quinta-feira, 15 de agosto de 2024

O Banqueiro Anarquista - Nesta altura, disse ele, apareceu uma coisa nova

O Banqueiro Anarquista


Fernando Pessoa


- Nesta altura, disse ele, apareceu uma coisa nova. ``Nesta altura'' é modo de dizer. Quero dizer que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a valer...

"V. recorda-se, não é verdade? Daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso, assentei que devia ser o processo de ação dos anarquistas... Um processo, ou processos, quaisquer pelo qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais; um processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura...'' 
"Pois bem: uma vez assente este critério, nunca mais deixei de o ter presente... Ora, na altura da nossa propaganda em que estou falando, descobri uma coisa. No grupo de propaganda - não éramos muitos; éramos quarenta, salvo erro - dava-se este caso: criava-se tirana.''

- Criava-se tirania?... Criava-se tirania como?

- Da seguinte maneira... Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam outros por manhas e por artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em coisas graves; mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o fato é que isto acontecia sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por imposição; outros eram chefes por manha. No fato mais simples isto se via. Por exemplo: dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora; chegavam ao fim da rua, e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda; cada um tinha conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro, ``venha V. comigo por aqui''; o outro respondia, e era verdade, ``Homem, não posso; tenho que ir por ali'' por esta ou aquela razão... Mas afinal, contra sua vontade e sua conveniência, lá ia com o outro para a esquerda... Isto era uma vez por persuasão, outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um outro motivo qualquer... Isto é, nunca era por uma razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo, de como que instintivo... E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde os menos até aos mais importantes... V. vê bem o caso?

- Vejo. Mas que diabos há de estranho nisso? Isso é tudo quanto há de mais natural...

- Será. Já vamos a isso. O que lhe peço que note é que é exatamente o contrário da doutrina anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo pequeno, num grupo sem influência nem importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de nenhuma questão grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se passava num grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse para o fim anarquista - isto é, para combate, tanto quando possível, as ficções sociais, e criar, tanto quando possível, a liberdade futura. V. reparou bem nestes dois pontos? 

- Reparei.

- Veja agora bem o que isto representa... Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto-lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de positivo e concreto - a criação entre si de tirania. E repare que tirania... Não era uma tirania derivada da ação das ficções sociais, que, embora lamentável, seria desculpável, até certo ponto, ainda que menos em nós, que combatíamos essas ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma sociedade baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de todo fugir à sua ação. Mas não era isso. Os que mandavam nos outros, ou os levavam para onde queriam, não faziam isso pela força do dinheiro, ou da posição social, ou de qualquer autoridade de natureza fictícia, que se arrogassem; faziam-no por uma ação de qualquer espécie fora das ficções sociais, uma tirania nova. E era uma tirania exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por cima, tirania exercida entre si por gente cujo intuído sincero não era senão destruir tirania e criar liberdade. 

"Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando já de questões importantes e de decisões de caráter fundamental. Ponha esse grupo a encaminha os seus esforços, como o nosso, para a formação de um sociedade livre. E agora diga-me se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas V. entrevê qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com um humanidade digna de si própria...''

- Sim: isso é muito curioso...

- É curioso, não é?...E olhe que há pontos secundários também muito curiosos... Por exemplo: a tirania do auxílio...

- A quê? 

- A tirania do auxílio. Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do mesmo modo ir contra os princípios anarquistas. 

- Essa é boa? Em quê?

- Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade.  

"Voltemos ao nosso caso... V. vê bem que este ponto era gravíssimo. Vá que trabalhássemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou arriscando-nos, mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, vá. Mas o que era demais era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos, de positivo, mais que criar tirania, e não só tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por nós, os oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto é que não pode ser...''
"Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos? Com certeza que deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso e ia dando em doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei com a solução. Foi o grande dia das minhas teorias anarquistas; o dia em que descobri, por assim dizer, a técnica do anarquismo.'' 

     Olhou-me um momento sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.

- Pensei assim... Temos aqui uma tirania nova, uma tirania que não é derivada das ficções sociais. Então de onde é que ela derivada? Será derivada das qualidades naturais? Se é, adeus sociedade livre! Se uma sociedade onde estão em operação apenas as qualidades naturais dos homens - aquelas qualidades com que eles nascem, que devem só à Natureza, e sobre as quais não temos poder nenhum -, se uma sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado de tiranias, quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa sociedade? Tirania por tirania, fique a que está, que ao menos é aquela a que estamos habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que estaríamos uma tirania nova, e com o caráter terrível de todas as coisas tirânicas que são diretamente da Natureza - o não haver revolta possível contra ela, como não há revolução contra ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se preferia ter nascido alto. Mesmo, eu já lhe provei que, se por qualquer razão não é realizável a sociedade anarquista, então deve existir, por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade burguesa.

"Mas seria esta tirania, que nascia assim entre nós, realmente derivada das qualidades naturais? Ora o que são as qualidades naturais? São o grau de inteligência, de imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce - isto no campo mental, é claro, porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso. Ora um tipo que, sem ser por uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por força que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais. Domina-o pelo emprego das suas qualidades naturais. Mas há uma coisa a ver: esse emprego das qualidades naturais será legítimos, isto é, será natural?''  
"Ora qual é o emprego natural das nossas qualidades naturais? O servir os fins naturais da nossa personalidade. Ora dominar alguém será um fim natural da nossa personalidade? Pode sê-lo; há um caso em que pode sê-lo: é quando esse alguém está para nós num lugar de inimigo. Para o anarquista, é claro, quem está num lugar de inimigo, é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania; mais ninguém, porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas naturais. Ora, V. bem vê, o caso da tirania, que tínhamos estado criando, era exercida sobre homens como nós, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas vezes nossos camaradas, porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal. Conclusão: esta nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não era derivada das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma perversão, das qualidades naturais. E essa perversão, de onde é que provinha?''
"Tinha que provir de uma de duas cousas: ou de o homem ser naturalmente mau, e portanto todas as qualidades naturais serem naturalmente pervertidas; ou de uma perversão resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de ficções sociais, todas elas criadoras de tirania, e tendente, portanto, a tornar já instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais. Ora, destas duas hipóteses, qual é que seria a verdadeira? De um modo satisfatório - isto é, rigorosamente lógico ou científico - era impossível determinar. O raciocínio não pode entrar com o problema, porque ele é de ordem histórica, ou científica, e depende do conhecimento de fatos. Por seu lado, a ciência também nos não ajuda, porque, por mais longe que recuemos na história, encontramos sempre o homem vivendo sob um ou outro sistema de tirania social, e portanto sempre num estado que nos não permite averiguar como é o homem quando vive em circunstâncias pura e inteiramente naturais. Não havendo maneira de determinar ao certo, temos que pender para o lado da maior probabilidade; e a maior probabilidade está na segunda hipótese. É mais natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidade naturais pervertidas no sentido de tiranizar, do que supor que qualidades naturais podem ser naturalmente pervertidas, o que, de certo modo, representa uma contradição. Por isso o pensador decide-se, como eu me decidi, com uma quase absoluta segurança, pela segunda hipótese.''
"Temos, pois, que uma coisa é evidente... No estado social presente não é possível um grupo de homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade, trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si uma tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo quanto querem na teoria, sem involuntariamente estorvar o mais possível o próprio intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples... É trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.'' 

- Separados?

- Sim. V. não seguiu o meu argumento? 

- Segui.

- E não acha lógica, não acha fatal esta conclusão?

- Acho, sim, claro... Disse eu: trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados. Trabalharmos todos para o mesmo fim anarquista, cada um contribui com o seu esforço para a destruição das ficções sociais, que é para onde o dirige, e para a criação da sociedade livre do futuro; e trabalhando separados não podemos, de modo nenhum, criar tirania nova, porque nenhum tem ação sobre o outro, e não pode portanto, nem, dominando-o, diminuir-lhe a liberdade, nem, auxiliando-o, apagar-lhe. 

"Trabalhando assim separados e para o mesmo fim anarquista, temos as duas vontades - a do esforço, e a da não criação de tirania nova. Continuamos unidos, porque o estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim; continuamos anarquistas, porque cada um trabalha para a sociedade livre; mas deixamos de ser traidores, voluntários ou involuntários, à nossa cousa, deixamos mesmo de poder sê-lo, porque nos colocamos, pelo trabalho anarquista isolado, fora da influência deletéria das ficções sociais, no seu reflexo hereditário sobre as qualidades que a Natureza deu.''
"É claro que toda esta tática se aplica ao que eu chamei de período de preparação para a revolução social. Arruinadas as defesas burguesas, e reduzida a sociedade inteira ao estado de aceitação das doutrinas anarquistas, faltando só fazer a revolução social, então, para o golpe final, é que não pode continuar a ação separada. Mas nessa altura, já a sociedade livre estará virtualmente chagada; já as coisas serão de outra maneira. A tática a que me refiro só diz respeito à ação anarquista em meio da sociedade burguesa, como agora, como no grupo a que eu pertencia.'' 
"Era esse - até que enfim! - o verdadeiro processo anarquista. Juntos, nada valíamos, que importasse, e, ainda por cima, nos tiranizávamos, e nos estorvávamos uns aos outros e às nossas teorias. Separados, pouco também conseguiríamos, mas ao menos não estorvávamos a liberdade, não criávamos tirania nova; o que conseguíamos, pouco que fosse, era realmente conseguido, sem desvantagem nem perda. E, de mais a mais, trabalhávamos assim separados, aprendíamos a confiar mais em nós mesmos, a não nos encostarmos uns aos outros, a tornarmo-nos mais livres já, a prepararmo-nos, tanto pessoalmente, como aos outros pelo nosso exemplo, para o futuro.''
"Fiquei radiante com essa descoberta. Fui logo expô-la aos meus camaradas... Foi uma das poucas vezes em que fui estúpido na minha vida. Imagine V. que eu estava tão cheio da minha descoberta que esperava que eles concordassem...''

- Não concordaram, é claro... 

continua na página 14...
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Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/bancanarco.htm

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