sábado, 24 de agosto de 2024

Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (V)

A parasita azul

Machado de Assis

Conto

A parasita azul

Capítulo V
Paixão

     A distância da igreja à casa era pequena, e a conversa entre Isabel e Camilo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te merece a princesa moscovita, deves sinceramente lastimá-la. A aurora de um novo sentimento começava a dourar as cumeadas do coração de Camilo; ao subir as escadas, confessava o filho do comendador de si para si, que a interessante patrícia tinha qualidades superiores às da bela princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quase no fim do jantar, o coração de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do seu investigador espírito.
     A conversa, entretanto, não passou de coisas totalmente indiferentes; mas Isabel falava com tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao perto, e os cabelos também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o nosso ardente mancebo, só mudando de natureza, poderia resistir ao influxo de tantas graças juntas.
     O jantar correu sem novidade apreciável. Reuniram-se à mesa do tenente-coronel todas as notabilidades do lugar, o vigário, o juiz municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de uma ponta à outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do Divino, já então restituído ao seu vestuário comum, fazia as honras da mesa com verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto da geral conversa, entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos estavam de acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.
     O Major Brás tinha por costume fazer um ou dois brindes longos e eloquentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A facilidade com que ele se exprimia não tinha rival em toda a província. Além disso, como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o auditório, que o simples levantar-se era já meio triunfo.
     Não podia o Major Brás deixar passar incólume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloquente major pediu licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmúrio, equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do orador, e o auditório preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe iam cair da boca.

— O ilustre auditório que me escuta, disse ele, desculpará a minha ousadia; não vos fala o talento, senhores; fala-vos o coração.

“Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre Tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo; a minha voz nada adiantaria...”

     O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro membro desta última frase, e com restrições o segundo; isto é, cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo, prosseguiu da seguinte maneira:

— O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do Espírito Santo têm havido nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao que nos proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o Tenente-coronel Veiga, honra da classe a que pertence, e glória do partido a que se filiou...

— E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.

— Nem outra coisa era de esperar de V. Ex.ª, disse o orador mudando de voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.

     Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar nada aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e cinco minutos com grande mágoa do Padre Maciel, que namorava de longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal que estava ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso foi pouco mais ou menos assim:

— Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário, de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e não vos dissesse em linguagem tosca, sim (sinais de desaprovação), mas sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e ilustre tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber comigo à saúde de S. Ex.ª.

     O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual respondeu o tenente-coronel com estas poucas, mas sentidas palavras:

— Os elogios que me acaba de fazer o distinto Major Brás são verdadeiros favores de uma alma grande e generosa; não os mereço, senhores; devolvo-os intactos ao ilustre orador que me precedeu.

     No meio da festa e da alegria que reinava ninguém reparou nas atenções que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal; Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a ele, não tirava os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
     Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que Soares assistia aos ataques do adversário. Não é milagre; Soares também interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença, talvez o desdém, com que tratava o filho do comendador.

“Nem eu, nem ele,” dizia consigo o pretendente.

     Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
     A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta transformação. Fazendo de si próprio melhor ideia que do rival, Camilo dizia consigo:

“Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho de Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há para que eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar?”

     Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e das palavras que lhe dissera.

— Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?

     Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos e vivos. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a descobrir naquelas paragens um homem que naturalmente alguém devia conhecer; redobrou de esforços; ninguém sabia quem era o misterioso sujeito.
     Entretanto Camilo frequentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para comunicar à bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali dentro morava um coração de neve.
     Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agora o deixaremos, entregue aos médicos seus colegas.

continua na página 25...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873

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