Machado de Assis
Conto
A parasita azul
Capítulo IV
A festa
No sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda a parte
correra uma chusma de povo que ia assistir à festa anual do Espírito
Santo.
Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas
festas clássicas, resto de outras eras que os escritores do século futuro
hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contemporâneos
um Brasil que eles já não hão de conhecer. No tempo em que esta
história se passa, uma das mais genuínas festas do Espírito Santo era a
da cidade de Santa Luzia.
O Tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do Divino, estava
em uma casa que possuía na cidade. Na noite de sábado foi ali ter o
bando dos pastores, composto de homens e mulheres, com o seu
pitoresco vestuário, e acompanhado pelo clássico velho, que era um
sujeito de calção e meia, sapato raso, casaca esguia, colete comprido e
grande bengala na mão.
Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos
pastores, com alguns músicos à frente, e muita gente atrás. Formaram
logo, ali mesmo na rua, um círculo; um pastor e uma pastora iniciaram a
dança clássica. Dançaram, cantaram e tocaram todos, à porta e na sala
do coronel, que estava literalmente a lamber-se de gosto. É ponto
duvidoso, e provavelmente nunca será liquidado, se o Tenente-coronel
Veiga preferia naquela ocasião ser ministro de Estado a ser imperador do
Espírito Santo.
E todavia aquilo era apenas uma amostra da grandeza do tenente-coronel. O sol do domingo devia alumiar maiores coisas. Parece que esta
razão determinou o rei da luz a trazer nesse dia os seus melhores raios. O
céu nunca se mostrara mais limpidamente azul. Algumas nuvens grossas,
durante a noite, chegaram a emurchecer as esperanças dos festeiros;
felizmente, sobre a madrugada soprara um vento rijo que varreu o céu e
purificou a atmosfera.
A população correspondeu à solicitude da natureza. Logo cedo apareceu
ela com os seus vestidos domingueiros, — jovial, risonha, palreira, —
nada menos que feliz.
O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo à
cerimônia religiosa.
Camilo passara a noite na cidade em casa do Padre Maciel, e foi acordado,
mais cedo do que supusera, com os repiques e foguetada e mais
demonstrações da cidade alegre. Em casa do pai continuara o moço os
seus hábitos de Paris, em que o comendador julgou não dever perturbálo. Acordava portanto às 11 horas da manhã, exceto os domingos, em
que ia à missa, para de todo em todo não ofender os hábitos da terra.
— Que diabo é isto, padre? gritou Camilo do quarto onde estava, e no
momento em que uma girândola lhe abria definitivamente os olhos.
— Que há de ser? respondeu o Padre Maciel, metendo a cabeça pela
porta: é a festa.
— Então a festa começa de noite?
— De noite? exclamou o padre. É dia claro.
Camilo não pôde conciliar o sono, e viu-se obrigado a levantar-se.
Almoçou com o padre, contou duas anedotas, confessou ao hóspede que
Paris era o ideal das cidades, e saiu para ir ter à casa do imperador do
Divino. O padre saiu com ele. Em caminho viram de longe Leandro
Soares.
— Não me dirá, padre, perguntou Camilo, por que razão a filha do Dr.
Matos não atende àquele pobre rapaz que gosta tanto dela?
Maciel consertou os óculos e expôs a seguinte reflexão:
— Você parece tolo.
— Não tanto, como lhe pareço, replicou o filho do comendador, porque
mais de uma pessoa tem feito a mesma pergunta.
— Assim é, na verdade, disse o padre; mas há coisas que outros dizem e
a gente não repete. A Isabelinha não gosta do Soares simplesmente
porque não gosta.
— Não lhe parece que essa moça é um tanto esquisita?
— Não, disse o padre, parece-me uma grande finória.
— Ah! por quê?
— Suspeito que tem muita ambição; não aceita o amor do Soares, a ver
se pilha algum casamento que lhe abra a porta das grandezas políticas.
— Ora, disse Camilo levantando os ombros.
— Não acredita?
— Não.
— Pode ser que me engane; mas creio que é isto mesmo. Aqui cada qual
dá uma explicação à isenção de Isabel; todas as explicações porém me
parecem absurdas; a minha é a melhor.
Camilo fez algumas objeções à explicação do padre, e despediu-se dele
para ir à casa do tenente-coronel.
O festivo imperador estava literalmente fora de si. Era a primeira vez que
exercia aquele cargo honorífico e timbrava em fazê-lo brilhantemente, e
até melhor que os seus predecessores. Ao natural desejo de não ficar por
baixo, acrescia o elemento da inveja política. Alguns adversários seus
diziam pela boca pequena que o brioso coronel não era capaz de dar
conta da mão.
— Pois verão se sou capaz, foi o que ele disse ao ouvir de alguns amigos
a malícia dos adversários.
Quando Camilo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar
umas ordens relativas ao jantar que se devia seguir à festa, e ouvia
algumas informações que lhe dava um irmão definidor acerca de uma
cerimônia da sacristia.
— Não ouso falar-lhe, coronel, disse o filho do comendador, quando o
Veiga ficou só com ele; não ouso interrompê-lo.
— Não interrompe, acudiu o imperador do divino; agora deve tudo estar
acabado. O comendador vem?
— Já cá deve estar.
— Já viu a igreja?
— Ainda não.
— Está muito bonita. Não é por me gabar; creio que a festa não
desmerecerá das outras, e até em algumas coisas há de ir melhor.
Era absolutamente impossível não concordar com esta opinião, quando
aquele que a exprimia fazia assim o seu próprio louvor. Camilo encareceu
ainda mais o mérito da festa. O coronel ouvia-o com um riso de satisfação
íntima, e dispunha-se a provar que o seu jovem amigo ainda não
apreciava bem a situação, quando este desviou a conversa, perguntando:
— Ainda não veio o Dr. Matos?
— Já.
— Com a família?
— Sim, com a família.
Neste momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de
uma música que se aproximava
— São eles! disse Veiga; vêm buscar-me. Há de dar-me licença.
O coronel estava até então de calça preta e rodaque de brim. Correu a
preparar-se com o traje e as insígnias do seu elevado cargo. Camilo
chegou à janela para ver o cortejo. Não tardou que este aparecesse
composto de uma banda de música, da irmandade do Espírito Santo e dos
pastores da véspera. Os irmãos vestiam as suas opas encarnadas, e
vinham a passo grave, cercados do povo que enchia a rua e se
aglomerava à porta do tenente-coronel para vê-lo sair.
Quando o cortejo parou em frente da casa do tenente-coronel cessou a
música de tocar e todos os olhos se voltaram curiosamente para as
janelas. Mas o imperador estreante estava ainda por completar a sua
edição, e os curiosos tiveram de contentar-se com a pessoa do Dr.
Camilo. Entretanto, quatro ou seis irmãos mais graduados destacaram-se
do grupo e subiram as escadas do tenente-coronel.
Minutos depois cumprimentava Camilo os ditos irmãos graduados, um dos
quais, mais graduado que os outros, não o era só no cargo, mas também,
e sobretudo, no tamanho. E a estatura do Major Brás seria a coisa mais
notável da sua pessoa, se lhe não pedisse meças a magreza do próprio
major. A opa do major, apesar disto, ficava-lhe bem, porque nem ia até
abaixo da curva da perna como a dos outros, nem lhe ficava na cintura,
como devera, no caso de ter sido feita pela mesma medida. Era uma opa
termo-médio. Ficava-lhe entre a cintura e a curva, e foi feita assim de
propósito para conciliar os princípios da elegância com a estatura do
major.
Todos os irmãos graduados estenderam a mão ao filho do comendador e
perguntaram ansiosamente pelo tenente-coronel.
— Não tarda; foi vestir-se, respondeu Camilo.
— A igreja está cheia, disse um dos irmãos graduados; só se espera por
ele.
— É justo esperar, opinou o Major Brás.
— Apoiado, disse o coro dos irmãos.
— Demais, continuou o imenso oficial, temos tempo; e não vamos para
longe.
Os outros irmãos apoiaram com o gesto esta opinião do major, que, ato
contínuo, começou a dizer a Camilo os mil trabalhos que a festa lhes
dera, a ele e aos cavalheiros que o acompanhavam naquela ocasião, não
menos que ao tenente-coronel.
— Como recompensa dos nossos débeis esforços (Camilo fez um sinal
negativo a estas palavras do Major Brás), temos consciência de que a
coisa não sairá de todo mal.
Ainda estas palavras não tinham bem saído dos lábios do digno oficial,
quando assomou à porta da sala o tenente-coronel em todo o esplendor
da sua transformação.
Camilo perdera de todo as noções que tinha a respeito do traje e insígnias
de um imperador do Espírito Santo. Não foi pois sem grande pasmo que
viu assomar à porta da sala a figura do tenente-coronel.
Além da calça preta que já tinha no corpo quando ali chegou Camilo, o
tenente-coronel envergara uma casaca, que pela regularidade e elegância
do corte podia rivalizar com as dos mais apurados membros do Cassino
Fluminense. Até aí tudo ia bem. Ao peito rutilava uma vasta comenda da
Ordem da Rosa, que lhe não ficava mal. Mas o que excedeu a toda a
expectação, o que pintou no rosto do nosso Camilo a mais completa
expressão de assombro, foi uma brilhante e vistosa coroa de papelão
forrado de papel dourado que o tenente-coronel trazia na cabeça.
Camilo recuou um passo e cravou os olhos na insígnia imperial do
tenente-coronel. Já lhe não lembrava aquele acessório indispensável em
ocasiões semelhantes, e tendo vivido oito anos no meio de uma
civilização diversa, não imaginava que ainda existissem costumes que ele
julgava enterrados.
O tenente-coronel apertou a mão a todos os amigos e declarou que
estava pronto a acompanhá-los.
— Não façamos esperar o povo, disse ele.
Imediatamente, desceram à rua. Houve no povo um movimento de
curiosidade, quando viu aparecer à porta a opa encarnada de um dos
irmãos que haviam subido. Logo atrás apareceu outra opa, e não tardou
que as restantes opas aparecessem também flanqueando o vistoso
imperador. A coroa dourada, apenas o sol lhe bateu de chapa, entrou a
despedir faíscas quase inverossímeis. O tenente-coronel olhou a um lado
e outro, fez algumas inclinações leves de cabeça a uma ou outra pessoa
da multidão, e foi ocupar o seu lugar de honra no cortejo. A música
rompeu logo uma marcha, que foi executada pelo tenente-coronel, a
irmandade e os pastores, na direção da igreja.
Apenas da igreja avistaram o cortejo, o sineiro que já estava à espreita,
pôs em obra as lições mais complicadas do seu ofício, enquanto uma
girândola, entremeada de alguns foguetes soltos, anunciava às nuvens do
céu que o imperador do Divino era chegado. Na igreja houve um rebuliço
geral apenas se anunciou que era chegado o imperador. Um mestre-de-cerimônias ativo e desempenado ia abrindo alas, com grande dificuldade,
porque o povo, ansioso por ver a figura do tenente-coronel, aglomerava-se desordenadamente e desfazia a obra do mestre-de-cerimônias. Afinal
aconteceu o que sempre acontece nessas ocasiões; as alas foram-se
abrindo por si mesmas, e ainda que com algum custo, o tenente-coronel
atravessou a multidão, precedido e acompanhado pela irmandade, até
chegar ao trono que se levantava ao lado do altar-mor. Subiu com
firmeza os degraus do trono, e sentou-se nele, tão orgulhoso como se
governasse dali todos os impérios juntos do mundo.
Quando Camilo chegou à igreja, já a festa havia começado. Achou um
lugar sofrível, ou antes inteiramente bom, porque dali podia dominar um
grande grupo de senhoras, entre as quais descobriu a formosa Isabel.
Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. O encontro na estrada
e a singular perspicácia de que a moça dera prova nessa ocasião não lhe
haviam saído da cabeça. A moça pareceu não dar por ele; mas Camilo era
tão versado em tratar com o belo sexo, que não lhe foi difícil perceber
que ela o tinha visto e intencionalmente não voltava os olhos para o lado
dele. Esta circunstância, ligada aos incidentes do domingo anterior, fez-lhe nascer no espírito a seguinte pergunta:
— Mas que tem ela contra mim?
A festa prosseguiu sem novidade. Camilo não tirava os olhos de sua bela
charada, nome que já lhe dava, mas a charada parecia refratária a todo o
sentimento de curiosidade. Uma vez porém, quase no fim, encontraram-se os olhos de ambos. Pede a verdade que se diga que o rapaz
surpreendeu a moça a olhar para ele. Cumprimentou-a; foi
correspondido; nada mais. Acabada a festa foi a irmandade levar o
tenente-coronel até a casa. No meio da lufa-lufa da saída, Camilo, que
estava embebido a olhar para Isabel, ouviu uma voz desconhecida que
lhe dizia ao ouvido:
— Veja o que faz!
Camilo voltou-se e deu com um homem baixinho e magro, de olhos
miúdos e vivos, pobre mas asseadamente trajado. Encararam-se alguns
segundos sem dizer palavra. Camilo não conhecia aquela cara e não se
atrevia a pedir a explicação das palavras que ouvira, conquanto ardesse
por saber o resto.
— Há um mistério, continuou o desconhecido. Quer descobri-lo?
Houve algum tempo de silêncio.
— O lugar não é próprio, disse Camilo; mas se tem alguma coisa que me
dizer...
— Não; descubra o senhor mesmo.
E dizendo isto desapareceu no meio do povo o homem baixinho e magro,
de olhos vivos e miúdos. Camilo acotovelou umas dez ou doze pessoas,
pisou uns quinze ou vinte calos, pediu outras tantas vezes perdão da sua
imprudência, até que se achou na rua sem ver nada que se parecesse
com o desconhecido.
— Um romance! disse ele; estou em pleno romance.
Nisto saíam da igreja Isabel, D. Gertrudes e o Dr. Matos. Camilo
aproximou-se do grupo e cumprimentou-os. Matos deu o braço a D.
Gertrudes; Camilo ofereceu timidamente o seu a Isabel. A moça hesitou;
mas não era possível recusar. Passou o braço no do jovem médico e o
grupo dirigiu-se para a casa onde o tenente-coronel já estava e mais
algumas pessoas importantes da localidade. No meio do povo havia um
homem que também se dirigia para a casa do coronel e que não tirava os
olhos de Camilo e de Isabel. Esse homem mordia o lábio até fazer
sangue. Será preciso dizer que era Leandro Soares?
continua na página 23...
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (IV)
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Advertência
Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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