sábado, 31 de agosto de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIII - Os Mortos

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







OS MORTOS 


Ao menos junto aos mortos pode a gente 
Crer e esperar n’alguma suavidade: 
Crer no doce consolo da saudade 
E esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente 
Não perde a sua viva claridade; 
Cantam as aves do céu na intimidade 
Do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida, 
Dão a lembrança vaga, indefinida 
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo 
Os mortos são ainda o bem profundo 
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.





FLORIPES


Fazes lembrar as mouras dos castelos, 
As errantes visões abandonadas 
Que pelo alto das torres encantadas 
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos 
Acordam-te nas formas delicadas 
Saudades mortas de regiões sagradas, 
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia 
Dá-te segredos de melancolia, 
Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas 
Vão morrer no calor dessas madeixas, 
Nas virgens florescências do teu sono.





O CEGO DO HARMONIUM


Esse cego do harmonium me atormenta 
E atormentando me seduz, fascina. 
A minh’alma para ele vai sedenta 
Por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta 
Como um luar de mórbida neblina. 
O harmonium geme certa queixa lenta, 
Certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos 
Mortos em flor, dois luminosos beijos 
Fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário 
Que prende-me a esse cego solitário, 
De olhos aflitos como vãos gemidos!




_________________________


De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIV - Lirial

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXV - Visão Medieva

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVI - Vanda

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVII - Êxtase

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXVIII - A Partida

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIX - Manhã

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXX - Aspiração

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXI - Pássaro Marinho

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXII - Magnólia dos trópicos

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIV - Horas de sombra


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

MPBrasileira - Bossa Nova

João Gilberto 


- Pra Que Discutir Com Madame




Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor









Pra Que Discutir Com Madame


Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz o que samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar
Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor


Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Pra quê discutir com madame?


Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Pra quê discutir com madame?


No carnaval que vem também concorro
Meu bloco de morro vai cantar ópera
E na Avenida, entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto
Madame tem um parafuso a menos
Só fala veneno, meu Deus, que horror
O samba brasileiro democrata
Brasileiro na batata é que tem valor



Composição: Janet De Almeida / Haroldo Barbosa ·


Poesia Africana: Olinda Beja (São Tomé e Príncipe)

Poesia Africana - 10





Por ti espero
na calma do poente
entre a ânsia
e o amor que me consome







QUEM SOMOS?

O mar chama por nós, somos ilhéus!
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma


somos pescadores-marinheiros
de marés vivas onde se escondeu
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu


a nossa ilha balouça ao sabor das vagas
e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória...


Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar
ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada


continuaremos a plantar café cacau
e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão





POR TI

Por ti espero naquela roça grande
no perfume do izaquente
no sopro do vento irrequieto
no riso da montanha misteriosa.


Por ti espero junto ao secador
que meu avô ajudou a construir
e o cheiro do cacau
invade o corpo
que acalenta a esperança
de rever-te.


Espero sentada
no caminho que vai até à Grota
e serpenteio
a estrada de Belém onde as fruteiras
espreitam o sol
e o vianteiro.


Por ti espero
na calma do poente
entre a ânsia
e o amor que me consome.


A tarde vai caindo e nostalgicamente
arrastando o meu dilúvio de ternura.


Por ti espero ainda
no breu da noite imensa
na raiva que a paixão derrama e sangra
e é o tam-tam da madrugada que me obriga
a apagar da memória
a tua imagem





RAÍZES

Há rumores de mil cores enfeitando o espaço
de gorjeios infantis
transportando aquele abraço de anãs juvenis
árias que perduram na mensagem
da nossa voz e da nossa imagem.


São rumores de tambores
repercutindo a esperança de olhares inquietos
toada de lembranças
liturgia de afectos.


São rumores maternais
presos à terra que nos diz
que só o maior dos vendavais
arranca da árvore a raiz.






Sessão com a escritora e contadora de histórias Olinda Beja,
na Escola Básica dos 2º e 3º Ciclos dos Louros








Los Poetas del Amor... Antonio Machado (España)

Los Poetas del Amor (56)






Yo voy soñando caminos
de la tarde. ¡Las colinas
doradas, los verdes pinos,
las polvorientas encinas! ...
No te verán mis ojos;
¡mi corazòn te aguarda!






HE ANDADO MUCHOS CAMINOS

He andado muchos caminos,
he abierto muchas veredas,
he navegado en cien mares
y atracado en cien riberas.

En todas partes he visto
caravanas de tristeza,
soberbios y melancòlicos
borrachos de sombra negra,

y pedantones al paño
que miran, callan y piensan
que saben, porque no beben
el vino de las tabernas.

Mala gente que camina
y va apestando la tierra...

Y en todas partes he visto
gentes que danzan o juegan
cuando pueden, y laboran
sus cuatro palmos de tierra.

Nunca, si llegan a un sitio,
preguntan adònde llegan.
Cuando caminan, cabalgan
a lomos de mula vieja,

y no conocen la prisa
ni aun en los días de fiesta.
Donde hay vino, beben vino;
donde no hay vino, agua fresca

Son buenas gentes que viven,
laboran, pasan y sueñan,
y en un día como tantos
descansan bajo la tierra.





YO VOY SOÑANDO CAMINOS

Yo voy soñando caminos
de la tarde. ¡Las colinas
doradas, los verdes pinos,
las polvorientas encinas! ...
¿Adònde el camino irá?
Yo voy cantando, viajero
a lo largo del sendero...
—La tarde cayendo está—.
«En el corazòn tenía
la espina de una pasiòn;
logré arrancármela un día,
ya no siento el corazòn.»

Y todo el campo un momento
se queda, mudo y sombrío,
meditando. Suena el viento
en los álamos del río.

La tarde más se oscurece;
y el camino que serpea
y débilmente blanquea
se enturbia y desaparece.

Mi cantar vuelve a plañir:
«Aguda espina dorada,
quién te pudiera sentir
en el corazòn clavada.»





AMADA, EL AURA DICE

Amada, el aura dice
tu pura veste blanca...
No te verán mis ojos;
¡mi corazòn te aguarda!

El aura me ha traído
tu nombre en la mañana;
el eco de tus pasos
repite la montaña...
No te verán mis ojos;
¡mi corazòn te aguarda!

En las sombrías torres
repican las campanas...
No te verán mis ojos;
¡mi corazòn te aguarda!

Los golpes del martillo
dicen la negra caja;
y el sitio de la fosa,
los golpes de la azada...
No te verán mis ojos;
¡mi corazòn te aguarda!




leia mais
cante
assobie
olhe com ternura
não durma sem sono
o cinismo e o ódio
não é o caminho





Serrat - Dedicado a Antonio Machado





Cantares

Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar

Nunca persegui a glória
nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão

Gosto de ver-los pintar-se
de sol e graná voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se...

Nunca persegui a glória

Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Caminhante não há caminho
senão há marcas no mar...

Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar"...

Golpe a golpe, verso a verso...

Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se lhe vieram chorar
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso...

Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um peregrino.
Quando de nada nos serve rezar.
"Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar..."

Golpe a golpe, verso a verso.




1-Cantares 
2-La Saeta 
3-Guitarra del mesón 
4-Las moscas 
5-Llanto y copla 
6-Retrato 
7-Del pasado efímero 
8-Españolito 
9-A un olmo seco 
10-He andado muchos caminos 
11-Parábola 
12-En Coulliure 
13-La Saeta (Con Carmen Linares) 
14-Cantares (Con Raphael)


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

se não fez amor com você... faço eu - pois é... Emílio

Emílio Santiago 

- Logo agora





Tolo, pensou que beijar sua boca foi consolo
Despertou o instinto da fêmea
Que agora quer me abater
Me sentir caçado, dominado até desfalecer.
Ele é que não entendeu
Se não fez amor com você
Faço eu










Logo Agora


Logo agora...
Agora, justamente agora
Agora que eu penso em ir embora
Você me sorri
me sorri
é me sorri
Passou a noite inteira
Com seu amor do lado
Fingiu um bocado
Mas, hoje em dia,
Os amores são assim.
Ele foi embora
Nem faz uma hora
Pensando quem sabe nos beijos
Que você lhe deu.
Tolo, pensou que beijar sua boca foi consolo
Despertou o instinto da fêmea
Que agora quer me abater
Me sentir caçado, dominado até desfalecer.
Agora eu entendo o sorriso...
Ele é que não entendeu
Se não fez amor com você
Faço eu
pois é!!!
Agora entendo o sorriso
Ele é que não entendeu
Se não fez amor com você
Faço eu
logo agora...



Composição: Jorge Aragão


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

histórias de avoinha: o merdêro

mulheres descalças


o merdêro 
Ensaio 128E – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




os grito na praça subiu o ódio, junto tumbém subia os assubiu da encantação com o sofrimento do pretu – num ia tê tanto grito, tanta provocação se o acorrentado fosse branco, num é?  na calunga pública dos enforcado, o anoitecê da escuridão tráis junto o perigo do linchamento e morte com munta dô e sofrimento pru acorrentado

ali, tava eles tudo na encruzilhada da praça, os abicu tumbém tava ali, eles sempre tá, é bão tá se acostumando com eles nas fresta, agarrado nas mandinga daquele tempo desencarnado da vida com poesia pra todas vida

enquanto isso o barão esperava os grito se acalmá, num aceitô as provocação do moringue, sentia usóio da preta ayomide nas suas costa qui lhe empurrava, Ah, baronesa Maria Clara, vosmecê me coloca numa esquina perigosa. Faço tudo para não perder vossos encantos do amor, dormir no seu colo, gostoso demais ser o seu brinquedo. A baronesa não me deixa curvar, inté qui respirô fundo e continuô a mesma toada

Mas afinal, Moringue... qual é a acusação?

o julgamento público quias gente tanto queria tava começado, bem ali, na encruzilhada da calunga pública, e pelo qui podia parecê, só tinha juiz acusadô medíocre e repugnante, tudo com opinião, juízo e sentença pronta – o ódio vadiando e esculhambando a justiça –, eles nem se incomodava de cuidá das aparência daquela violência qui faz tê mais injustiça e desarmonia

as gente de bem, demente à deus, num queria qui aquele linchamento fosse chamado linchamento, mais linchamento é uqui era, tudo ali, na praça pública, tava feito pra destroçá qualqué encantamento com as justiça igual pra tudo, um ajuntamento pra destruí a vida

e num é cisma, é só querê vê

o pretu acuado, sem podê dizê ou gritá da confusão toda – a bola de pau enfiada na boca tapava inté a vontade de respirá, uma máscara mordaça qui foi atada atráis do pescoço –, sem podê esquivá ou corrê ou mesmo se frouxá nas perna sem caí na terra, tava com todo fardo da canga apoiado nos dois pé descalço

os pé fincava as perna do corpo pretu no chão adentro, o curação apavorado com o pavô daquele emaranhado de gente gritando com as mão carregada das pedra pra sê atirada

ele sabe qui no fim do caminho vaisê amarrado no tronco, marcado com as pedra, pau, as tira do açoite, depois vai ficá esticado na árvore dos enforcado inté secá e sê esquecido – ah, o esquecimento é o tarado da maldade e da mentira, o desvio da vida, o abismo entre a verdade e a justiça dos branco qui qué dobrá a morte como uma dô qui se cura no esquecimento e jura qui num aconteceu nada demais; assim, eles aperta o gargalo da boca, num tolera as palavra encantada qui inventa otro mundo –, sabe qui no fim do caminho vai sê amarrado no tronco inté sê esquecido no pó do tempo

uns fica nervoso pruqui num tem uqui comê e cospe nele, otros fica impaciente de tanto querê matá e grita nele, mais só ele num dorme e num esquece

a praça perdeu o sabô do lugá das provocação, virô calunga, o cemitério dos morto, onde os costume da tradição grita com toda força, Enforca! Enforca!

o moringue apreciava tudo aquilo

É tanta acusação, sinhô Barão, o barão firmô bem as vista no moringue, antes de provocá as palavra da mentira

nas fresta da praça, os caramadinhu adiava o juízo do fim com seu riso e as batida das palavra no vento


tutu tutu tu tutu tutu tu
ê ei ei ê ê ei ei ê
lê lele lê lele
mara mara maracatu
eu vô dizê pra teresa
eu vô dizê pra teresa
qui eu quero vê
a vida vivê

caxixi baião alfaia panderão xequerê maringá reco-reco ganza atabaqui berimbau surdo marimba

o moringue num deu suspiro, só colocô as vista fincada no barão, tava deliciado de sê o meio de tudo na praça

Pois comece por alguma acusação..., atiçô o barão

os dois ficô tão perto qui a sombra dum virô a sombra dotro

Injúria, má vontade, sabotagem ao trabalho, parô as palavra própria pra escutá a influência no ânimo e desassossego da gentarada na praça, ficô satisfeito com a agitação, os grito e os assubiu, sabia uqui aquelas arraia-miúda quiria escutá, o sorriso maldoso mostrava uqui ele pensava, num precisava nem dizê, era só pensá, Cuidado, Barão... esse é o meu chão do conhecimento, aqui não conta a verdade; muito menos, a justiça. Eu sou a verdade e a justiça. Esse ódio todo em estado puro só diminui com sangue derramado, a lógica é essa mesma. E eu sou quem vai lhes oferecer a carne preta em ofertório. Não acho conveniente vosmecê virar valente. Ainda mais, que a sua companhia na cama é essa negrinha. Vosmecê corre muito risco. Usar e abusar das negrinhas é uma coisa, mas fazer da negrinha sua baronesa é pura ilusão que as vibrações na Villa serão boas, e não para por aí...

E qual seria o trabalho do negrinho, tornô prugunta o barão

o moringue ergueu os ombro e a torcida parô a respiração

Pode ter certeza que coisa pouca não é...

Então, continue...

Esse negrinho criminoso, parô as palavra pra dá cisma de curiosidade e deu dois passo pra tráis, subiu as palavra pra anunciá em todo estádio, vestido de trapos, pode não parecer, mas é o pior de todos, se vosmecê ou qualquer um aqui, na Villa, não tomar as precauções necessárias, ele corta a garganta de um lado ao outro!

Então ele cortou a garganta de alguém?

Não...

Não entendi...

Não cortou, mas pode cortar!

E está acorrentado porque poderia ter feito, mas não fez? Entendo... e ele não sabe falar?

Para quê? Desde quando é preciso ouvir um negro para aplicar um corretivo?

Mas...

Não sei se sabe falar! E se sabe, o que adianta? Não se diferencia do bugre mais selvagem. Não são gente, barão! Não têm alma, os murmúrio na alcateia fechava mais o cerco

os caramadinhu com seu riso e as batida das palavra no vento abria o cerco

na praça do pelôrinho o bão convivi com o mau, mais num deve dá medo de entrá no lugá ah bati marimba camará

Sim... mas o que seria o uso do negrinho?

essa prugunta provocô tanto riso qui chacoaiô a encruzilhada da calunga

Era o merdeiro...




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Ensaio 127Bj – 2ª edição 1ª reimpressão
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histórias de avoinha: a dança dos dedo
Ensaio 127Bn – 2ª edição 1ª reimpressão
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Ensaio 128A – 2ª edição 1ª reimpressão
histórias de avoinha: Oh!... prugunta pra todas criança
Ensaio 128B – 2ª edição 1ª reimpressão
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Ensaio 127Bo – 2ª edição 1ª reimpressão
histórias de avoinha: o medo dos inferno 
Ensaio 128C – 2ª edição 1ª reimpressão
histórias de avoinha: coisa num se governa, tem dono
Ensaio 128D – 2ª edição 1ª reimpressão
Ensaio 128F – 2ª edição 1ª reimpressão

tantas palavras meias palavras - ah! Emílio...

Emílio Santiago 

- Saigon



Anoiteceu!
Olho pro céu
E vejo como é bom
Ver as estrelas
Na escuridão
Espero você voltar
Pra Saigon











Saigon


Tantas palavras
Meias palavras
Nosso apartamento
Um pedaço de Saigon
Me disse adeus
No espelho com batom


Vai minha estrela
Iluminando
Toda esta cidade
Como um céu
De luz neon


Seu brilho silencia
Todo som
Às vezes
Você anda por aí
Brinca de se entregar
Sonha pra não dormir


E quase sempre
Eu penso em te deixar
E é só você chegar
Pra eu esquecer de mim


Anoiteceu!
Olho pro céu
E vejo como é bom
Ver as estrelas
Na escuridão
Espero você voltar
Pra Saigon


Tantas palavras
Meias palavras
Nosso apartamento
Um pedaço de Saigon
Me disse adeus
No espelho com batom


Vai minha estrela
Iluminando
Toda esta cidade
Como um céu
De luz neon


Seu brilho silencia
Todo som
Às vezes
Você anda por aí
Brinca de se entregar
Sonha pra não dormir


E quase sempre
Eu penso em te deixar
E é só você chegar
Pra eu esquecer de mim


Anoiteceu!
Olho pro céu
E vejo como é bom
Ver as estrelas
Na escuridão
Espero você voltar
Pra Saigon



Composição: Carlão / Claudio Cartier / Paulo Feital


terça-feira, 27 de agosto de 2019

Dom Casmurro: Explicação

Machado de Assis

Dom Casmurro






Capítulo LXXVI

Explicação





Ao fim de algum tempo, estava sossegado, mas abatido. Como me achasse estirado na cama, com os olhos no teto, lembrou-me a recomendação que minha mãe fazia de me não deitar depois do jantar para evitar alguma congestão. Ergui-me de golpe, mas não saí do quarto. Capitu ria agora menos e falava mais baixo; estaria aflita com a minha reclusão, mas nem isso me abalou. 

Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor, estava diferente. A minha dor agora complicava-se do receio de haver ido além do que convinha, deixando de examinar o negócio. Posto que a cabeça me doesse um pouco, simulei maior incômodo, com o fim de não ir ao seminário e falar a Capitu. Podia estar zangada comigo, podia não querer-me agora e preferir o cavaleiro. Quis resolver tudo, ouvi-la e julgá-la; podia ser que tivesse defesa e explicação. 

Tinha ambas as coisas. Quando soube a causa da minha reclusão da véspera, disse-me que era grande injúria que lhe fazia; não podia crer que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a julgasse que pudesse crer... E aqui romperam-lhe lágrimas, e fez um gesto de separação; mas eu acudi de pronto, peguei-lhe das mãos e beijei-as com tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por eles e pelas lágrimas; depois suspirou, depois abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como os outros que ali passavam às tardes, a cavalo ou a pé. Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular. 

– E que poderia haver, se ele vai casar? concluiu. 

– Vai casar? 


Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da Rua dos Barbonos. Esta razão quadrou-me mais que tudo, e ela o sentiu no meu gesto; nem por isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação, deixaria de ir mais à janela. 

– Não! não! não! não lhe peço isto! 

Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que à primeira suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entre nós. Aceitei a ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir: era a primeira suspeita e a última.



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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Leia também:


















segunda-feira, 26 de agosto de 2019

o que vale é o amor que a gente sente no coração

Emílio Santiago
- Verdade Chinesa

Verdade Chinesa




O que vale é o sentimento
E o amor que a gente
Tem no coração









Verdade Chinesa


Era só isso que eu queria da vida
Uma cerveja, uma ilusão atrevida
Que me dissesse uma verdade chinesa
Com uma intenção de um beijo doce na boca


A tarde cai, noite levanta a magia
Quem sabe a gente vai se ver outro dia?
Quem sabe o sonho vai ficar na conversa?
Quem sabe até a vida pague essa promessa?


Muita coisa a gente faz
Seguindo o caminho
Que o mundo traçou
Seguindo a cartilha
Que alguém ensinou
Seguindo a receita
Da vida normal,
Mas o que é vida afinal?


Será que é fazer
O que o mestre mandou?
É comer o pão
Que o diabo amassou
Perdendo da vida
O que tem de melhor?


Senta, se acomoda
À vontade, tá em casa
Toma um copo, dá um tempo
Que a tristeza vai passar
Deixa pra amanhã
Tem muito tempo
O que vale é o sentimento
E o amor que a gente
Tem no coração


Senta, se acomoda
À vontade, tá em casa
Toma um copo, dá um tempo
Que a tristeza vai passar
Deixa pra amanhã
Tem muito tempo
O que vale é o sentimento
E o amor que a gente
Tem no coração


Senta, se acomoda
À vontade, tá em casa
Toma um copo, dá um tempo
Que a tristeza vai passar
Deixa pra amanhã
Tem muito tempo
O que vale é o sentimento
E o amor que a gente
Tem no coração




Composição: Carlos Colla / Gilson


Memórias Póstumas de Brás Cubas: História de Dona Plácida

Machado de Assis





CAPÍTULO LXXIV / História de Dona Plácida





Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência de Dona Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma filha.Viúva e moça, ficaram a seu cargo a filha, com dois, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se passando os anos, não, não a beleza, porque não a tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.
 — Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria casado; mas ninguém queria casar comigo. 

Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais delicado que os outros, Dona Plácida despediu-o do mesmo modo, e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava: 

Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vem essas fidúcias de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda, coitado... Esperas algum fidalgo, não é? 

 Dona Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa. Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. Dona Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir entregar costuras. — A gente das lojas arregalava e piscava os olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber propostas de dinheiro... 

 Interrompeu-se um instante, e continuou logo: 

 — Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que conheci a família de Iaiá: boa gente, que me deu que fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas da agulha. — Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola... 

 Ao soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio. Depois, como se tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a ponta do botim.




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Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.

Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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sábado, 24 de agosto de 2019

parábolas de uma professora: macho, branco e dono de tudo

parábolas de uma professora


macho, branco e dono de tudo
Ensaio 003A – 3ª.ed



baitasar e paulo e marko e kamilá




Professor Paulo, por favor... sente-se. Vamos começar nossa reunião, essa é a altíssima, nossa reorganizadora escolar pedagógico, não invejo a sua tarefa e não acredito em seu êxito, mas é claro que hoje não estou tão esperançosa

o paulo senta calmamente na fórmica verde e dura, fria e menos pedagógica, Se eu pudesse acabaria com a pedagogia, eu avisei você que não estou nada esperançosa, pior que a possibilidade de ameaçar sonhos é a maneira como transforma todos em bonecos de pau e alienados, Calma, Anita... calma, Eu sei, Antônio. Sinto-me uma idiota quando penso em voz alta e chateada com meu descontrole, Sentir que somos idiotas é apenas parte da luta, Sinceramente, quero ficar quieta no meu cantinho, A pedagogia não é uma traição, Não sei se é a pedagogia que é uma traição ou se o seu uso ou desuso, Acho, meu amor, que a intenção desvela as diferentes concepções de mundo que cada um de nós – pedagogos ou não – carrega consigo.

as memórias com o professor do corredor é tudo que quero carregar comigo, não sei se já quis alguém assim e me entreguei tanto, Anita... somos pedaços do acaso, Não sei, Antônio, mas não posso voltar em meus silêncios, Por acaso ou por intenção, Não sei, Antônio, O que é ser um pedagogo, E você é um pedagogo, Não, não fiz o curso de pedagogia, Mas o que é a pedagogia, afinal, Você é um pedagogo, Vamos por partes, a pedagogia é uma ciência pensada para dar conta de muitas ciências dentro da instituição escola, o antônio do corredor para, toma fôlego, faço uma pequena observação antes que retome o rumo do seu discurso acadêmico, Aí começa o emaranhado: como se pode dar conta de todo saber científico para ensiná-lo na escola, Esse é o lio, Anita, criamos os programas, os conteúdos, os métodos, as estratégias, etc etc etc etc, Eis o começo da traição aos miseráveis.

olho para o professor paulo, ele me sorri, enfia os dedos em sua barba branca, queria aquela paz, seus olhinhos nos convidam a continuar, volto para as lembranças, Antônio, meu querido... eu sei, através dos tempos, de acordo com os diferentes momentos históricos, tivemos construções importantes no campo da pedagogia no sentido de transformar as práticas coercitivas, disciplinadoras e autoritárias, Lembre de citar Gramsci com sua pedagogia crítica, Frenet com a escola nova, Makarenko com a pedagogia socialista, Paulo Freire e a pedagogia libertadora, outros de agora, outras que virão, Então, eles foram traídos, perguntei ao professor do corredor, Sim, eles foram traídos, ele responde

meu coração aperta e voa maluco, voa em sua direção, O que pensar deles, pergunto com os olhos brilhando, quero-lhe em meus braços, mas preciso contentar-me com essa peça oratória, Todos eles pensaram uma nova escola a partir da utopia da construção de uma sociedade baseada em princípios solidários, éticos e amorosos, onde a pedagogia estaria a serviço da construção do novo homem, da nova mulher, um outro mundo possível, E o que deu errado, Antônio, pergunto, já sabendo que minha resposta é a provocação que será aceita, Olhemos para o mundo, não... basta olharmos para a África e a América Latina: fome, favelas, guetos, desigualdades extremas, As pessoas não estão preocupadas com justiça social, Antônio, mas com o treinamento de recursos humanos para as grandes corporações, amestrando mentes e adestrando corações, o patriarcado macho, branco, racista, preconceituoso e pretensamente hétero não está interessado em direitos e deveres, busca privilégios, Nem todos, Anita, pronto, ele aceitou a provocação, quase desisto, não consegue se dar conta ou não quer  vai saber, né?, Eu sei, Antônio... nem todo homem e nem sempre, mas entenda, falo de um padrão social de comportamento. Você não é o assunto, esse mundo é o assunto, entende isso, pergunto sem nenhuma provocação, ou quase nenhuma, Compreendi, desculpe... é isso, meu ego branco faz parte desse mundo machista e dono de tudo, eis um pequeno avanço tirado a fórceps, só não quero que o antônio comece a chorar em meu ombro, acendo o amarelo piscante, e sigo adiante, O que deu errado? Tanta coisa deu errado e continua errada, mas o que poderá dar certo? Uma pedagogia da esperança? Uma pedagogia das encruzilhadas? Uma pedagogia do possível? O que é possível em uma sociedade onde o onipresente macho branco domina a criação do fato? O que é possível fazer e sentir em uma sociedade onde se duvida da possibilidade de pensar em solidariedade? Solidariedade não é caridade! Você consegue entender isso, Acho que sim, Solidariedade é mudança pela vida! Caridade é mudança que não muda pela vida, muda pela morte! Caridade é eleger um governante que faz arminha! Sabes por quê?, Acho que sim, mas já sei que vais me dizer, Porque ele descaradamente promete extinguir com os miseráveis! Acabando assim com o sofrimento dos miseráveis e o medo burro dos caridosos, E o que fazemos com a caridade, Não nego a caridade como uma ajuda de socorro, mas é na solidariedade que o projeto da vida floresce. Como construir conceitos de justiça e práticas éticas nesta sociedade de cúmplices? As pessoas já se aceitam não querendo melhorar como pessoas, mas querendo ter mais poder ou qualquer coisa que lhes dê o poder, Concordo, mas isso não basta, O que não basta, Não basta fazermos a leitura da realidade, Taokei, mas precisamos da leitura dos saberes existentes e apontarmos onde precisamos ir e chegar. Já não me basta mais só o caminho, quero chegar. E você quer ir conosco?

Pra onde?

Porra!, ao céu e ao inferno, respondi, precisamos compreender e interpretar a nossa própria realidade. Não há outra saída que não seja estar junto à velhice, às mulheres, aos miseráveis, crianças, pretos e pretas, índios e índias, lgbts, às minorias, falar, e principalmente, escutar... meter a colher, mudar nosso modo de vê-los, deixar que ensinem e eduquem, nos toquem com a pedagogia das encruzilhadas para cruzarmos essa pedagogia colonizadora e avivar o ajuntamento de todas as vidas, E como fugimos da lógica da opressão, Não fugindo, enfrentando o esquecimento e fazendo diferente: ser diferente, não para teorizar em relatos de seminários, mas para mudar nossas vidas. 

Calma, Anita, Não consigo, Antônio. Estamos destroçadas, bestializadas, desencantadas, em cacos e vazias, precisamos reinventar a vida e o encantamento, cruzar os caminhos, os esquecimentos, os olhares, as línguas, as religiões.

Pensando assim, você descobriu que a pedagogia não é uma traição, é mais uma ferramenta de mudança, Desde que assim o façamos e a entendamos, Antônio, mas tudo isso exige disciplina, amorosidade e método dialético, Eis que o abismo nos espera, E nós, a quem vamos continuar empurrando no abismo com o nosso imobilismo? Por quanto tempo iremos resistir sendo partidos ao meio?

abro os olhos, continuo no mesmo lugar, sentada na fórmica verde



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parábolas: ensaio 001A / Camarada, Ofélia!
parábolas: ensaio 002A / o coração livre para voar
parábolas: ensaio 003A / macho, branco e dono de tudo
parábolas: ensaio 004A / uma carreta de bois


Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Opressores (4)

Paulo Freire





“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar 






AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 




1. Justificativa da «pedagogia do oprimido» 


A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO E OS OPRESSORES 




Mas, o que ocorre, ainda quando a superação da contradição se faça em termos autênticos, com a instalação de uma nova situação concreta, de uma nova realidade inaugurada pelos oprimidos que se libertam, é que os opressores de ontem não se reconheçam em libertação. Pelo contrário, vão sentir- se como se realmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” na experiência de opressores, tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir, significa opressão a eles. Vão sentir-se, agora, na nova situação, como oprimidos porque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se, passear, ouvir Beethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam, não estudavam nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir Beethoven, qualquer restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes parece uma profunda violência a seu direito de pessoa. Direito de pessoa que, na situação anterior, não respeitavam nos milhões de pessoas que sofriam e morriam de fome, de dor, de tristeza, de desesperança. 

É que, para eles, pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são “coisas”. Para eles, há um só direito – o seu direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto ainda, porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para que eles existam e sejam “generosos”...

Esta maneira de assim proceder, de assim compreender o mundo e os homens (que necessariamente os faz reagir à instalação de um novo poder) explica-se, como já dissemos, na experiência em que se constituem como classe dominadora.

Em verdade, instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda uma forma de ser e comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores e nos oprimidos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta situação, refletem a opressão que os marca.

Na análise da situação concreta, existencial, de opressão, não peemos deixar de surpreender o seu nascimento num ato de violência que é inaugurado repetimos, pelos que têm poder.

Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos opressores uma consciência fortemente possessiva. Possessiva do mundo e dos homens. Fora da posse direta, concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se podem entender a si mesmos. Não podem ser. Deles como consciências necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, "perderiam el contacto con el mundo” [1] . Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando.


[1] Erich Fromm, El Corazón del Hombre, Breviario. México, Fondo de Cultura Económica, 1967, p.41.


Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é possível transformar tudo a seu poder de compra. Daí a sua concepção estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas. E o lucro, seu objetivo principal.

Por isto é que, para os opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem.

Não pedem perceber, na situação opressora em que estão, como usufrutuários, que, se ter é condição para ser, esta é uma condição necessária a todos os homens. Não podem perceber que, na busca egoísta do ter como classe que tem, se afogam na posse e já não são. Já não podem ser.

Por isto tudo é que a sua generosidade, como salientamos, é falsa.

Por isto tudo é que a humanização é uma “coisa” que possuem como direito exclusivo, como atributo herdado. A humanização é apenas sua. A dos outros, dos seus contrários, se apresenta como subversão. Humanizar é, naturalmente, segundo seu ponto de vista, subverter, e não ser mais.

Ter mais, na exclusividade, não é um privilégio desumanizante e inautêntico dos demais e de si mesmos, mas um direito intocável. Direito que “conquistaram com seu esforço, com sua coragem de correr risco”... Se os outros – “esses invejosos” – não têm, é porque são incapazes e preguiçosos a que juntam ainda um injustificável mal- agradecimento a seus “gestos generosos”. E, porque “mal-agradecidas e invejosos”, são sempre vistos os oprimidos como seus inimigos potenciais a quem têm de observar e vigiar.

Não poderia deixar de ser assim. Se a humanização dos oprimidos é subversão, sua liberdade também o é. Daí a necessidade de seu constante controle. E, quanto mais controlam os oprimidos, mais os transformam em “coisa”, em algo que é como se fosse inanimado.

Esta tendência dos opressores de inanimar tudo e todos, que se encontra em sua ânsia de posse, se identifica, indiscutivelmente, com a tendência sadista. “El placer del dominio completo sobre otra persona (o sobre otra creatura animada), diz Fromm, es la esencia misma del impulso sádico. Otra manera de formular la misma idea es decir que el fin dei sadismo es convertir un hombre en cosa, algo animado en alg o inanimado, ya que mediante el control completo y absoluto el vivir pierde uma cualidad essencial de la vida: la libertad.” [2]


[2] Erich Fromm, op. cit., p. 30 (os grifos são nossos).

O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida.

Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a vida.

Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenço da “ordem” opressora, com a qual manipulam e esmagam [3].


[3] A propósito das “formas dominantes de controle social” ver: Herbert Marcuse, L'Homme Unidimensionel e Eros et Civilisation. Paris, Editions de Minuit, 1968-1961, obras já traduzidas para o português.


Os oprimidos, como objetos, como quase “coisas", não têm finalidades. As suas, são as finalidades que lhes prescrevem os opressores.

Em face de tudo isto é que se coloca a nós mais um problema de importância inegável a ser observado no corpo destas considerações que é o da adesão e conseqüente passagem que fazem representantes do pólo opressor ao pólo dos oprimidos. De sua adesão à luta destes por libertar- se.

Cabe a eles um papel fundamental, como sempre tem cabido na história desta luta.

Acontece, porém, que, ao passarem de exploradores ou de espectadores indiferentes ou de herdeiros da exploração – o que é uma conivência com ela – ao pólo das explorados, quase sempre levam consigo, condicionados pela “cultura do silêncio” [4], toda a marca de sua erigem. Seus preconceitos. Suas deformações, entre estas, a desconfiança do povo. Desconfiança de que o povo seja capaz de pensar certo. De querer. De saber.


[4} A propósito de “cultura do silêncio" ver Paulo Freire: aço cultural para a libertaço. Cambridge, Massachusetts, Center for the Study of Development and Social Change, 1970. Este ensaio apareceu primeiramente, em Harvard Educational Review, nos seus números de maio e agosto de 1970; é publicado no Brasil em 1976, pela Paz e Terra no livro Ação cultural para a liberdade e outros escritos.


Deste modo, estão sempre correndo o risco de cair num outro tipo de generosidade tão funesto quanto o que criticamos nos dominadores.

Se esta generosidade não se nutre, como no caso dos opressores, da ordem injusta que precisa ser mantida para justificá-la; se querem realmente transformá-la, na sua deformação, contudo, acreditam que devem ser os fazedores da transformação.

Comportam- se, assim, como quem não crê no povo, ainda que nele falem. E crer no povo é a condição prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Uma revolucionária se reconhece mais por esta crença no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela.

Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam constantemente. Esta adesão e de tal forma radical que não permite a quem a faz comportamentos ambíguos.

Fazer esta adesão e considerar-se proprietário do saber revolucionário, que deve, desta maneira, ser doado ou imposto ao povo, é manter-se como era antes.

Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de comungar com o povo, a quem continua considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco.

Aproximar-se dele, mas sentir, a cada passo, a cada dúvida, a cada expressão sua, uma espécie de susto, e pretender impor o seu status, é manter-se nostálgico de sua origem.

Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo do renascer. Os que passam têm de assumir uma forma nova de estar sendo; já, não podem atuar como atuavam; já não podem permanecer como estavam sendo.





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PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA

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Leia também:

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (1)

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (2)

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (3)

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (4)

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (5)

Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (6)

Pedagogia do Oprimido - Primeiras Palavras

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Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (1)

Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (2)

Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (3)

Pedagogia do Oprimido - A Situação concreta de Opressão e os Oprimidos (5)

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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparaço pelo Centro de Catalog aço -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)



Freire, Paulo

F934p      Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987

(O mundo, hoje, v.21)

1.   Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série

CDD-374.012
-371.332

77-0064                          CDD-371.3:376.76

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1994

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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido