem mais mosca
Que a birosca/Do Mane
O malandro/É um presunto
De pé junto/E com chulé
O coitado/Foi encontrado
Mais furado/Que Jesus
E do estranho/Abdômen
Desse homem/Jorra pus
O seu peito/Putrefeito
Tá com jeito/De pirão
O seu sangue/Forma lagos
E os seus bagos/Estão no chão
O cadáver/Do indigente
É evidente/Que morreu
E no entanto/Ele se move
Como prova/O Galileu
João Alegre vai saindo, assobiando e batendo na caixinha de fósforos.
Fim _____________________
NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Epílogo Ditoso (Ópera) __________________
Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.
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