Machado de Assis
Conto
A parasita azul
Capítulo V
Paixão
A distância da igreja à casa era pequena, e a conversa entre Isabel e
Camilo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te
merece a princesa moscovita, deves sinceramente lastimá-la. A aurora de
um novo sentimento começava a dourar as cumeadas do coração de
Camilo; ao subir as escadas, confessava o filho do comendador de si para
si, que a interessante patrícia tinha qualidades superiores às da bela
princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quase no fim do jantar, o
coração de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do seu
investigador espírito.
A conversa, entretanto, não passou de coisas totalmente indiferentes;
mas Isabel falava com tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a
sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao perto, e os
cabelos também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o
nosso ardente mancebo, só mudando de natureza, poderia resistir ao
influxo de tantas graças juntas.
O jantar correu sem novidade apreciável. Reuniram-se à mesa do
tenente-coronel todas as notabilidades do lugar, o vigário, o juiz
municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de uma ponta à
outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do Divino,
já então restituído ao seu vestuário comum, fazia as honras da mesa com
verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto da geral conversa,
entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos estavam de
acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.
O Major Brás tinha por costume fazer um ou dois brindes longos e
eloquentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A facilidade
com que ele se exprimia não tinha rival em toda a província. Além disso,
como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o
auditório, que o simples levantar-se era já meio triunfo.
Não podia o Major Brás deixar passar incólume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloquente major pediu
licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmúrio,
equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do
orador, e o auditório preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe
iam cair da boca.
— O ilustre auditório que me escuta, disse ele, desculpará a minha
ousadia; não vos fala o talento, senhores; fala-vos o coração.
“Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre
Tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome
diz tudo; a minha voz nada adiantaria...”
O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro
membro desta última frase, e com restrições o segundo; isto é,
cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser
coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo,
prosseguiu da seguinte maneira:
— O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio
que nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do Espírito Santo
têm havido nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de
contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao que nos
proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o Tenente-coronel
Veiga, honra da classe a que pertence, e glória do partido a que se
filiou...
— E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.
— Nem outra coisa era de esperar de V. Ex.ª, disse o orador mudando de
voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.
Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar nada
aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e
cinco minutos com grande mágoa do Padre Maciel, que namorava de
longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal que estava
ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso foi pouco
mais ou menos assim:
— Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário,
de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e
não vos dissesse em linguagem tosca, sim (sinais de desaprovação), mas
sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo
de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e ilustre
tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber comigo à saúde
de S. Ex.ª.
O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual
respondeu o tenente-coronel com estas poucas, mas sentidas palavras:
— Os elogios que me acaba de fazer o distinto Major Brás são verdadeiros
favores de uma alma grande e generosa; não os mereço, senhores;
devolvo-os intactos ao ilustre orador que me precedeu.
No meio da festa e da alegria que reinava ninguém reparou nas atenções
que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal;
Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a ele, não tirava
os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que
Soares assistia aos ataques do adversário. Não é milagre; Soares também
interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença, talvez o desdém,
com que tratava o filho do comendador.
“Nem eu, nem ele,” dizia consigo o pretendente.
Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que
passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo
havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um
lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta
transformação. Fazendo de si próprio melhor ideia que do rival, Camilo
dizia consigo:
“Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho de
Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há
para que eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar?”
Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e
das palavras que lhe dissera.
— Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?
Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos
e vivos. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a
descobrir naquelas paragens um homem que naturalmente alguém devia
conhecer; redobrou de esforços; ninguém sabia quem era o misterioso
sujeito.
Entretanto Camilo frequentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar
algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem
mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para comunicar à
bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às
comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente
desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali dentro morava um coração de
neve.
Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a
vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na
comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agora o
deixaremos, entregue aos médicos seus colegas.
continua na página 25...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (V)
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Advertência
Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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