terça-feira, 27 de agosto de 2024

Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (VIIa)

A parasita azul

Machado de Assis

Conto

A parasita azul

Capítulo VII
Precipitam-se os acontecimentos

     O comendador não perdera a ideia de meter o filho na política. Justamente nesse ano havia eleição; o comendador escreveu às principais influências da província para que o rapaz entrasse na respectiva assembleia. Camilo teve notícia desta premeditação do pai; limitou-se a erguer os ombros, resolvido a não aceitar coisa nenhuma se não fosse a mão de Isabel. Em vão o pai, o Padre Maciel, o tenente-coronel lhe mostravam um futuro esplêndido e todo semeado de altas posições. Uma só posição o contentava: casar com a moça.
     Não era fácil, decerto: a resolução de Isabel parecia inabalável.

“Ama-me, porém”, dizia o rapaz consigo; “é meio caminho andado”.

     E como o seu amor era mais recente que o dela, compreendeu Camilo que o meio de ganhar a diferença da idade, era mostrar que o tinha mais violento e capaz de maiores sacrifícios.
     Não poupou manifestações de toda a sorte. Chuvas e temporais arrostou para ir vê-la todos os dias; fez-se escravo dos seus menores desejos. Se Isabel tivesse a curiosidade infantil de ver na mão a estrela d’alva, é muito provável que ele achasse meio de lha trazer. 
     Ao mesmo tempo cessara de a importunar com epístolas ou palavras amorosas. A última que lhe disse foi: 

— Esperarei! 

     Nesta esperança andou ele muitas semanas, sem que a sua situação melhorasse sensivelmente. 
     Alguma leitora menos exigente há de achar singular a resolução de Isabel, ainda depois de saber que era amada. Também eu penso assim; mas não quero alterar o caráter da heroína, porque ela era tal qual a apresento nestas páginas. Entendia que ser amada casualmente, pela única razão de ter o moço voltado de Paris, enquanto ela gastara largos anos a lembrar-se dele e a viver unicamente dessa recordação, entendia, digo eu, que isto a humilhava, e porque era imensamente orgulhosa, resolvera não casar com ele nem com outro. Será absurdo; mas era assim.
     Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça, e por outro lado, convencido de que era necessário mostrar uma dessas paixões invencíveis a ver se a convencia e lhe quebrava a resolução, planeou Camilo um grande golpe. 
     Um dia de manhã desapareceu da fazenda. A princípio ninguém se abalou com a ausência do moço, porque ele costumava dar longos passeios, quando porventura acordava mais cedo. A coisa porém começou a assustar à proporção que o tempo ia passando. Saíram emissários para todas as partes, e voltaram sem dar novas do rapaz. 
     O pai estava aterrado; a notícia do acontecimento correu por toda a parte em dez léguas ao redor. No fim de cinco dias de infrutíferas pesquisas soube-se que um moço, com todos os sinais de Camilo, fora visto a meia légua da cidade, a cavalo. Ia só e triste. Um tropeiro asseverou depois ter visto um moço junto de uma ribanceira, parecendo sondar com o olhar que probabilidade de morte lhe traria uma queda. 
     O comendador entrou a oferecer grossas quantias a quem lhe desse notícia segura do filho. Todos os seus amigos despacharam gente a investigar as matas e os campos, e nesta inútil labutação correu uma semana. 
     Será necessário dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe foram dar notícia do desaparecimento de Camilo? A primeira impressão foi aparentemente nenhuma; o rosto não revelou a tempestade que imediatamente rebentara no coração. Dez minutos depois a tempestade subiu aos olhos e transbordou num verdadeiro mar de lágrimas. 
     Foi então que o pai teve conhecimento da paixão tão longo tempo incubada. Ao ver aquela explosão não duvidou que o amor da filha pudesse vir a ser-lhe funesto. Sua primeira ideia foi que o rapaz desaparecera para fugir a um enlace indispensável. Isabel tranquilizou-o dizendo que, pelo contrário, era ela quem se negara a aceitar o amor de Camilo. 

 — Fui eu que o matei! exclamava a pobre moça.

     O bom velho não compreendeu muito como é que uma moça apaixonada por um mancebo, e um mancebo apaixonado por uma moça, em vez de caminharem para o casamento, tratassem de se separar um do outro. Lembrou-se que o seu procedimento fora justamente o contrário, logo que travou o primeiro namoro.
     No fim de uma semana foi o Dr. Matos procurado na sua fazenda pelo nosso já conhecido morador da cabana, que ali chegou ofegante e alegre.

— Está salvo disse ele.

— Salvo! exclamaram o pai e a filha.

— É verdade, disse Miguel (era o nome do homem); fui encontrá-lo no fundo de uma ribanceira, quase sem vida, ontem de tarde.

— E por que não vieste dizer-nos?... perguntou o velho.

— Porque era preciso cuidar dele em primeiro lugar. Quando voltou a si quis ir outra vez tentar contra os seus dias; eu e minha mulher impedimo-lo de fazer tal. Está ainda um pouco fraco; por isso não veio comigo. 

     O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lágrimas, poucas e silenciosas, ainda lhe correram dos olhos; mas eram já de alegria e não de mágoa. 
     Miguel saiu com a promessa de que o velho iria lá buscar o filho do comendador.

— Agora, Isabel, disse o pai apenas ficou só com ela, que pretendes fazer?

— O que me ordenar, meu pai! 

— Eu só ordenarei o que te disser o coração. Que te diz ele?

— Diz...   

— O quê? 

 — Que sim.

— É o que devia ter dito há muito tempo, porque... 

     O velho estacou.

“Mas se a causa deste suicídio for outra? pensou ele. Indagarei tudo.” 

     Comunicada a notícia ao comendador, não tardou que este se apresentasse em casa do Dr. Matos, onde pouco depois chegou Camilo. O mísero rapaz trazia escrita no rosto a dor de haver escapado à morte trágica que procurara; pelo menos, assim o disse muitas vezes em caminho, ao pai de Isabel.

— Mas a causa dessa resolução? perguntou-lhe o doutor. 

— A causa... balbuciou Camilo que espreitava a pergunta; não ouso confessá-la...

— É vergonhosa? perguntou o velho com um sorriso benévolo.  

— Oh! não!... 

— Mas que causa é?

— Perdoa-me, se eu lhe disser? 

— Por que não?

— Não, não ouso... disse resolutamente Camilo.

— É inútil, porque eu já sei.

— Ah!

— E perdoo a causa, mas não lhe perdoo a resolução; o senhor fez uma coisa de criança.

— Mas ela despreza-me!

— Não... ama-o! 

     Camilo fez aqui um gesto de surpresa perfeitamente imitado, e acompanhou o velho até a casa, onde encontrou o pai, que não sabia se devia mostrar-se severo ou satisfeito. 
     Camilo compreendeu logo ao entrar o efeito que o seu desastre causara no coração de Isabel. 

— Ora pois! disse o pai da moça. Agora que o ressuscitamos é preciso prendê-lo à vida com uma cadeia forte. 

     E sem esperar a formalidade do costume nem atender às etiquetas normais da sociedade, o pai de Isabel deu ao comendador a novidade de que era indispensável casar os filhos. 
     O comendador ainda não voltara a si da surpresa de ter encontrado o filho, quando ouviu esta notícia; e se toda a tribo dos Xavantes viesse cair em cima dele armada de arco e flecha não sentiria espanto maior. Olhou alternadamente para todos os circunstantes como se lhes pedisse a razão de um fato aliás mui natural. Afinal explicaram-lhe a paixão de Camilo e Isabel, causa única do suicídio meio executado pelo filho. O comendador aprovou a escolha do rapaz, e levou a sua galanteria a dizer que no caso dele teria feito o mesmo, se não contasse com a vontade da moça. 

— Serei enfim digno do seu amor? perguntou o médico a Isabel quando se achou só com ela. 

 — Oh! sim!... disse ela. Se morresse, eu morreria também!

     Camilo apressou-se a dizer que a Providência velara por ele; e não se soube nunca o que é que ele chamava Providência.
     Não tardou que o desenlace do episódio trágico fosse publicado na cidade e seus arredores.
     Apenas Leandro Soares soube do casamento projetado entre Isabel e Camilo ficou literalmente fora de si. Mil projetos lhe acudiram à mente, cada qual mais sanguinário: em sua opinião eram dois pérfidos que o haviam traído; cumpria tirar uma solene desforra de ambos.

continua na página 33...
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.

10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte: 
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, 
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873


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