Machado de Assis
Conto
A parasita azul
Capítulo III
O encontro
Foi um verdadeiro dia de festa aquele em que o comendador cingiu ao
peito o filho que oito anos antes mandara a terras estranhas. Não pôde
reter as lágrimas o bom velho, — não pôde, que elas vinham de um
coração ainda viçoso de afetos e exuberante de ternura. Não menos
intensa e sincera foi a alegria de Camilo. Beijou repetidamente as mãos e
a fronte do pai, abraçou os parentes, os amigos de outro tempo, e
durante alguns dias, — não muitos, — parecia completamente curado dos
seus desejos de regressar à Europa.
Na cidade e seus arredores não se falava em outra coisa. O assunto, não
principal, mas exclusivo das palestras e comentários era o filho do
comendador. Ninguém se fartava de o elogiar. Admiravam-lhes as
maneiras e a elegância. A mesma superioridade com que ele falava a
todos achava entusiastas sinceros. Durante muitos dias foi totalmente
impossível que o rapaz pensasse em outra coisa que não fosse contar as
suas viagens aos amáveis conterrâneos. Mas pagavam-lhe a maçada,
porque a menor coisa que ele dissesse tinha aos olhos dos outros uma
graça indefinível. O Padre Maciel, que o batizara vinte e sete anos antes,
e que o via já homem completo, era o primeiro pregoeiro da sua
transformação.
— Pode gabar-se, Sr. comendador, dizia ele ao pai de Camilo, pode
gabar-se de que o céu lhe deu um rapaz de truz! Santa Luzia vai ter um
médico de primeira ordem, se me não engana o afeto que tenho a esse
que era ainda ontem um pirralho. E não só médico, mas até bom filósofo;
é verdade, parece-me bom filósofo. Sondei-o ontem nesse particular, e
não lhe achei ponto fraco ou duvidoso.
O tio Jorge andava a perguntar a todos o que pensavam do sobrinho
Camilo. O Tenente-coronel Veiga agradecia à Providência a chegada do
Dr. Camilo nas proximidades do Espírito Santo.
— Sem ele, o meu baile seria incompleto.
O Dr. Matos não foi o último que visitou o filho do comendador. Era um
velho alto e bem feito, ainda que um tanto quebrado pelos anos.
— Venha, doutor, disse o velho Seabra apenas o viu assomar à porta:
venha ver o meu homem.
— Homem, com efeito, respondeu Matos contemplando o rapaz. Está mais
homem do que eu supunha. Também já lá vão oito anos! Venha de lá
esse abraço!
O moço abriu os braços ao velho. Depois, como era costume fazer a
quantos o iam ver, contou-lhe alguma coisa das suas viagens e estudos. É
perfeitamente inútil dizer que o nosso herói omitiu sempre tudo quanto
pudesse abalar o bom conceito em que estava no ânimo de todos. A darlhe crédito, vivera quase como um anacoreta; e ninguém ousava pensar o
contrário.
Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o jovem
médico, lisonjeado com a inesperada recepção que teve, continuou a não
pensar muito em Paris. Mas o tempo corre, e as nossas sensações com
ele se modificam. No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade
das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos
ficaram monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade
monótona, ele próprio monótono. Invadiu-o então uma coisa a que
podemos chamar — nostalgia do exílio.
“Não, dizia ele consigo, não posso ficar aqui mais três meses. Paris ou o
cemitério, tal é o dilema que se me oferece. Daqui a três meses, estarei
morto ou em caminho da Europa.”
O aborrecimento de Camilo não escapou aos olhos do pai, que quase vivia
a olhar para ele.
“Tem razão, pensava o comendador. Quem viveu por essas terras que
dizem ser tão bonitas e animadas, não pode estar aqui muito alegre. É
preciso dar-lhe alguma ocupação... a política, por exemplo.”
— Política! exclamou Camilo, quando o pai lhe falou nesse assunto. De
que me serve a política, meu pai?
— De muito. Serás primeiro deputado provincial; podes ir depois para a
Câmara no Rio de Janeiro. Um dia interpelas o ministério, e se ele cair,
podes subir ao governo. Nunca tiveste ambição de ser ministro?
— Nunca.
— É pena!
— Por quê?
— Porque é bom ser ministro.
— Governar os homens, não é? disse Camilo rindo; é um sexo
ingovernável; prefiro o outro.
Seabra riu-se do repente, mas não perdeu a esperança de convencer o
herdeiro.
Havia já vinte dias que o médico estava em casa do pai, quando se
lembrou da história que lhe contara Soares e do sonho que este tivera no
pouso. A primeira vez que foi à cidade e esteve com o filho do negociante,
perguntou-lhe:
— Diga-me, como vai sua Isabel, que ainda a não vi?
Soares olhou para ele com o sobrolho carregado e levantou os ombros
resmungando um seco:
— Não sei.
Camilo não insistiu.
“A moléstia ainda está no período agudo”, disse ele consigo.
Teve porém curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que tão por terra
deitara aquele verboso cabo eleitoral. A todas as moças da localidade, em
dez léguas em redor, havia já falado o jovem médico. Isabel era a única
esquiva até então. Esquiva não digo bem. Camilo fora uma vez à fazenda
do Dr. Matos; mas a filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe
disseram.
— Descanse, dizia-lhe um vizinho a quem ele mostrara impaciência de
conhecer a amada de Leandro Soares; há de vê-la no baile do Coronel
Veiga, ou na festa do Espírito Santo, ou em outra qualquer ocasião.
A beleza da moça, que ele não julgava pudesse ser superior nem sequer
igual à da viúva do príncipe Alexis, a paixão incurável de Soares, e o tal
ou qual mistério com que se falava de Isabel, tudo isso excitou ao último
ponto a curiosidade do filho do comendador.
No domingo próximo, oito dias antes do Espírito Santo, saiu Camilo da
fazenda para ir à missa na igreja da cidade, como já fizera nos domingos
anteriores. O cavalo ia a passo lento, a compasso com o pensamento do
cavaleiro, que se espreguiçava pelo campo fora em busca de sensações
que já não tinha e que ansiava ter de novo.
Mil singulares ideias atravessavam o cérebro de Camilo. Ora, almejava
alar-se com cavalo e tudo, rasgar os ares e ir cair defronte do Palais-Royal, ou em outro qualquer ponto da capital do mundo. Logo depois
fazia a si mesmo a descrição de um cataclismo tal, que ele viesse a achar-se almoçando no Café Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o
Padre Maciel.
De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas
senhoras a cavalo acompanhadas por um pajem. Picou de esporas e
dentro de pouco tempo estava junto dos três cavaleiros. Uma das
senhoras voltou a cabeça, sorriu e parou. Camilo aproximou-se, com a
cabeça descoberta, e estendeu-lhe a mão, que ela apertou.
A senhora a quem cumprimentara era a esposa do Tenente-coronel Veiga.
Representava ter quarenta e cinco anos, mas estava assaz conservada. A
outra senhora, sentindo o movimento da companheira, fez parar também
o cavalo, e voltou igualmente a cabeça. Camilo não olhava então para ela.
Estava ocupado em ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notícias do tenente-coronel.
— Agora só pensa na festa, dizia ela; já deve estar na igreja. Vai à missa,
não?
— Vou.
— Vamos juntos.
Trocadas estas palavras, que foram rápidas, Camilo procurou com os
olhos a outra cavaleira. Ela porém ia já alguns passos adiante. O médico
colocou-se ao lado de D. Gertrudes, e a comitiva continuou a andar. Iam
assim conversando havia já uns dez minutos, quando o cavalo da senhora
que ia adiante estacou.
— Que é, Isabel? perguntou D. Gertrudes.
— Isabel! exclamou Camilo, sem dar atenção ao incidente que provocara
a pergunta da esposa do coronel.
A moça voltou a cabeça e levantou os ombros respondendo secamente:
— Não sei.
A causa era um rumor que o cavalo sentira por trás de uma espessa
moita de taquaras que ficava à esquerda do caminho. Antes porém que o
pajem ou Camilo fosse examinar a causa da relutância do animal, a moça
fez um esforço supremo, e chicoteando vigorosamente o cavalo,
conseguiu que este vencesse o terror, e deitasse a correr a galope adiante
dos companheiros.
— Isabel! disse Camilo a D. Gertrudes. Aquela moça será a filha do Dr.
Matos?
— É verdade. Não a conhecia?
— Há oito anos que não a vejo. Está uma flor! Já não me admira que se
fale aqui tanto na sua beleza. Disseram-me que estava doente...
— Esteve; mas as suas doenças são coisas de pequena monta. São
nervos; assim se diz, creio eu, quando se não sabe do que uma pessoa
padece...
Isabel parara ao longe, e voltada para a esquerda da estrada, parecia
admirar o espetáculo da natureza. Daí a alguns minutos estavam perto
dela os seus companheiros. A moça ia prosseguir a marcha, quando D.
Gertrudes lhe disse:
— Isabel!
A moça voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se dela.
— Não te lembras do Dr. Camilo Seabra?
— Talvez não se lembre, disse Camilo. Tinha doze anos quando eu saí
daqui, e já lá vão oito!
— Lembro-me, respondeu Isabel curvando levemente a cabeça, mas sem
olhar para o médico.
E chicoteando de mansinho o cavalo, seguiu para diante. Por mais
singular que fosse aquela maneira de reatar conhecimento antigo, o que
mais impressionou então o filho do comendador foi a beleza de Isabel,
que lhe pareceu estar na altura da reputação.
Tanto quanto se podia julgar à primeira vista, a esbelta cavaleira devia
ser mais alta que baixa. Era morena, — mas de um moreno acetinado e
macio, com uns delicadíssimos longes cor-de-rosa, — o que seria efeito
da agitação, visto que afirmavam ser extremamente pálida. Os olhos, —
não lhes pôde Camilo ver a cor, mas sentiu-lhes a luz que valia mais
talvez, apesar de o não terem fitado, e compreendeu logo que com olhos
tais a formosa goiana houvesse fascinado o mísero Soares.
Não averiguou, — nem pôde, as restantes feições da moça; mas o que
pôde contemplar à vontade, o que já vinha admirando de longe, era a
elegância nativa do busto e o gracioso desgarro com que ela montava.
Vira muitas amazonas elegantes e destras. Aquela porém tinha alguma
coisa em que se avantajava às outras; era talvez o desalinho do gesto,
talvez a espontaneidade dos movimentos, outra coisa talvez, ou todas
juntas que davam à interessante goiana incontestável supremacia.
Isabel parava de quando em quando o cavalo e dirigia a palavra à esposa
do coronel, a respeito de qualquer acidente, — de um efeito de luz, de um
pássaro que passava, de um som que se ouvia, — mas em nenhuma
ocasião encarava ou sequer olhava de esguelha o filho do comendador.
Absorvido na contemplação da moça, Camilo deixou cair a conversa, e
havia já alguns minutos que ele e D. Gertrudes iam cavalgando, sem dizer
palavra, ao lado um do outro. Foram interrompidos em sua marcha
silenciosa por um cavaleiro que vinha atrás da comitiva a trote largo.
Era Soares.
O filho do negociante vinha bem diferente do que até ali andava.
Cumprimentou-os sorrindo e jovial como estivera nos primeiros dias de
viagem do médico. Não era porém difícil conhecer que a alegria de Soares
era um artifício. O pobre namorado fechava o rosto de quando em
quando, ou fazia um gesto de desespero que felizmente escapava aos
outros. Ele receava o triunfo de um homem que, física e intelectualmente
lhe era superior; que, além disso, gozava naquela ocasião a grande
vantagem de dominar a atenção pública, que era o urso da aldeia, o
acontecimento do dia, o homem da situação. Tudo conspirava para
derrubar a última esperança de Soares, que era a esperança de ver
morrer a moça isenta de todo o vínculo conjugal! O infeliz namorado tinha
o sestro, aliás comum, de querer ver quebrada ou inútil a taça que ele
não podia levar aos lábios.
Cresceu porém seu receio quando, estando escondido no taquaral de que
falei acima, para ver passar Isabel, como costumava fazer muitas vezes,
descobriu a pessoa de Camilo na comitiva. Não pôde reter uma
exclamação de surpresa, e chegou a dar um passo na direção da estrada.
Deteve-se a tempo. Os cavaleiros, como vimos, passaram adiante,
deixando o cioso pretendente a jurar aos céus e à terra que tomaria
desforra do seu atrevido rival, se o fosse.
Não era rival, bem sabemos; o coração de Camilo guardava ainda fresca a
memória da Artemisa moscovita, cujas lágrimas, apesar da distância, o
rapaz sentia que eram ardentes e aflitivas. Mas quem poderia convencer a
Leandro Soares que o elegante moço da Europa, como lhe chamavam,
não ficaria enamorado da esquiva goiana?
Isabel, entretanto, apenas vira o infeliz pretendente, deteve o cavalo e
estendeu-lhe afetuosamente a mão. Um adorável sorriso acompanhou
esse movimento. Não era bastante para dissipar as dúvidas do pobre
moço. Diversa foi porém a impressão de Camilo.
“Ama-o, ou é uma grande velhaca,” pensou ele.
Casualmente, — e pela primeira vez, olhava Isabel para o filho do
comendador. Perspicácia ou adivinhação, leu-lhe no rosto esse
pensamento oculto; franziu levemente a testa com uma expressão tão
viva de estranheza, que o médico ficou perplexo e não pôde deixar de
acrescentar, já então com os lábios, à meia voz falando para si:
— Ou fala com o diabo.
— Talvez, murmurou a moça com os olhos fitos no chão.
Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camilo não
podia desviar os olhos da formosa Isabel, meio espantado, meio curioso,
depois da palavra murmurada por ela em tão singulares condições.
Soares olhava para Camilo com a mesma ternura com que um gavião
espreita uma pomba. Isabel brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que
temia perder a missa do padre Maciel e receber um reparo amigável do
marido, deu voz de marcha, e a comitiva seguiu imediatamente.
continua na página 17
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Leia também:
Histórias da Meia-Noite: A parasita azul (III)
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Advertência
Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. Não digo com isto que o gênero seja menos digno da atenção dele, nem que deixe de exigir predicados de observação e de estilo. O que digo é que estas páginas, reunidas por um editor benévolo, são as mais desambiciosas do mundo.
Aproveito a ocasião que se me oferece para agradecer à crítica e ao público a generosidade com que receberam o meu primeiro romance, há tempos dado à luz. Trabalhos de gênero diverso me impediram até agora de concluir outro, que aparecerá a seu tempo.
10 de novembro de 1873.
M.A.
Texto-fonte:
Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873
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