Audioconto
na voz de Aracy Balabanian
"a velha passeando livre das memórias de sua vida. não que seja um peso, mas certamente a leveza de sentir-se só e livre neste mundo, passeando e sorrindo..."
Era uma velha sequinha que, doce e obstinada, não parecia compreender que estava só no mundo. Os olhos lacrimejavam sempre, as mãos repousavam sobre o vestido preto e opaco, velho documento de sua vida. No tecido já endurecido encontravam-se pequenas crostas de pão coladas pela baba que lhe ressurgia agora em lembrança do berço. Lá estava uma nódoa amarelada, de um ovo que comera há duas semanas. E as marcas dos lugares onde dormia. Achava sempre onde dormir, casa de um, casa de outro. Quando lhe perguntavam o nome, dizia com a voz purificada pela fraqueza e por longuíssimos anos de boa educação:
- Mocinha.
As pessoas sorriam. Contente pelo interesse despertado, explicava:
- Nome, nome mesmo, é Margarida.
O corpo era pequeno, escuro, embora ela tivesse sido alta e clara. Tivera pai, mãe, marido,
dois filhos. Todos aos poucos tinham morrido. Só ela restara com os olhos sujos e expectantes
quase cobertos por um tênue veludo branco. Quando lhe davam alguma esmola davam-lhe
pouca, pois ela era pequena e realmente não precisava comer muito. Quando lhe davam cama
para dormir davam-lhe estreita e dura porque Margarida fora aos poucos perdendo volume. Ela
também não agradecia muito: sorria e balançava a cabeça.
Dormia agora, não se sabia mais por que motivo, no quarto dos fundos de uma casa grande,
numa rua larga cheia de árvores, em Botafogo. A família achava graça em Mocinha mas
esquecia-se dela a maior parte do tempo. É que também se tratava de uma velha misteriosa.
Levantava-se de madrugada, arrumava sua cama de anão e disparava lépida como se a casa
estivesse pegando fogo. Ninguém sabia por onde andava. Um dia uma das moças da casa
perguntou-lhe o que andava fazendo. Respondeu com um sorriso gentil:
- Passeando.
Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade.
Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma
senhora muito boa que pretendia interná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora
viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava
para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se num banco de uma praça e já
via o Rio de Janeiro.
Sua vida corria assim sem atropelos, quando a família da casa de Botafogo um dia
surpreendeu-se de tê-la em casa há tanto tempo, e achou que assim também era demais. De
algum modo tinham razão. Todos lá eram muito ocupados, de vez em quando surgiam
casamentos, festas, noivados, visitas. E quando passavam atarefados pela velha, ficavam
surpreendidos como se fossem interrompidos, abordados com uma pancadinha no ombro:
"olha!" Sobretudo uma das moças da casa sentia um mal-estar irritado, a velha enervava-a sem
motivo. Sobretudo o sorriso permanente, embora a moça compreendesse tratar-se de um ricto
inofensivo. Talvez por falta de tempo, ninguém falou no assunto. Mas logo que alguém cogitou
de mandá-la morar em Petrópolis, na casa da cunhada alemã, houve uma adesão mais animada
do que uma velha poderia provocar.
Quando, pois, o filho da casa foi com a namorada e as duas irmãs passar um fim-de-semana
em Petrópolis, levou a velha no carro.
Por que Mocinha não dormiu na noite anterior? A ideia de uma viagem, no corpo
endurecido o coração se desenferrujava todo seco e descompassado, como se ela tivesse engolido
uma pílula grande sem água. Em certos momentos nem podia respirar. Passou a noite falando, às
vezes alto. A excitação do passeio prometido e a mudança de vida, de repente aclaravam-lhe
algumas ideias. Lembrou-se de coisas que dias antes juraria nunca terem existido. A começar
pelo filho atropelado, morto debaixo de um bonde no Maranhão - se ele tivesse vivido no tráfego
do Rio de Janeiro, aí mesmo é que morria atropelado. Lembrou-se dos cabelos do filho, das
roupas dele. Lembrou-se da xícara que Maria Rosa quebrara e de como ela gritara com Maria
Rosa. Se soubesse que a filha morreria de parto, é claro que não precisaria gritar. E lembrou-se
do marido. Só relembrava o marido em mangas de camisa. Mas, não era possível, estava certa de
que ele ia à repartição com o uniforme de contínuo, ia a festas de paletó, sem falar que não
poderia ter ido ao enterro do filho e da filha em mangas de camisa. A procura do paletó do
marido ainda mais cansou a velha que se virava com leveza na cama. De repente descobriu que a
cama era dura.
- Que cama dura - disse bem alto no meio da noite.
É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo
reclamavam agora a sua atenção. E de súbito - mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se,
desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardava
secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da
boca onde só havia gengiva. E com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora
fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança
se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou
se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e
depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.
E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço
amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para
pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se
penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.
Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar
alegre e com os passos rápidos. "Tem mais saúde do que eu!", brincou o rapaz. À moça da casa
ocorreu: "E eu que até tinha pena dela".
Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs
acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira
arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria, era um dilaceramento.
O rapaz virou-se para trás:
- Não vá enjoar, vovó!
As moças riram, principalmente a que se sentara na frente, a que de vez em quando
encostava a cabeça no ombro do rapaz. Por cortesia, a velha quis responder, mas não pôde. Quis
sorrir, não conseguiu. Olhou para todos, com olhos lacrimejantes, o que os outros já sabiam que
não significava chorar. Qualquer coisa em seu rosto amorteceu um pouco a alegria da moça da
casa e deu-lhe um ar obstinado.
A viagem foi muito bonita.
As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. E, embora o coração
batesse muito, tudo estava melhor. Passaram por um cemitério, passaram por um armazém,
árvore, duas mulheres, um soldado, gato! letras - tudo engolido pela velocidade.
Quando Mocinha acordou não sabia mais onde estava. A estrada já havia amanhecido
totalmente: era estreita e perigosa. A boca da velha ardia, os pés e as mãos distanciavam-se
gelados do resto do corpo. As moças falavam, a da frente apoiara a cabeça no ombro do rapaz.
Os embrulhos despencavam a todo instante.
Então a cabeça de Mocinha começou a trabalhar. O marido apareceu-lhe de paletó - achei,
achei! o paletó estava pendurado o tempo todo no cabide. Lembrou-se do nome da amiga de
Maria Rosa, daquela que morava defronte: Elvira, e a mãe de Elvira até era aleijada. As
lembranças quase lhe arrancavam uma exclamação. Então ela movia os lábios devagar e dizia
baixo algumas palavras.
As moças falavam:
- Ah, obrigada, um presente desses eu rejeito!
Foi quando Mocinha começou finalmente a não entender. Que fazia ela no carro? como
conhecera seu marido e onde? como é que a mãe de Maria Rosa e Rafael, a própria mãe deles,
estava no automóvel com aquela gente? Logo depois acostumou-se de novo.
O rapaz disse para as irmãs:
- Acho melhor não pararmos defronte, para evitar histórias. Ela salta do carro, a gente
ensina aonde é, ela vai sozinha e dá o recado de que é para ficar.
Uma das moças da casa perturbou-se: receava que o irmão, com uma incompreensão típica
de homem, falasse demais diante da namorada. Eles não visitavam mais o irmão de Petrópolis, e
muito menos a cunhada.
- É sim, interrompeu-o a tempo antes que ele falasse demais. Olha, Mocinha, você entra
por aquele beco e não há como errar: na casa de tijolo vermelho, você pergunta por Arnaldo, meu
irmão, ouviu? Arnaldo. Diz que lá em casa você não podia mais ficar, diz que na casa de Arnaldo
tem lugar e que você até pode vigiar um pouco o garoto, viu...
Mocinha desceu do automóvel, e durante um tempo ainda ficou de pé mas pairando
entontecida sobre rodas. O vento fresco soprava-lhe a saia comprida por entre as pernas.
Arnaldo não estava. Mocinha entrou na saleta onde a dona da casa, com um pano contra pó
amarrado na cabeça, tomava café. Um menino louro - decerto aquele que Mocinha deveria vigiar - estava sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as pernas
brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. A alemã encheu-lhe o prato de mingau de aveia,
empurrou-lhe na mesa pão torrado com manteiga. As moscas zuniam.
Mocinha estava fraca. Se bebesse um pouco de café quente talvez passasse o frio no corpo.
A mulher alemã examinava-a de vez em quando em silêncio: não acreditara na história da
recomendação da cunhada, embora "de lá" tudo fosse de se esperar. Mas talvez a velha tivesse
ouvido de alguém o endereço, até num bonde, por acaso, isso às vezes acontecia, bastava abrir um
jornal e ver que acontecia. É que aquela história não estava nada bem contada, e a velha tinha um
ar sabido, nem sequer escondia o sorriso. O melhor seria não deixá-la sozinha na saleta, com o
armário cheio de louça nova.
- Preciso antes tomar café, disse-lhe. Depois que meu marido chegar, veremos o que se
pode fazer.
Mocinha não entendeu muito bem, pois ela falava como gringa. Mas entendeu que era para
continuar sentada. O cheiro de café dava-lhe vontade, e uma vertigem que escurecia a sala toda.
Os lábios ardiam secos e o coração batia todo independente. Café, café, olhava ela sorrindo e
lacrimejando. A seus pés o cachorro mordia a própria pata, rosnando. A empregada, também
meio gringa, alta, de pescoço muito fino e seios grandes, a empregada trouxe um prato de queijo
branco e mole. Sem uma palavra, a mãe esmagou bastante queijo no pão torrado e empurrou-o
para o lado do filho. O menino comeu tudo e, com a barriga grande, agarrou um palito e
levantou-se:
- Mãe, cem cruzeiros.
- Não. Para quê?
- Chocolate.
- Não. Amanhã é que é domingo.
Uma pequena luz iluminou Mocinha: domingo? que fazia naquela casa em vésperas de
domingo? Nunca saberia dizer. Mas bem que gostaria de tomar conta daquele menino. Sempre
gostara de criança loura: todo menino louro se parecia com o Menino Jesus. O que fazia naquela
casa? Mandavam-na à toa de um lado para outro, mas ela contaria tudo, iam ver. Sorriu
encabulada: não contaria era nada, pois o que queria mesmo era café.
A dona da casa gritou para dentro, e a empregada indiferente trouxe um prato fundo, cheio
de papa escura. Gringos comiam muito de manhã, isso Mocinha vira mesmo no Maranhão. A
dona da casa, com seu ar sem brincadeiras porque gringo em Petrópolis era tão sério como no
Maranhão, a dona da casa tirou uma colherada de queijo branco, triturou-o com o garfo e
misturou-o à papa. Para dizer verdade, porcaria mesmo de gringo. Pôs-se então a comer, absorta,
com o mesmo ar de fastio que os gringos do Maranhão têm. Mocinha olhava. O cachorro
rosnava às pulgas.
Afinal Arnaldo apareceu em pleno sol, a cristaleira brilhando. Ele não era louro. Falou em
voz baixa com a mulher, e depois de demorada confabulação, informou firme e curioso para
Mocinha:
- Não pode ser não, aqui não tem lugar não.
E como a velha não protestasse e continuasse a sorrir, ele falou mais alto:
- Não tem lugar não, ouviu?
Mas Mocinha continuava sentada. Arnaldo ensaiou um gesto. Olhou para as duas mulheres
na sala e vagamente sentiu o cômico do contraste. A esposa esticada e vermelha. E mais adiante a
velha murcha e escura, com uma sucessão de peles secas penduradas nos ombros. Diante do
sorriso malicioso da velha, ele se impacientou:
- E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu?
volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? aqui não tem
lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo não, viu!
Mocinha pegou no dinheiro e dirigiu-se à porta. Quando Arnaldo já ia se sentar para
comer, Mocinha reapareceu:
- Obrigada, Deus lhe ajude.
Na rua, de novo pensou em Maria Rosa, Rafael, o marido. Não sentiu a menor saudade.
Mas lembrava-se. Dirigiu-se para a estrada, afastando-se cada vez mais da estação. Sorriu como
se pregasse uma peça a alguém: em vez de voltar logo, ia antes passear um pouco. Um homem
passou. Então uma coisa muito curiosa, e sem nenhum interesse, foi iluminada: quando ela era
ainda uma mulher, os homens. Não conseguia ter uma imagem precisa das figuras dos homens,
mas viu a si própria com blusas claras e cabelos compridos. A sede voltou-lhe, queimando a
garganta. O sol ardia, faiscava em cada seixo branco. A estrada de Petrópolis é muito bonita.
No chafariz de pedra negra e molhada, em plena estrada, uma preta descalça enchia uma
lata de água.
Mocinha ficou parada, espreitando. Viu depois a preta reunir as mãos em concha e beber.
Quando a estrada ficou de novo vazia, Mocinha adiantou-se como se saísse de um
esconderijo e aproximou-se sorrateira do chafariz. Os fios de água escorreram geladíssimos por
dentro das mangas até os cotovelos, pequenas gotas brilharam suspensas nos cabelos.
Saciada, espantada, continuou a passear com os olhos mais abertos, em atenção às voltas
violentas que a água pesada dava no estômago, acordando pequenos reflexos pelo resto do corpo
como luzes.
A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito.
Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava
altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A
estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha
encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu.
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