a cândida deu um oi frio e rápido, passou direto, assim como
apareceu do nada, seguiu em frente, não olhou, não viu meus olhos quentes e
apaixonados, atravessou a cortina da sombra esparramada pelo pátio, continuei
parado no cais do porto, o lugar seguro para os afogados, olhei para os lados,
pensei, Vamos dar o fora daqui, não disse, não disse, não disse, ia continuar
sentado esperando neste caminho sem fim, incapaz de acabar com qualquer
esperança, o sol molhava meu rosto e eu sem nada, sem nenhuma palavra sequer,
continuaria ali sentado pela vida inteira, babando, queimando, não sabia o que
fazer, queria ser visto, tudo o que eu podia ver à minha frente era aquela
lindinha, como deve ser se sentir gostosa e desejada, não sei como é se sentir
assim, eu gostaria de saber o que ela pensa
o contrário de como me sinto, alguém que não existe, feio e
recusável, não desperto apetência nenhuma, um resto de nenhuma esperança que o
relógio nunca desperta, adormecido, um caso clássico de negligência da natureza,
os deuses da beleza estavam bêbados na minha vez, meu desenho saiu grande, torto e feio, não
gostavam de fato de mim, nenhuma chance de viver aquilo que mais quero,
abandonar essa dor de ser invisível
tempos difíceis nestes dias que começam e não terminam
a cândida também está no terceiro ano do médio, no topo das
meninas mais respeitadas da escola, no meu jeito de ver não tem para ninguém, é
a mais lindinha e a mais poderosa com sua calça colada, tipo entrou e não sai
mais, um perigo, ela parece que está na maldade, eu preciso saber como vai essa
lindinha, gosto mais dela que de mim mesmo, não sei se isso é ruim
sigo olhando seu desfile, babando suas dobras e cruzamentos, sua lindeza, tudo se passa muito lentamente, penso o que seria bom para mim num domingo à tarde, meus olhos tristonhos
desejando aquele paraíso, enfio as mãos nos bolsos vazios, é um cansaço estar
sempre com os bolsos vazios, não tem explicação não ter coragem para falar do
meu desejo pelo calor do seu corpo, esquecer tudo e ficar em paz num domingo à tarde
mais adiante, ela encontra outras meninas da turma, estão
reunidas tagarelando, fazem o tipo se contorcendo, balançando a esmo, minhas
malditas orelhas não escutam, não tem importância, fico vigiando seus
movimentos pelo canto dos olhos, as mãos nos bolsos me alisando, me sinto um idiota envergonhado, como seria bom ficar com você
continuamos sentados, apenas olhando, realmente ela me parece
a melhor, acho que isso é amor, te fazer companhia, falam alto, não entendo, acho que estão fingindo
que não nos viram, como os guris elas fazem planos secretos para continuarem
juntas, não são nada discretas, pensei em quantas estariam, daqui alguns anos,
casadas, donas de casa, mães, divorciadas, mal amadas, sozinhas, esperando
inutilmente num quarto vazio e frio, qual delas fingiria estar excitada num rio
falso de vertigens, assim acontecia apenas porque teriam mais a perder que nós
homens ou tinham sido ensinadas dessa maneira, não sei, quem sabe menos das
coisas sabe muito mais que eu, mas conte sempre comigo
olho para gustavo e dalton, pensei em parar de fazer
perguntas, gostaria que tivéssemos bastante dinheiro, em vez de caminhar em
ruas esburacadas, continuava em silêncio, sentados, me voltei e anunciei, Sexo
é um negócio, não é esporte, os dois me olharam em silêncio, o tempo parou
esperando a continuação, mas não tem continuação, sei lá, parado assim eu
sofro, fico imprudente com as palavras, talvez leviano, foi uma frase estúpida,
talvez não
estávamos surpresos, eu também me surpreenderia, coisas da
vida, enfim disse, Acho que com dinheiro podemos viver a vida que queremos, Tu
é um idiota, Eu sei, eu sei... não me dou valor, mas se estivessem me enfiando
dinheiro nos bolsos, essa cara feia, que tem uma vida inteira pra viver, não
ficaria sozinha, encontraria as mais lindas companhias, as garotas me olharia
com cobiça ao passar, encarando, sussurrando minha qualidades.
Tu ainda quer ser escritor?
Sim.
E quem vai enfiar dinheiro nesses bolsos vazios?
para o mundo inteiro era indiferente o que se passava aqui
dentro de mim, sem recordações, nada demais, nada do que quero vai sobreviver
nem a lembrança das minhas mãos me aquecendo, apenas meu pai e seus sonhos, Eu
devia ter acreditado em meu pai.
dalton não parecia com paciência para me oferecer um funeral
decente, Mas afinal, o que seu pai tem com isso tudo?
pensei, Vou dizer simplesmente dos sonhos de papai e dos meus
medos, mas deixei que minha autoestima literária contasse uma pequena história
de verdades e mentiras, É o seguinte, Dalton, para papai todo jogador de futebol tem uma vida de
dinheirama, muita fortuna e fartura de garotas. Desde que dei meus primeiros
passos, ele sonhava em me ver jogando num grande estádio, vestindo a camisa da
seleção brasileira. Como muitos pais apaixonados pelo futebol, ele me imaginava
driblando adversários, levantando a torcida com minhas jogadas enfeitiçadas,
provocativas, fazendo o adversário sangrar com meus gols, levantando troféus. E
assim, sábado após sábado, papai se tornava o meu motorista oficial, sempre
animado e disposto a incentivar o seu pequeno atleta. A rotina dos sábados era
intensa, cheguei quase a acreditar, mas no fundo, eu sabia que não ia ser
daquele jeito nem do meu jeito nem de jeito nenhum, ainda não compreendia,
apenas desconfiava que mostarda barata e aguada não faz um bom sanduíche.
continuávamos parados e sentados, acne e espinhas me marcando,
orelhas redondas flutuando ao vento, Logo pela manhã, papai iniciava os
preparativos. Ajeitava minha mochila, enquanto eu me amarrava nas chuteiras, as
mesmas que ele havia escolhido com tanta esperança. A caminho do campo, ele
contava histórias de grandes jogadores, partidas emocionantes e episódios
heroicos de superação. Eu escutava encantado, atraído por cada palavra,
enquanto sonhava acordado os sonhos de meu pai com os aplausos e fritos
animados da torcida. Nessas histórias, não existiam as vaias, derrotas,
fracassos, seus heróis eram invencíveis.
talvez, um dos três se tornasse um caminhoneiro invencível
sentado na boleia do caminhão, no para-choque o nome dela, o coração no para-brisa
cheio de desejo, No campo, papai observava cada um dos meus movimentos com
atenção e cuidado, sentado à beira do gramado. Acompanhava o treino torcendo e
vibrando a cada chute meu no gol. O calor do sol refletia em seu rosto, mas
nada se comparava a emoção dele me ver correndo, me esforçando, mudando de direção
como se o campo fosse uma pista de dança. A paixão que eu sentia era
contagiante, ele me perguntava se estava colocando muita pressão sobre meus
ombros e pés, vivia mais ansioso que eu. Afinal, o sonho era dele, eu tinha
outros interesses nada parecidos com futebol. Em momentos de dúvida, papai se
lembrava das manhãs em que vovô o levava aos campos, o seu desejo de ser atleta
e a frustração de não ter conseguido. Agora, nem quero lembrar se era isso que
queria pra mim.
os dois continuavam em silêncio e para minha surpresa estavam
atentos, mistérios que se vão e vêm de longe, impotentes feridas, o tempo era
ao mesmo tempo muito lento e muito rápido, eles podiam levantar e sair para
viver as suas vidas e esquecer, mas estavam ao meu lado, coisas da vida, Sabia
que a resposta não viria fácil. No final do treino, enquanto eu corria em sua
direção com um sorriso no rosto, eu sentia meu coração aquecer. Ali estava a
razão dos meus esforços, a alegria pura de um menino que ainda não sabia da
pressão do mundo dos adultos, só queria o meu pai ao meu lado pra sempre,
independente do caminho escolhido, fecho os olhos de saudade, ele sempre foi
mais importante que o futebol, eu sentia que ele sabia tudo. Não se dedicava só
em me levar, mas também observava meus interesses. Jogar bola era apenas parte
do que eu gostava. Até que descobri a biblioteca da escola. Uma bruma leve me
entrou de leve, caminhava pela biblioteca, brincando, olhando e cheirando os
livros, sussurrando suas histórias, lentamente fui aprendendo contar e escrever
histórias. Ele percebeu que meu futuro não era um caminho a ser traçado, mas
uma viagem a ser explorada.
levantei, meus únicos dois ouvintes continuavam sentados, em
silêncio, surpreendidos, a nossa conversa animada se perdera, voltei a observar
as meninas, o pensamento em mim era uma navalha, um feioso covarde com um pai
apoiador que jogou fora a oportunidade da dinheirama sem desejo de jogar
futebol
a vida não é feita de ilusão
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Leia também:Ensaio - primeiro dia: 01
Ensaio - cartão magnético: 02
Ensaio - a dois passos do céu, as pernas tremendo: 03
Ensaio - a vida não é feita de ilusão: 04
Ensaio - a porta sempre aberta: 05
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