Fernando Pessoa
- Nesta altura, disse ele, apareceu uma coisa nova. ``Nesta altura'' é modo de dizer. Quero dizer que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a valer...
"V. recorda-se, não é verdade? Daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso, assentei que devia ser o processo de ação dos anarquistas... Um processo, ou processos, quaisquer pelo qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa nenhuma a pouca liberdade dos atuais oprimidos pelas ficções sociais; um processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura...''
"Pois bem: uma vez assente este critério, nunca mais deixei de o ter presente... Ora,
na altura da nossa propaganda em que estou falando, descobri uma coisa. No grupo
de propaganda - não éramos muitos; éramos quarenta, salvo erro - dava-se este caso:
criava-se tirana.''
- Criava-se tirania?... Criava-se tirania como?
- Da seguinte maneira... Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam;
uns impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam
outros por manhas e por artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em
coisas graves; mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o fato é
que isto acontecia sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos
relacionados com a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns
iam insensivelmente para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns
eram chefes por imposição; outros eram chefes por manha. No fato mais simples isto
se via. Por exemplo: dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora; chegavam ao fim
da rua, e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda; cada um tinha
conveniência em ir para o seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o outro,
``venha V. comigo por aqui''; o outro respondia, e era verdade, ``Homem, não posso;
tenho que ir por ali'' por esta ou aquela razão... Mas afinal, contra sua vontade e sua
conveniência, lá ia com o outro para a esquerda... Isto era uma vez por persuasão,
outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um outro motivo qualquer... Isto
é, nunca era por uma razão lógica; havia sempre nesta imposição e nesta
subordinação qualquer coisa de espontâneo, de como que instintivo... E como neste
caso simples, em todos os outros casos; desde os menos até aos mais importantes...
V. vê bem o caso?
- Vejo. Mas que diabos há de estranho nisso? Isso é tudo quanto há de mais natural...
- Será. Já vamos a isso. O que lhe peço que note é que é exatamente o contrário da
doutrina anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo pequeno, num grupo
sem influência nem importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de
nenhuma questão grave ou decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare que se
passava num grupo de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse
para o fim anarquista - isto é, para combate, tanto quando possível, as ficções sociais,
e criar, tanto quando possível, a liberdade futura. V. reparou bem nestes dois pontos?
- Reparei.
- Veja agora bem o que isto representa... Um grupo pequeno, de gente sincera
(garanto-lhe que era sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar
pela causa da liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de
positivo e concreto - a criação entre si de tirania. E repare que tirania... Não era uma
tirania derivada da ação das ficções sociais, que, embora lamentável, seria
desculpável, até certo ponto, ainda que menos em nós, que combatíamos essas
ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma sociedade
baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não pudéssemos de
todo fugir à sua ação. Mas não era isso. Os que mandavam nos outros, ou os levavam
para onde queriam, não faziam isso pela força do dinheiro, ou da posição social, ou de
qualquer autoridade de natureza fictícia, que se arrogassem; faziam-no por uma ação
de qualquer espécie fora das ficções sociais, uma tirania nova. E era uma tirania
exercida sobre gente essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por
cima, tirania exercida entre si por gente cujo intuído sincero não era senão destruir
tirania e criar liberdade.
"Agora ponha o caso num grupo muito maior, muito mais influente, tratando já de
questões importantes e de decisões de caráter fundamental. Ponha esse grupo a
encaminha os seus esforços, como o nosso, para a formação de um sociedade livre. E
agora diga-me se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas V. entrevê
qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com um
humanidade digna de si própria...''
- Sim: isso é muito curioso...
- É curioso, não é?...E olhe que há pontos secundários também muito curiosos... Por
exemplo: a tirania do auxílio...
- A quê?
- A tirania do auxílio. Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de
se impor aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o
contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do
mesmo modo ir contra os princípios anarquistas.
- Essa é boa? Em quê?
- Auxiliar alguém, meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é
incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no
segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso
parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e
indigno ou incapaz de liberdade.
"Voltemos ao nosso caso... V. vê bem que este ponto era gravíssimo. Vá que
trabalhássemos pela sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou
arriscando-nos, mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, vá. Mas o que era demais
era estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos, de positivo,
mais que criar tirania, e não só tirania, mas tirania nova, e tirania exercida por nós, os
oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto é que não pode ser...''
"Pus-me a pensar. Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram
bons; as nossas doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos?
Com certeza que deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso
e ia dando em doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei
com a solução. Foi o grande dia das minhas teorias anarquistas; o dia em que
descobri, por assim dizer, a técnica do anarquismo.''
Olhou-me um momento sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.
- Pensei assim... Temos aqui uma tirania nova, uma tirania que não é derivada das
ficções sociais. Então de onde é que ela derivada? Será derivada das qualidades
naturais? Se é, adeus sociedade livre! Se uma sociedade onde estão em operação
apenas as qualidades naturais dos homens - aquelas qualidades com que eles
nascem, que devem só à Natureza, e sobre as quais não temos poder nenhum -, se
uma sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado
de tiranias, quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa
sociedade? Tirania por tirania, fique a que está, que ao menos é aquela a que
estamos habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que estaríamos uma
tirania nova, e com o caráter terrível de todas as coisas tirânicas que são diretamente
da Natureza - o não haver revolta possível contra ela, como não há revolução contra
ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se preferia ter nascido alto. Mesmo, eu
já lhe provei que, se por qualquer razão não é realizável a sociedade anarquista, então
deve existir, por ser mais natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade
burguesa.
"Mas seria esta tirania, que nascia assim entre nós, realmente derivada das
qualidades naturais? Ora o que são as qualidades naturais? São o grau de
inteligência, de imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce - isto no campo
mental, é claro, porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso. Ora um
tipo que, sem ser por uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por força
que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais. Domina-o
pelo emprego das suas qualidades naturais. Mas há uma coisa a ver: esse emprego
das qualidades naturais será legítimos, isto é, será natural?''
"Ora qual é o emprego natural das nossas qualidades naturais? O servir os fins
naturais da nossa personalidade. Ora dominar alguém será um fim natural da nossa
personalidade? Pode sê-lo; há um caso em que pode sê-lo: é quando esse alguém
está para nós num lugar de inimigo. Para o anarquista, é claro, quem está num lugar
de inimigo, é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania; mais
ninguém, porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas
naturais. Ora, V. bem vê, o caso da tirania, que tínhamos estado criando, era exercida
sobre homens como nós, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas
vezes nossos camaradas, porque o eram também pela comunhão do mesmo ideal.
Conclusão: esta nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não
era derivada das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma
perversão, das qualidades naturais. E essa perversão, de onde é que provinha?''
"Tinha que provir de uma de duas cousas: ou de o homem ser naturalmente mau, e
portanto todas as qualidades naturais serem naturalmente pervertidas; ou de uma
perversão resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de
ficções sociais, todas elas criadoras de tirania, e tendente, portanto, a tornar já
instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais. Ora, destas
duas hipóteses, qual é que seria a verdadeira? De um modo satisfatório - isto é,
rigorosamente lógico ou científico - era impossível determinar. O raciocínio não pode
entrar com o problema, porque ele é de ordem histórica, ou científica, e depende do
conhecimento de fatos. Por seu lado, a ciência também nos não ajuda, porque, por
mais longe que recuemos na história, encontramos sempre o homem vivendo sob um
ou outro sistema de tirania social, e portanto sempre num estado que nos não permite
averiguar como é o homem quando vive em circunstâncias pura e inteiramente
naturais. Não havendo maneira de determinar ao certo, temos que pender para o lado
da maior probabilidade; e a maior probabilidade está na segunda hipótese. É mais
natural supor que a longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais
criadoras de tirania faça cada homem nascer já com as suas qualidade naturais
pervertidas no sentido de tiranizar, do que supor que qualidades naturais podem ser
naturalmente pervertidas, o que, de certo modo, representa uma contradição. Por isso
o pensador decide-se, como eu me decidi, com uma quase absoluta segurança, pela
segunda hipótese.''
"Temos, pois, que uma coisa é evidente... No estado social presente não é possível
um grupo de homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que
estejam todos só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade,
trabalharem juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si
uma tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo
quanto querem na teoria, sem involuntariamente estorvar o mais possível o próprio
intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples... É trabalharmos
todos para o mesmo fim, mas separados.''
- Separados?
- Sim. V. não seguiu o meu argumento?
- Segui.
- E não acha lógica, não acha fatal esta conclusão?
- Acho, sim, claro... Disse eu: trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.
Trabalharmos todos para o mesmo fim anarquista, cada um contribui com o seu
esforço para a destruição das ficções sociais, que é para onde o dirige, e para a
criação da sociedade livre do futuro; e trabalhando separados não podemos, de modo
nenhum, criar tirania nova, porque nenhum tem ação sobre o outro, e não pode
portanto, nem, dominando-o, diminuir-lhe a liberdade, nem, auxiliando-o, apagar-lhe.
"Trabalhando assim separados e para o mesmo fim anarquista, temos as duas
vontades - a do esforço, e a da não criação de tirania nova. Continuamos unidos,
porque o estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim;
continuamos anarquistas, porque cada um trabalha para a sociedade livre; mas
deixamos de ser traidores, voluntários ou involuntários, à nossa cousa, deixamos
mesmo de poder sê-lo, porque nos colocamos, pelo trabalho anarquista isolado, fora
da influência deletéria das ficções sociais, no seu reflexo hereditário sobre as
qualidades que a Natureza deu.''
"É claro que toda esta tática se aplica ao que eu chamei de período de preparação
para a revolução social. Arruinadas as defesas burguesas, e reduzida a sociedade
inteira ao estado de aceitação das doutrinas anarquistas, faltando só fazer a revolução
social, então, para o golpe final, é que não pode continuar a ação separada. Mas
nessa altura, já a sociedade livre estará virtualmente chagada; já as coisas serão de
outra maneira. A tática a que me refiro só diz respeito à ação anarquista em meio da
sociedade burguesa, como agora, como no grupo a que eu pertencia.''
"Era esse - até que enfim! - o verdadeiro processo anarquista. Juntos, nada valíamos,
que importasse, e, ainda por cima, nos tiranizávamos, e nos estorvávamos uns aos
outros e às nossas teorias. Separados, pouco também conseguiríamos, mas ao
menos não estorvávamos a liberdade, não criávamos tirania nova; o que
conseguíamos, pouco que fosse, era realmente conseguido, sem desvantagem nem
perda. E, de mais a mais, trabalhávamos assim separados, aprendíamos a confiar
mais em nós mesmos, a não nos encostarmos uns aos outros, a tornarmo-nos mais
livres já, a prepararmo-nos, tanto pessoalmente, como aos outros pelo nosso exemplo,
para o futuro.''
"Fiquei radiante com essa descoberta. Fui logo expô-la aos meus camaradas... Foi
uma das poucas vezes em que fui estúpido na minha vida. Imagine V. que eu estava
tão cheio da minha descoberta que esperava que eles concordassem...''
- Não concordaram, é claro...
continua na página 14...
__________________
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O Banqueiro Anarquista - Nesta altura, disse ele, apareceu uma coisa nova
O Banqueiro Anarquista - Repontaram, meu amigo, repontaram todos!
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/bancanarco.htm
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