Fernando Pessoa
- Como eu lhe expliquei, não pode haver adaptação material a uma coisa que não existe, materialmente, ainda. Mas se, por um movimento brusco, se fizer a revolução social, fica implantada já, não a sociedade livre (porque para essa não pode a humanidade ter ainda preparação), mas uma ditadura daqueles que querem implantar a sociedade livre. Mas existe já , ainda que em esboço ou em começo, existe já materialmente qualquer coisa da sociedade livre. Há já portanto uma coisa material, a que a humanidade se adapte. É este o argumento com que as bestas que defendem a ``ditadura do proletariado'' a defenderiam se fossem capazes de argumentar ou de pensar. O argumento, é claro, não é deles: é meu. Ponho-o, como objeção, a mim mesmo. E, como lhe vou mostrar..., é falso.
"Um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a idéia
que o conduz, é materialmente só uma coisa - um regime revolucionário. Ora um
regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeira palavras,
um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposta à sociedade por
uma parte dela - aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que
resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única coisa que ele é
materialmente, imediatamente, é um regime militar despótico, adapta-se a um regime
militar despótico. A ideia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram,
desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada exclusivamente pelo
fenômeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária - e tanto
mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar - é uma sociedade
guerreira do tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra
coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto;
nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O Império
Romano e seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e
seu despotismo militar. E V. verá o que sai da Revolução Russa... Qualquer coisa que
vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também o que era de
se esperar de um povo de analfabetos e de místicos?...''
"Enfim, isto já está fora de conversa... V. percebeu o meu argumento?''
- Percebi perfeitamente.
- V. compreende portanto que eu cheguei a esta conclusão: Fim: a sociedade
anarquista, a sociedade livre; meio: a passagem, sem transição, da sociedade
burguesa para a sociedade livre. Esta passagem seria preparada e tornada possível
por uma propaganda intensa, completa, absorvente, de modo a predispor todos os
espíritos e enfraquecer todas as resistências. É claro que por ``propaganda'' não
entendo só a pela palavra escrita e falada: entendo tudo, ação indireta ou direta,
quanto pode predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda.
Assim, não tendo quase resistência nenhuma que vencer, a revolução social, quando
viesse, seria rápida, fácil, e não teria que estabelecer nenhuma ditadura
revolucionária, por não ter contra quem aplica-la. Se isto não pode ser assim, é que o
anarquismo é irrealizável; e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa,
como já lhe provei, a sociedade burguesa.''
"Ora aí tem V. por que e como eu me tornei anarquista, e por que e como rejeitei,
como falsas e antinaturais, as outras doutrinas sociais de menor ousadia.''
"E pronto... Vamos lá continuar a minha história.''
Fez explodir um fósforo, e acendeu lentamente o charuto. Concentrou-se, e de aí a
pouco prosseguiu.
Havia vários outros rapazes com as mesmas opiniões que eu. A maioria era de
operários, mas havia um ou outro que o não era; o que todos éramos era pobres, e,
que me lembre, não éramos muito estúpidos. A gente tinha uma certa vontade de
propaganda, de espalhar as nossas ideias. Queríamos para nós e para os outros -
para a humanidade inteira - uma sociedade nova, livre destes preconceitos todos, que
fazem os homens desiguais artificialmente e lhes impõem inferioridades, sofrimentos,
estreitezas, que a Natureza lhes não tinha imposto. Por mim, o que eu lia confirmava-me nestas opiniões. Em livros libertários baratos - os que havia ao tempo, e eram já
bastantes - li quase tudo. Fui a conferências e comícios dos propagandistas do tempo.
Cada livro e cada discurso me convencia mais da certeza e da justiça das minhas
ideias. O que eu pensava então - repito-lhe, meu amigo - é o que penso hoje, a única
diferença é que então pensava-o só, hoje penso-o e pratico-o.
- Pois sim; isso, até onde vai, está muito bem. Está muito certo que V. se tornasse
anarquista assim, e vejo perfeitamente que V. era anarquista. Não preciso mais provas
disso..., como é que saiu de aí sem contradição... Isto é, mais ou menos já calculo...
- Não, não calcula nada... Eu sei o que V. quer dizer... V. baseia-se nos argumentos
que acaba de ouvir, e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso, como lhe
disse, só defensável e justa a sociedade burguesa - não é?...
- Sim, calculei que fosse mais ou menos isso...
- Mas como o podia ser, se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que
sou anarquista, que não só o fui mas o continuo sendo? Se eu me tivesse tornado
banqueiro e comerciante pela razão que V. julga, eu não era anarquista, era burguês.
- Sim, V. tem razão... Mas então como diabo...? Vá lá, vá dizendo...
- Como lhe disse, eu era (fui sempre) mais ou menos lúcido, e também um homem de
ação. Essas são qualidades naturais; não mas puseram no berço (se é que tive
berço), eu é que as levei para lá. Pois bem. Sendo anarquista, eu achava insuportável
ser anarquista passivamente, só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos.
Não: era preciso fazer qualquer coisa! Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos
oprimidos e das vítimas das convenções sociais! Decidi meter ombros a isso,
conforme pudesse. Pus-me a pensar como é que eu poderia ser útil à causa libertária.
Pus-me a traçar o meu plano de ação.
"O que quer o anarquista? Liberdade - a liberdade para si e para os outros, para a
humanidade inteira. Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções sociais;
quer ser livre tal qual nasceu e pareceu no mundo, que é como em justiça deve ser; e
quer essa liberdade para si e para todos os mais. Nem todos podem ser iguais perante
a Natureza: uns nascem altos, outros baixos; uns fortes, outros fracos; uns mais
inteligentes, outros menos... Mas todos podem ser iguais de aí em diante; só as
ficções sociais o evitam. Essas ficções sociais é que era preciso destruir.''
"Era preciso destruí-las... Mas não me escapou uma coisa: era preciso destruí-las...
mas em proveito da liberdade, e tendo sempre em vista a criação da sociedade livre.
Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade, ou
preparar o caminho da liberdade, como para estabelecer outras ficções sociais
diferentes, igualmente más porque igualmente ficções. Aqui é que era preciso cuidado.
Era preciso acertar com um processo de ação, qualquer que fosse a sua violência ou a
sua não-violência (porque contra as injustiças sociais tudo era legítimo), pelo qual se
contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação
da liberdade futura; criando já mesmo, caso fosse possível, alguma coisa da liberdade
futura."
"É claro que esta liberdade, que deve haver cuidado em não estorvar, é a liberdade
futura e, no presente, a liberdade dos oprimidos pelas ficções sociais. Claro está que
não temos que olhar a não estorvar a ``liberdade'' dos poderosos, dos bem situados,
de todos que representam as ficções sociais e têm vantagens delas. Essa não é
liberdade; é a liberdade de tiranizar, que é o contrário da liberdade. Essa pelo
contrário, é o que mais devíamos pensar em estorvar e em combater. Parece-me que
isto está claro...''
- Está claríssimo. Continue...
- Para quem quer o anarquismo a liberdade? Para a humanidade inteira. Qual é a
maneira de se conseguir a liberdade para a humanidade inteira? Destruir por completo
todas as ficções sociais? Já lhe antecipei a explicação, quando, por causa da sua
pergunta, discuti os outros sistemas avançados e lhe expliquei como e por que era
anarquista... V. lembra-se da minha conclusão?...
- Lembro...
- ... Uma revolução social súbita, brusca, esmagadora, fazendo a sociedade passar,
de um salto, do regime burguês para a sociedade livre. Esta revolução social
preparada por um trabalho intenso e contínuo, de ação direta e indireta, tendente a
dispor todos os espíritos para a vinda da sociedade livre, e a enfraquecer até ao
estado comatoso todas as resistências da burguesia. Escuso de lhe repetir as razões
que levam inevitavelmente a esta conclusão, a dentro do anarquismo; já lhe expus e
V. já a percebeu.
- Sim.
- Essa revolução seria preferivelmente mundial, simultânea em todos os pontos, ou os
pontos importantes, do mundo; ou não sendo assim, partindo rapidamente de uns para
outros, mas em todo o caso, em cada ponto, isto é, em cada nação, fulminante e
completa.
"Muito bem. O que poderia eu fazer para esse fim? Só por mim, não a poderia fazer a
ela, à revolução mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte
referente ao país onde estava. O que podia era trabalhar, na inteira medida do meu
esforço, para fazer a preparação para essa revolução. Já lhe expliquei como:
combatendo, por rodos os meios acessíveis, as ficções sociais; não estorvando nunca
ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre, nem a liberdade futura,
nem a liberdade presente dos oprimidos; criando já, sendo possível, qualquer coisa da
futura liberdade.''
Puxou fumo; fez uma leve pausa; recomeçou.
- Ora aqui, meu amigo, pus eu a minha lucidez em ação. Trabalhar para o futuro, está
bem, pensei eu; trabalhar para os outros terem liberdade, está certo. Mas então eu?
Eu não sou ninguém? Se eu fosse cristão, trabalhava alegremente pelo futuro dos
outros, porque lá tinha a minha recompensa no céu; mas também, se eu fosse cristão,
não era anarquista, porque então as tais desigualdades sociais não tinham
importância na nossa curta vida: eram só condições da nossa provação, e lá seriam
compensadas na vida eterna. Mas eu não era cristão, como não sou, e perguntava-me: mas por quem é que eu vou me sacrificar nisto tudo? Mais ainda: por que é que
eu me vou sacrificar?
"Vieram-me momentos de descrença; e V. compreende que era justificada... Sou
materialista, pensava eu; não tenho mais vida que esta; para que hei de ralar-me com
propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e
entreter-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só esta vida, quem
não crê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao
Estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro
porque ele não é natural, porque cargas-d'água é que defende o altruísmo e o
sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não
são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser
casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também que ele
não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão para ser ele-próprio, e portanto
o contrário de altruísta e solidário, e portanto exclusivamente egoísta.''
"Eu discuti a questão comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos
pertencentes à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os
homens. Mas a ideia de `dever' era natural? De onde é que vinha esta ideia de
`dever'? Se esta ideia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha
comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em que
divergia a ação dessa ideia da ação de qualquer ficção social, que produz em nós
exatamente o mesmo efeito?''
"Esta ideia de dever, isto de solidariedade humana; só podia considerar-se natural se
trouxesse consigo uma compensação egoísta, porque então, embora em princípio
contrariasse o egoísmo natural, se dava a esse egoísmo uma compensação, sempre,
no fim de contas, o não contrariava. Sacrificar um prazer, simplesmente sacrificá-lo,
não é natural; sacrificar um prazer a outro, é que já está dentro da Natureza: é, entre
duas cousas naturais que se não podem ter ambas, escolher uma, o que está bem.
Ora que compensação egoísta, ou natural, podia dar-me a dedicação à causa da
sociedade livre e da futura felicidade humana? Só a consciência de dever cumprido,
do esforço para um fim bom; e nenhuma destas coisas é uma compensação egoísta,
nenhuma destas coisas é um prazer em si, mas um prazer, se o é, nascido de uma
ficção social, como pode ser o prazer de ser imensamente rico, ou o prazer de ter
nascido em um boa posição social.''
"Confesso-lhe, meu velho, que me vieram momentos de descrença... Senti-me
desleal à minha própria doutrina, traidor a ela... Mas em breve passei sobre tudo isto.
A ideia de justiça cá estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia
que havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino. E fui para diante na
minha intenção.''
- Não me parece que essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte... V.
não resolveu a dificuldade... V. foi para diante por um impulso absolutamente
sentimental...
- Sem dúvida. Mas o que lhe estou contando agora é a história de como me tornei
anarquista, e de como o continuei sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as
hesitações e as dificuldades que tive, e como as venci. Concordo que, naquele
momento, venci a dificuldade lógica com o sentimento, e não com o raciocínio. Mas V.
há de ver que, mais tarde, quando cheguei à plena compreensão da doutrina
anarquista, esta dificuldade, até então logicamente sem resposta, teve a sua solução
completa e absoluta.
- É curioso...
- É... Agora deixe-me continuar na minha história. Tive esta dificuldade, e resolvi-a se
bem que mal, como lhe disse. Logo a seguir, e na linha dos meus pensamentos,
surgiu-me outra dificuldade que também me atrapalhou bastante.
"Estava bem - vamos lá - que estivesse disposto a sacrificar-me, sem recompensa
nenhuma propriamente pessoal, isto é, sem recompensa nenhuma verdadeiramente
natural. Mas suponhamos que a sociedade futura não dava em nada do que eu
esperava, que nunca havia a sociedade livre, e que diabo é que eu, nesse caso, me
estava sacrificando? Sacrificar-me a uma ideia sem recompensa pessoal, sem eu
ganhar nada com o meu esforço por essa ideia, vá; mas sacrificar-me sem ao menos
ter a certeza de que aquilo para que eu trabalhava, existiria um dia, sem que a própria
ideia ganhasse com o meu esforço - isso era um pouco mais forte... Desde já lhe digo
que resolvi a dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra;
mas advirto-o também que, do mesmo modo que a outra, resolvi esta pela lógica,
automaticamente, quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu
anarquismo... V. depois verá... Na altura do que lhe estou contando, saí-me do apuro
com uma ou duas frases ocas. `Eu fazia o meu dever para com o futuro; o futuro que
fizesse o seu para comigo'... Isto, ou cousa que o valha...''
"Expus esta conclusão, ou, antes estas conclusões, aos meus camaradas, e eles
concordaram todos comigo concordaram todos que era preciso ir para a frente e fazer
tudo pela sociedade livre. É a verdade que um ou outro, dos mais inteligentes, ficaram
um pouco abalados com a exposição, não porque não concordassem, mas porque
nunca tinham visto as coisas assim claras, nem os bicos que estas coisas têm... Mas
enfim, concordaram todos... Iríamos todos trabalhar pela grande revolução social, pela
sociedade livre, quer o futuro nos justificasse, quer não! Formamos um grupo, entre
gente certa, e começamos uma grande propaganda - grande, é claro, dentro dos
limites doo que podíamos fazer. Durante bastante tempo, no meio de dificuldades,
embrulhadas, e por vezes perseguições, lá fomos trabalhando pelo ideal anarquista.''
O banqueiro, chegado aqui, fez uma pausa um pouco mais longa. Não acendeu o
charuto, que estava outra vez apagado. De repente teve um leve sorriso, e, com o ar
de quem chega ao ponto importante, fitou-me com mais insistência e prosseguiu,
clarificando mais a voz e acentuando mais as palavras.
continua na página 10...
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O Banqueiro Anarquista - Como eu lhe expliquei
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/bancanarco.htm
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