Machado de Assis
Conto
A parasita azul
Capítulo VII
Precipitam-se os acontecimentos
O comendador não perdera a ideia de meter o filho na política.
Justamente nesse ano havia eleição; o comendador escreveu às principais
influências da província para que o rapaz entrasse na respectiva
assembleia. Camilo teve notícia desta premeditação do pai; limitou-se a
erguer os ombros, resolvido a não aceitar coisa nenhuma se não fosse a
mão de Isabel. Em vão o pai, o Padre Maciel, o tenente-coronel lhe
mostravam um futuro esplêndido e todo semeado de altas posições. Uma
só posição o contentava: casar com a moça.
Não era fácil, decerto: a resolução de Isabel parecia inabalável.
“Ama-me, porém”, dizia o rapaz consigo; “é meio caminho andado”.
E como o seu amor era mais recente que o dela, compreendeu Camilo
que o meio de ganhar a diferença da idade, era mostrar que o tinha mais
violento e capaz de maiores sacrifícios.
Não poupou manifestações de toda a sorte. Chuvas e temporais arrostou
para ir vê-la todos os dias; fez-se escravo dos seus menores desejos. Se
Isabel tivesse a curiosidade infantil de ver na mão a estrela d’alva, é
muito provável que ele achasse meio de lha trazer.
Ao mesmo tempo cessara de a importunar com epístolas ou palavras
amorosas. A última que lhe disse foi:
— Esperarei!
Nesta esperança andou ele muitas semanas, sem que a sua situação
melhorasse sensivelmente.
Alguma leitora menos exigente há de achar singular a resolução de
Isabel, ainda depois de saber que era amada. Também eu penso assim;
mas não quero alterar o caráter da heroína, porque ela era tal qual a
apresento nestas páginas. Entendia que ser amada casualmente, pela
única razão de ter o moço voltado de Paris, enquanto ela gastara largos
anos a lembrar-se dele e a viver unicamente dessa recordação, entendia,
digo eu, que isto a humilhava, e porque era imensamente orgulhosa,
resolvera não casar com ele nem com outro. Será absurdo; mas era
assim.
Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça, e por outro lado,
convencido de que era necessário mostrar uma dessas paixões invencíveis
a ver se a convencia e lhe quebrava a resolução, planeou Camilo um
grande golpe.
Um dia de manhã desapareceu da fazenda. A princípio ninguém se abalou
com a ausência do moço, porque ele costumava dar longos passeios,
quando porventura acordava mais cedo. A coisa porém começou a
assustar à proporção que o tempo ia passando. Saíram emissários para
todas as partes, e voltaram sem dar novas do rapaz.
O pai estava aterrado; a notícia do acontecimento correu por toda a parte
em dez léguas ao redor. No fim de cinco dias de infrutíferas pesquisas
soube-se que um moço, com todos os sinais de Camilo, fora visto a meia
légua da cidade, a cavalo. Ia só e triste. Um tropeiro asseverou depois ter
visto um moço junto de uma ribanceira, parecendo sondar com o olhar
que probabilidade de morte lhe traria uma queda.
O comendador entrou a oferecer grossas quantias a quem lhe desse
notícia segura do filho. Todos os seus amigos despacharam gente a
investigar as matas e os campos, e nesta inútil labutação correu uma
semana.
Será necessário dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe foram
dar notícia do desaparecimento de Camilo? A primeira impressão foi
aparentemente nenhuma; o rosto não revelou a tempestade que
imediatamente rebentara no coração. Dez minutos depois a tempestade
subiu aos olhos e transbordou num verdadeiro mar de lágrimas.
Foi então que o pai teve conhecimento da paixão tão longo tempo
incubada. Ao ver aquela explosão não duvidou que o amor da filha
pudesse vir a ser-lhe funesto. Sua primeira ideia foi que o rapaz
desaparecera para fugir a um enlace indispensável. Isabel tranquilizou-o
dizendo que, pelo contrário, era ela quem se negara a aceitar o amor de
Camilo.
— Fui eu que o matei! exclamava a pobre moça.
O bom velho não compreendeu muito como é que uma moça apaixonada
por um mancebo, e um mancebo apaixonado por uma moça, em vez de
caminharem para o casamento, tratassem de se separar um do outro.
Lembrou-se que o seu procedimento fora justamente o contrário, logo
que travou o primeiro namoro.
No fim de uma semana foi o Dr. Matos procurado na sua fazenda pelo
nosso já conhecido morador da cabana, que ali chegou ofegante e alegre.
— Está salvo disse ele.
— Salvo! exclamaram o pai e a filha.
— É verdade, disse Miguel (era o nome do homem); fui encontrá-lo no
fundo de uma ribanceira, quase sem vida, ontem de tarde.
— E por que não vieste dizer-nos?... perguntou o velho.
— Porque era preciso cuidar dele em primeiro lugar. Quando voltou a si
quis ir outra vez tentar contra os seus dias; eu e minha mulher
impedimo-lo de fazer tal. Está ainda um pouco fraco; por isso não veio
comigo.
O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lágrimas, poucas e
silenciosas, ainda lhe correram dos olhos; mas eram já de alegria e não
de mágoa.
Miguel saiu com a promessa de que o velho iria lá buscar o filho do
comendador.
— Agora, Isabel, disse o pai apenas ficou só com ela, que pretendes
fazer?
— O que me ordenar, meu pai!
— Eu só ordenarei o que te disser o coração. Que te diz ele?
— Diz...
— O quê?
— Que sim.
— É o que devia ter dito há muito tempo, porque...
O velho estacou.
“Mas se a causa deste suicídio for outra? pensou ele. Indagarei tudo.”
Comunicada a notícia ao comendador, não tardou que este se
apresentasse em casa do Dr. Matos, onde pouco depois chegou Camilo. O
mísero rapaz trazia escrita no rosto a dor de haver escapado à morte
trágica que procurara; pelo menos, assim o disse muitas vezes em
caminho, ao pai de Isabel.
— Mas a causa dessa resolução? perguntou-lhe o doutor.
— A causa... balbuciou Camilo que espreitava a pergunta; não ouso
confessá-la...
— É vergonhosa? perguntou o velho com um sorriso benévolo.
— Oh! não!...
— Mas que causa é?
— Perdoa-me, se eu lhe disser?
— Por que não?
— Não, não ouso... disse resolutamente Camilo.
— É inútil, porque eu já sei.
— Ah!
— E perdoo a causa, mas não lhe perdoo a resolução; o senhor fez uma
coisa de criança.
— Mas ela despreza-me!
— Não... ama-o!
Camilo fez aqui um gesto de surpresa perfeitamente imitado, e
acompanhou o velho até a casa, onde encontrou o pai, que não sabia se
devia mostrar-se severo ou satisfeito.
Camilo compreendeu logo ao entrar o efeito que o seu desastre causara
no coração de Isabel.
— Ora pois! disse o pai da moça. Agora que o ressuscitamos é preciso
prendê-lo à vida com uma cadeia forte.
E sem esperar a formalidade do costume nem atender às etiquetas
normais da sociedade, o pai de Isabel deu ao comendador a novidade de
que era indispensável casar os filhos.
O comendador ainda não voltara a si da surpresa de ter encontrado o
filho, quando ouviu esta notícia; e se toda a tribo dos Xavantes viesse cair
em cima dele armada de arco e flecha não sentiria espanto maior. Olhou
alternadamente para todos os circunstantes como se lhes pedisse a razão
de um fato aliás mui natural. Afinal explicaram-lhe a paixão de Camilo e
Isabel, causa única do suicídio meio executado pelo filho. O comendador
aprovou a escolha do rapaz, e levou a sua galanteria a dizer que no caso
dele teria feito o mesmo, se não contasse com a vontade da moça.
— Serei enfim digno do seu amor? perguntou o médico a Isabel quando
se achou só com ela.
— Oh! sim!... disse ela. Se morresse, eu morreria também!
Camilo apressou-se a dizer que a Providência velara por ele; e não se
soube nunca o que é que ele chamava Providência.
Não tardou que o desenlace do episódio trágico fosse publicado na cidade
e seus arredores.
Apenas Leandro Soares soube do casamento projetado entre Isabel e
Camilo ficou literalmente fora de si. Mil projetos lhe acudiram à mente,
cada qual mais sanguinário: em sua opinião eram dois pérfidos que o
haviam traído; cumpria tirar uma solene desforra de ambos.
continua na página 33...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (VIIa)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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