domingo, 31 de julho de 2022

Documentário: Hospital Colônia de Barbacena

O Holocausto Brasileiro


- O Brasil se desconhece?




Quando jornalismo está a serviço da informação

- Vagão pra louco...









"O Hospital Colônia de Barbacena foi um hospital psiquiátrico fundado em 12 de outubro de 1903 na cidade de Barbacena, Minas Gerais. Fazia parte de um grupo de sete instituições psiquiátricas. Documentário produzido pela Rede Globo, com a narração de Fernando Gabeira, que dá a dimensão do verdadeiro claustro onde viviam pessoas segregadas do convívio social. 
O nosso projeto consiste na criação de um documentário, criado a partir do livro Holocausto Brasileiro da jornalista Daniela Arbex. Nele, três histórias retiradas do livro são interpretadas."


Ballet Nacional de España

TALLER MARCOS MORAU.
BNE EN MOVIMIENTO PERPETUO




os corpos
                a música
                              a dança
as emoções

Ao ouvi-la dançar
                             borboleta
me vem
             a recordação
                                dessa paixão

Que na minha vida havia luz e escuridão
uma loucura
                    infinita
                                conforto e dor.

Os corpos
                 a música
                                a dança

qué despiertan
ciúmes qui atormentan

es por ti

a dança
             os corpos
                             a música
a tua dança

qué despiertan
ciúmes qui atormentan

Siento ciúmes de tus brazos,
de todo tu cuerpo,
de todo tu calor









#BNEenMovimientoPerpetuo
Taller coreográfico impartido por Marcos Morau, director de La Veronal. Asistente coreográfica: Lorena Nogal.
Presentación y entrevista: Rubén Olmo, director del BNE.
Bailarines Universo 1: Aloña Alonso, Cristina Aguilera, Estela Alonso, Mercedes Burgos, Irene Correa, María Martín, Sara Nieto, Aitana Rousseau, Laura Vargas, Vanesa Vento, Sou Jung Youn, Sergio García, Juan Berlanga, Antonio Jesús Jiménez, Matías López, Alfredo Mérida, Javier Moreno, Pedro Ramírez, Javier Polonio.
Bailarines Universo 2: Inmaculada Salomón, Ana Agraz, Pilar Arteseros, Sara Arévalo, Irene Tena, Patricia Fernández, Eduardo Martínez, Carlos Sánchez, José Manuel Benítez, Antonio Correderas, Albert Hernández, Manuel del Río, Álvaro Gordillo, Álvaro Marbán, Axel Galán.
Música: Cristóbal Saavedra.
Director técnico: Tomás Pérez.
Directora técnica adjunta: Ángela Jiménez.
Sonido: Mirko Vidoz, Antonio Castellanos.
Iluminación: Asier Basterra, Javier Hernández.
Regiduría: Eduardo Solís.
Vídeo: Jesús Ávila.
Utilería: Francisco Hernández, Milena Ríos.
Producción retransmisión: KBN Next Media.
Realización y retransmisión en streaming: wildEvents.

histórias davóinha: becos sem saída (II) 12bs - fome é fome

becos sem saída


(II) o descolocado
12bs – fome é fome

baitasar


É uma atrapalhação ser homem sem emprego, dá pena ver o homem descolocado ou recolocado com salário curto e mês espichado, sem benefício, carente de tudo. O desalento da fome adoece o corpo e a cabeça incapaz de reagir acaba entristecendo. Termina acreditando que é a sina da vida e não vai mudar.

a cueca manchada e a calça no molho da melancolia, o sabão sem cheiro de perfume que encanta a limpeza, santa maria esfregando vigorosa, sem rancor, a onda do vento gelado aparece zumbindo pequeno, nada ali é aparecimento do encantamento nem a casca do ovo da cobra quer se quebrar

É triste, Virgílio. memória suava e enxugava o suor na manga que esfregava a pingação, nunca fugiu daquela demanda da lavação, é mulher valente, não tinha flores na casa, fazia frio gelado, sempre com uma prece em seus lábios, os miúdos brincavam na escola. na vila, os miúdos ficavam em casa, nada saia do controle da memória, Mas tu quer saber o que me deixa enfurecida?

esperou o virgílio responder que queria saber o que a deixava enfurecida, a resposta foi o silêncio, aquela sina do silêncio desinteressado, desaparecido e desatento, fingindo descuido na escutação, desatrevido, Esse não tem mais valia de jogo nenhum, resmungava do seu jeito mais natural, esqueceu das palavras que me deixava acessa. Não diz mais Eu gosto de você, minha preta.

ela se respondeu, e pronto

O que me deixa enfurecida é a mulherada sempre esquecida, deixada de lado. É menosprezada que se diz, né? Se não engravida é pouca mulher, se engravida e não parir é presa, se engravida mais que devia é uma vaca sem coragem pra tirar. Uma puta que não fecha as pernas ou uma bruxa que não gosta de dar. Tá acompanhando? Não importa, né? O exemplo pra molecada é ser dona-de-casa, amparo e amor, recebendo migalhas. Com pouco fazendo muito, multiplicando o pão nosso de cada dia. Quanto mais apanha mais precisa obedecer a hierarquia. Comigo não tem quem me mande ou me encoste. Então, calma com esse luzimento de tristeza. Esse aí do lado tem uma mulher gigante trabalhando duríssimo em casa, todo dia, cada dia, sem tempo pra choramingar, pagando o preço de ser mulher recatada e do lar.

um mundo de violência esquecida, homem e mulher sem a dignidade do próprio sustento, sem o respeito da sua casa – ou alugada em algum cafundó esquecido com muito mosquito e rato e alagamento – em algum beco escuro e sem saída

estorvo

marginal

libambo

trabalhador que se considera respeitado tem um patrão para enriquecer, outro beco sem saída na história da escravidão do trabalhador

trabalhador que finge não ter patrão para enriquecer é empreendedor de ocupação descartável, mais um cavalo da cavalaria

maria memória esfrega, funga, tosse, ensaboa, esfrega com mais força, torcida se mergulha na água, Não acordem a irmã de vocês! Não quero saber de brigas! Escutaram?! Agora vão... estudem! Escutem a professora, todas as manhãs do mesmo jeito, a mesma ladainha, torce, examina, sacode, virgílio descrava as vistas com desinteresse, as mãos não se metem mais com interesse, também resmunga sem a fome esfomeada de antes, Maria tá ficando sem molde de mulher. Um desenho de trapo, um corpo cansado sem a mesma disposição no recreio. Não tá provocativa, parece mais conformado que saciado

o silêncio se quebrava com as batida da roupa ensaboada na tábua, os gritos com os miúdos, as recomendações de comportamento na escola, Vocês são preto. E preto precisa fazer melhor que os branco porque se fizer igual que os branco vai perder... E nada de correr na rua, a polícia adora atirar em preto que corre, o dia cinza, E não peguem nada que não seja de vocês, as pancadas, trabalhava sozinha no tanque e na casa que já chamou de barraco – já teve feitio de barraco –, foi ajeitando pouco a pouco, daqui e dali, até ter os contornos e afetos de uma casa

as mãos seguravam a roupa suja e se mergulhavam na água, marido e mulher compadres, estava tudo bem, engoliram seus sonhos sem se darem conta, ele na penumbra da cachaça, ela na molhação do tanque, o dia seguia cinza, restaram os fuxicos para alívio do silêncio

um afeto desinteressado

o vizinho desempregado – maria memória também era vista como desempregada, a molhação do tanque era obrigação, a varrição da casa, a comida preparada, isso não é trabalho, é outra coisa, é feito igual todo dia e ninguém percebe o seu fazimento, serviço da casa não enriquece o patrão – parecia desanimado enquanto ia e vinha

descuidado

desafeiçoado

sonolento

vizinho novo sem aceno interessado, Bom dia ou boa tarde, muito menos, Boa noite, bem que maria memória tenta ajudar nas cortesias, o vizinho discreto e cabisbaixo, sem entusiasmo, sem mandingas, disfarçado, sem muitas palavras, pelo menos, ainda não foi parado no boteco, nem no dia nem à noite

em casa, os memórias também não são de muitas palavras, um fuxico ou outro que leva para outro disse que não disse ou disse que disse, já as descomposturas são com gritos sem inocência e ardentes, as cantigas ficaram desencantadas

só não conseguem engolir a fome, Virgílio... faz o que tiver que fazer!

têm o costume e gosto no trato diário por olhares e silêncios, os dias e noites eram assim, fuxicos curtos e desinteressados para alívio da carne, às vezes, muito raramente, o fuxico prossegue sem amolecimento, provocativo, Pobre infeliz, vai dar tudo certo, E o que pode ainda dar errado, Não sei, parece sempre fugindo, Será que matou alguém, Vai saber, todo mundo tem mania e esquisitice, Eu é que sei, O que foi, Nada, Deixa pra lá, Fala, Vai dormir, Mais que merda, Fala baixo, homem sem Deus... vai acordar a Futuro, Então, diz o que tava pensando, A mania da cachaça, Lá vem a mesma ladainha. Quantas vezes preciso repetir? Eu paro quando eu quero, É melhor estar bêbado que não sentir nada

dói na memória ver aquele seu homão – ela nem sabe mais o porquê desse aborrecimento – voltar ao fim do dia, trocando os pés de um lado a outro, sempre do mesmo jeito, ombros curvados, olhar fixo no chão, torto das pernas, vacilante, desguarnecido das mandingas, um fantasma daqueles dias de tocar o berimbau

uma semana inteira sem gritos e ameaças, sem sentir nada, de repente os olhares de amparo se renovando, nada parecido com o vizinho, as promessas de boa vizinhança, Bom dia, vizinho, Bom dia, senhora, nenhum encorajamento, duas casas sem rosto, sem a transparência dos pensamentos, a cara fechada, um vulto silencioso que viveu o seu apogeu

três crianças, todas da memória

na casa silenciosa, não se tem notícia de crianças, Ainda bem, é muito difícil sentir a fome nos filhos. Crianças são devoradoras, estômagos de avestruz esfomeado. O frio não vem conforme o tamanho do cobertor, tampouco a fome vem conformada com o tamanho do bolso, fome é fome!

para o bem da verdade e a mentira não prevaleça, nestes tempos de mentiras piedosas, ódios descontrolados e preços absurdos, o filho do meio da memória não tem por jeito comer carne – o virgílio agradece, silenciosamente, a pouca vontade do miúdo –, precisa dos empurrões de mãinha, por vezes, das súplicas, até que cansa de pedir e brincar, grita insultos, faz ameaças, é quando memória perde o jeito suave de conversar com os olhos e convidar com um sorriso, Engole!

os cabelos curtos, sem franja, nunca teve franja recortada – ou será que teve? não lembra –, Engole, uma fita desalinhada e gordurosa lhe enfeita, os caminhos do sangue se dilatam, quase rasgam, Engole, nada nela se sossega enquanto não vê aquele bolo de carne engolido, um bolo que dança e rebola na boca, uma luta desigual, para lá e cá, o miúdo mastiga de um lado e outro, morde, aperta, embola, abocanha e não traga, Engole!

as lágrimas, o bolo de carne, a falta de costume com aquele gosto de animal morto, os nervos na flor da pele, o estômago embrulhado, medo, tortura, exaustão, o miúdo xendengue chorando, o ranho escorrendo, a língua lambendo, memória gritando, Engole engole engole!

o miúdo vomita, não engole

ela sempre limpa e chora

mãe é mãe, Só se sente falta da água quando o pote está vazio, é verdade, quando não tem mais jeito é preciso engolir a saudade


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Leia também:

becos sem saída (I) 01bs - as águas que vêm e vão
becos sem saída (I) 02bs - histórias desamarradas e borradas
becos sem saída (I) 03bs - sobre nós e histórias borradas
becos sem saída (I) 04bs - cacete pra todo lado!
becos sem saída (I) 05bs - as mãos amarradas
becos sem saída (I) 06bs - o vazio da botina
becos sem saída (I) 07bs - maria futuro
becos sem saída (I) 08bs - um lugar para voltar
becos sem saída (I) 09bs - e adianta saber?
becos sem saída (II) 10bs - sem emprego, sem utilidade
becos sem saída (II) 11bs - notícia ruim
becos sem saída (II) 12bs - fome é fome
becos sem saída (II) 13bs - os tempos eram assim...

sábado, 30 de julho de 2022

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — XII A ociosidade do senhor Barmatabois

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



XII — A ociosidade do senhor Barmatabois 



Há em todas as terras pequenas e havia-a particularmente em Montreuil-sur-mer, uma classe de rapazes que na província dissipam anil e quinhentos francos de rendimento anual, com o mesmo ar com que em Paris outros que tais devoram duzentos mil francos. Pertencem estes entes à grande espécie neutra: parasitas, nulidades, que possuem alguns palmos de terra, alguma coisa de parvos e um pouco de inteligência, que fariam figura de rústicos num salão e que se julgam fidalgos numa taberna, que falam das suas terras, do seu gado, dos seus servos; que no teatro pateiam as atrizes, para demonstrarem o seu bom gosto; que se intrometem com os oficiais da guarnição, para bazofiar de destemidos e valentes; que vão à caça, fumam, bocejam, bebem, jogam o bilhar, observam os viajantes que descem da diligência, passam a vida nos cafés, jantam nas estalagens, têm um cão que come os ossos debaixo da mesa e uma amante que lhes come os olhos da cara; que exageram as modas, admiram a tragédia, olham para as mulheres com desprezo, copiam Londres através de Paris e Paris através de Pontà- Mousson, envelhecem patetas, não trabalham, nem servem para nada, mas também não fazem grande mal a coisa alguma. Se Félix Tholomyés tivesse permanecido na província sem nunca ter ido a Paris, teria sido um destes homens.

Se eles fossem ricos, chamar-lhes-iam elegantes; se fossem pobres, denominá-los-ia vadios. Pois não são nem mais nem menos do que ociosos. Entre estes ociosos, encontram-se enfadonhos, enfadados, distraídos e alguns velhacos.

Naquele tempo um elegante constava de uns grandes colarinhos, uma grande gravata, um relógio com muitos berloques, de três coletes sobrepostos de cores diferentes, o azul e o vermelho pela parte de dentro, uma casaca curta cor de azeitona, de abas de tesoura, com duas ordens de botões de pirata, apertados uns contra os outros e subindo até acima do ombro, e de umas calças também cor de azeitona, mas mais clara, com pregas em número indeterminado, mas sempre ímpar, variando de uma a onze, limite que não era nunca ultrapassado. Acrescente-se a isso, sapatos abotinados com chapinhas de ferro nos saltos, chapéu de copa alta e abas estreitas, grande cabeleira, enorme bengala e uma conversação radicada de frases com pretensões a chistosas. E ainda além de todas estas coisas, esporas e bigode. Naquela época bigode queria dizer burguês e esporas significavam peão.

O elegante da província usava esporas mais compridas e bigode mais retorcido.

Era no tempo da luta das repúblicas da América meridional contra o rei de Espanha, de Bolívar contra Murillo. Os chapéus de abas estreitas eram realistas e chamavam-se murillos; os liberais usavam chapéus de abas largas e denominavam-se bolívares.

Oito ou dez meses depois do que foi narrado nas páginas precedentes, nos primeiros dias de Janeiro de 1823, numa noite em que nevara, um desses elegantes ociosos, mas dos bem «pensantes» porque usava murillo e mais ainda porque estava aconchegadamente agasalhado num dos amplos capotes que, no tempo frio, completavam o vestuário da moda, divertia-se em provocar e atormentar uma mulher trajada com vestido de baile muito decotado, que girava em frente do café dos oficiais. Este elegante fumava, porque era decididamente essa a moda.

De todas as vezes que a mulher passava por diante dele, o elegante lançava, juntamente com uma baforada de fumo do charuto, uma apóstrofe que julgava espirituosa e engraçada, como por exemplo: «Sempre és muito feia!» «Trata de te esconder!» «Que diabo fizeste aos dentes?», etc., etc.

Este senhor chamava-se Bamatabois.

A mulher, triste espectro paramentado, que divagava de um para outro lado por cima da neve, não lhe respondia, nem mesmo olhava para ele, sem deixar por isso de completar, em silêncio, e com uma regularidade sombria, os seus giros, que a levavam de cinco em cinco minutos para debaixo daquela chuva de sarcasmos, como o soldado condenado que foge e volta logo a receber nas costas os vergões da chibata. O pouco ou nenhum efeito que produzia, indispôs sem dúvida o ocioso, o qual, aproveitando um momento em que ela se voltava, a seguiu nos bicos dos pés e, sufocando o riso, baixou-se, pegou num punhado de neve do chão e meteu-lhe rapidamente nas costas, entre os dois ombros nus a infeliz soltou um rugido, voltou-se, deu um salto de pantera e arremeteu contra o homem, cravando-lhe as unhas no rosto, acompanhando os movimentos com as mais medonhas palavras que podem sair da boca de uma regateira. Estas injúrias, vomitadas com voz roufenha pelo abuso da aguardente, saíam hediondas de uma boca a que com efeito faltavam os dois dentes da frente. Era Fantine.

Ao ruído que esta cena causou, uma multidão de oficiais saiu do café, os transeuntes agruparam-se também, formando-se imediatamente um grande círculo, que ria, apupava e aplaudia, em volta daquele turbilhão formado por dois entes, que mal se conhecia serem um homem e uma mulher; o homem debatia-se, barafustando, já sem chapéu, a mulher semeava murros e pontapés a torto e a direito, uivando, desdentada e sem cabelos, pálida de cólera, horrível.

De repente, saindo do meio da multidão, um homem de elevada estatura agarrou a mulher por um braço e disse-lhe:

— Acompanha-me.

A mulher ergueu a vista e a voz furiosa extinguiu-se de súbito. Os olhos envidraçaram-se, de pálida tornou-se lívida, estremecendo de terror. No homem que a prendera reconheceu Javert.

O elegante, aproveitando aquela oportunidade, afastou-se rapidamente.


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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Leia também:

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine. Livro Primeiro - I — O abade Myriel

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — I
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — II

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida  — XII

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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Los Poetas del Amor... Luis Lloréns Torres (Puerto Rico)

Los Poetas del Amor (86)



Esta noite a lua não quer que eu durma.
Esta noite a lua saltou pela janela.
E, uma noiva que tira a roupa com flores de laranjeira,
toda ela nua, ela entrou na minha cama.





LA NEGRA

(A Félix Matos Bernier)

Bajo el manto de sombras de la primera noche,
la mano de Elohím, ahíta en el derroche
de la bíblica luz del fiat omnifulgente,
te amasó con la piel hosca de La serpiente.

Puso en tu tez la tinta del cuero del moroco
y en tus dientes la espuma de la leche del coco.
Dio a tu seno prestigios de montañesa fuente
y a tus muslos textura de caoba incrujiente.

Virgen, cuando la carne te tiembla en la cadera,
remedas la potranca que piafa en la pradera.
Madre, el divino chorro que tu pecho desgarra,

rueda como un guarismo de luz en la pizarra.
Oh, tú, digna de aquel ebrio de inspiración
cántico de los cánticos del rey Salomón.




LA LUNA DURMIÓ CONMIGO

Esta noche la luna no quiere que yo duerma.
Esta noche la luna saltó por la ventana.
Y, novia que se quita su ropa de azahares,
toda ella desnuda, se ha metido en ml cama.

Viene de lejos, viene de detrás de las nubes,
oreada de sol y plateada de agua.
Viene que huele a besos: quizá, esta misma noche,
la enamoró el lucero galán de la mañana.

Viene que sabe a selva: tal vez, en el camino,
la curva de su cola rozó con la montaña.
Viene recién bañada: acaso, bajo el bosque,
al vadear el arroyo, se bañó en la cascada.

Viene a dormir conmigo, a que la goce y bese,
y a cantar la mentira de que a ml solo me ama.
Y como yo, al oírla, por vengarme, le digo
"mi amor es como el tuyo", ella se ha puesto pálida.

Ella se ha puesto pálida, y al besarme la boca,
me ilumina las sienes el temblor de sus lágrimas.
Ahora ya sé que ella, la que en suntuosas noches
da su cuerpo desnudo, a ml me ha dado el alma.




LINDA RUBIA

Linda rubia: las otras lindas rubias
saben que tú eres la más rubia entre ellas.
¿De qué áureos medievales, de qué onzas
de virreinos en flor, de qué monedas,
por el roce de siglos derretidas,
se amontonan en tus bucles y tus trenzas
la melcocha de oro en que embalsada
salta en rizos de sol tu caballera?
Orfebres gnomos de encantadas grutas,
forjando magias de metal con ella,
para ti harán dos lunas, dos zarcillos,
y para mí dos soles, dos espuelas,
que alumbren los caminos de la noche
y ricen de temblor las madreselvas,
cuando salgamos a correr ensueños,
montada tú a las ancas de mi yegua,
repica que repica repicando
pa-ca-tás pa-ca-tás sobre las piedras,
encendida de espumas la alazana,
encendidas de sangre las espuelas,
encendida la noche de luceros
y encendida la ruta de quimeras...

Linda rubia: las otras lindas rubias
saben que tú eres la más zarca entre ellas.
En sueños hice medallón dorado
con las dos medialunas de tus cejas;
marco de mi retrato en miniatura,
que vi en tus ojos de color turquesa
que las azules alas le robaron
a la azul mariposa de la huerta;
a la azul mariposa de azul alba
en que el sol madrugó turnio de ojeras;
a la azul mariposa que en la rosa
lograste al fin hacerla prisionera.

Linda rubia: las otras lindas rubias
envidian la blancura de tus perlas.
Tus labios, los dos cárdenos gusanos,
que tu lengua de miel aterciopela
unidos en los picos y en las colas
en apretado amor de macho y hembra,
circundan tu nidada de marfiles,
tus dos triunfales arcos en hileras,
que hízolos Dios para que fuesen dientes
y que una noche se volvieron perlas,
una noche de orgía en el Olimpo,
de rumba y bacanal, la noche lesbia
de la luna desnuda y tú desnuda,
en que borracha tú y borracha ella,
le pegaste un mordisco en las mejillas
empolvadas de polvo de luciérnagas,
y así bañaste en lumbre tus marfiles
que se volvieron luminosas perlas.

Linda rubia: las otras lindas rubias
el lujo de tus nácares ensueñan.
Nácares que en tus dedos acumulan
la impalpabilidad con que la abeja
liba el glóbulo intáctil de rocío
sin que su etérea levedad la sienta.
Besos de vaporosos colibríes
que rozan sin rozar las astromelias.
Nácares de las uñas de tus dedos
que palpan sin palpar mi cabellera.
Como las de las playas de los mares,
uñas de las minúsculas almejas
que por entre las púdicas enaguas,
en que la espuma se desriza en seda,
rascan las blancas nalgas de las olas
que a retozar se tienden en la arena.

Linda rubia: las otras lindas rubias
saben que tú eres la más blanca entre ellas.
Tú eres la luna medialuna blanca
en mis suntuosas noches de bohemia,
en las aristocráticas orgías
-vinos de mieles de Afrodita y Leda-
y hasta en las náuseas del amor rendido
que vomita su alcohol en las tinieblas.
La medialuna es Venus de los cielos
y tú eres medialuna de la tierra.
En tu falda de plata, Medialuna,
voy a besar el oro de una estrella.




LECHE DE LA CABRA NEGRA

Como medialuna blanca
en la medianoche negra,
tu blanca piel es la lumbre
que aluza mi hosca tristeza.

Tu piel le reza de noche
a la noche de la sierra
la letanía de la espuma
del salto de agua en las piedras.

Y a los luceros les trova
la más blanca cantarela:
la de la leche de ensueño
de la errante azul camella
panda en la travesía
entre la luna y la tierra.

Es la carne de tu cuerpo
carne de nuez cocotera,
cuajo de recién cuajado
queso de hoja de Isabela,
nieve de Blanca de Nieve,
y blanco vellón de oveja.
Alas de garzota blanca
son tus brazos y tus piernas.

Y eres toda ensueño blanco:
leche de la azul camella.

Luna y blanca, blanca
y luna novia en traje do azucena:
novia desnuda en la noche:
blanca la carne de soda,
blanca la cola de espuma
y blanco el velo de niebla.
Flor rociada de rocío
y llena de luna llena.
Flor que se desnuda
para que la gocen las estrellas.

Blanca sal. Azúcar blanca.
Cal. Cal viva en la cantera.
Polvo de almidón de yuca.
Polvo de arroz de Valencia.
Caracol de limpio nácar.
Vaso de horchata de almendra.
Huevo del cisne del cielo.

Leche do la cabra negra:
de la cabra de la noche
que en la inmensidad berrea,
paciendo sobre los astros,
y Dios lo sopla las tetas
quo se hinchan de infinito
y en vialácteas se deslechan.

Toda eres claro do luna:
la luna en tu carne riela.
Y toda, blanca vialáctea:
leche do la cabra negra.




VALLE DE COLLORES





Cuando salí de collores
fue en una jaquita baya,
por un sendero entre mayas
arropás de cundiamores.
Adiós, malezas y flores
de la barranca del río,
y mis noches del bohío,
y aquella apacible calma,
y los viejos de mi alma,
y los hermanitos míos.

¡Qué pena la que sentía,
cuando hacia atrás yo miraba,
y una casa se alejaba,
y esa casa era la mía!
La última vez que volvía
los ojos, vi el blanco vuelo
de aquel maternal pañuelo
empapado con el zumo
del dolor. Mas allá, humo
esfumándose en el cielo.

La campestre floración
era triste, opaca, mustia.
Y todo, como una angustia,
me apretaba el corazón.
La jaca a su discreción,
iba a paso perezoso.
Zumbaba el viento, oloroso
a madreselvas y a pinos.
Y las ceibas del camino
parecían sauces llorosos.

No recuerdo como fue
(aquí la memoria pierdo)
Más en mi oro de recuerdos,
recuerdo que al fin llegué,
la urbe, el teatro, el café,
la plaza, el parque, a la acera...
Y en una novia hechicera,
hallé el ramaje encendido,
donde colgué el primer nido
de mi primera quimera.

Despues, en pos de ideales.
Entonces, me hirió la envidia.
Y la calumnia y la insidia
y el odio de los mortales.
Y urdiendo sueños triunfales,
vi otra vez el blanco vuelo
de aquel maternal pañuelo
empapado con el zumo
del dolor. Lo demás, humo
esfumándose en el cielo.
Ay, la gloria es sueño vano.
Y el placer, tan sólo viento.
Y la riqueza, tormento.
Y el poder, hosco gusano.
Ay, si estuviera en mis manos
borrar mis triunfos mayores,
y a mi bohío de Collores
volver en la jaca baya
por el sendero entre mayas
arropás de cundiamores.




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Luis Lloréns Torres foi poeta e jornalista porto-riquenho. Nasceu em Juana Díaz (1876) e faleceu em Santurce (1944). Como poeta, começou com a corrente ou escola modernista, passando posteriormente para o estilo e modalidade costumbrista, sem abandonar inteiramente o já esgotado romantismo, pois esta escola está associada ao espírito nacionalista e patriótico que Porto Rico experimentou na época da independência sentimentos e nacionalistas.
Luis Lloréns estuda o ensino secundário em Mayagüez. Depois de concluir esses estudos, foi para a Espanha estudar nas universidades de Barcelona e Granada.
Retornando a Porto Rico em 1901, iniciou sua frutífera atividade, vários de seus livros foram publicados em ordem sucessiva e rápida. Em particular, devemos mencionar a Revista de las Antillas, onde já aparecem seus poemas de orientação vanguardista e modernista, juntamente com os de muitos outros hispano-americanos da mesma escola.
Grande parte da poesia de Luis Lloréns é influenciada por sua militância política e pelo nascente criollismo literário em voga. É comum encontrar em sua coleção de poemas jíbaro folclore e costumes populares em geral.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (9a.) - Fez-se silêncio completo na sala.

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


9a.


Fez-se silêncio completo na sala. Todos pasmaram para o príncipe, como se não tivessem ouvido ou não conseguissem compreender. Gánia ficou hirto de terror. A chegada de Nastássia Filíppovna, e justamente naquela hora, causou a maior e mais desordenada surpresa em todos. O fato mesmo de Nastássia Filíppovna se ter lembrado de visitá-los, já era assombroso. Até então fora tão altiva que nem em conversa com Gánia expressara. uma vez sequer, o desejo de lhe conhecer a família, sendo que, de modo algum, ultimamente, fazia a menor alusão a ela, como se nem existisse. Muito embora, de certa maneira, isso ao menos lhe proporcionasse alívio, por assim evitar um assunto melindroso, armazenara, todavia, em seu coração, um ressentimento contra ela. Verdade é que preferiria expor-se a receber da parte dela observações ferinas e irônicas, quanto à sua família, a recebê-la em casa. Tinha certeza de que ela estava a par de que em casa o seu compromisso despertava discórdias, não ignorando a atitude de tal família a seu respeito. Essa visita agora, logo a seguir ao presente do retrato, e no dia mesmo do seu aniversário, dia em que prometera dar a sua decisão, equivalia indubitavelmente à decisão mesma. Mas não durou muito a estupefação com que todos fitavam o príncipe. E não durou porque Nastássia Fílíppovna apareceu, em pessoa, à porta da sala de estar, obrigando o príncipe a recuar outra vez para lhe dar passagem.

- Sempre consegui entrar. É de propósito que a campainha está travada? - foi dizendo, muito bem-humorada, estendendo a mão a Gánia que se precipitara ao seu encontro.

- Por que está assim tão transtornado? Faça o favor de me apresentar.

Gánia, completamente zonzo, a apresentou primeiro a Vária. As duas mulheres, antes de se cumprimentarem, se estudaram com os olhos, de modo estranho; mas como Nastássia Filíppovna ainda estava sorrindo, pôde mascarar os seus sentimentos sob essa amostra de expansibilidade. Mas Vária não escondeu os seus, fitando-a com uma intensidade esquisita. Não surgiu em seu semblante o sorriso sequer que a simples polidez exige.
Gánia estava em transe.
Era inútil intervir e nem haveria tempo e modo; mas conseguiu atirar à irmã um olhar de soslaio tal que ela bem se deu conta do que esse momento representava para ele. Decidiu ceder e sorriu afetadamente para a outra.
(Na família todos ainda gostavam bastante uns dos outros.)
Quem, afinal, salvou a situação foi Nina Aleksándrovna a quem Gánia logo a seguir a apresentou, embora já irremediavelmente confuso. E tão confuso que em vez de apresentar Nastássia Filíppovna apresentou a mãe a esta. Mas tão logo Nina Aleksándrovna começou a falar no “grande prazer etc.”, já Nastássia Filíppovna, sem lhe dar atenção, se virava apressadamente para Gánia, sentando-se, sem esperar que lhe dissessem, em um sofazinho, a um canto, perto da janela.

- O seu escritório onde é? - perguntou logo. - E onde estão os inquilinos? Você recebe inquilinos, não é?

Gánia enrubesceu terrivelmente, e ia tartamudear qualquer resposta quando ela prosseguiu, não lhe dando tempo:

- Em que lugar você os aloja? Você nem ao menos um escritório tem? Dá lucro? - perguntou, já agora se dirigindo a Nina Aleksándrovna.

- Só dá incômodos - respondeu esta. - Naturalmente sempre compensa um pouco, mas só aceitamos justamente aqueles que...

Novamente Nastássia Filíppovna deixava de prestar atenção, fitava Gánia, sorria; até que exclamou:

- Mas com que cara você está! Meu Deus! Você está engraçadíssimo, agora!

A sua risada ressoou por diversos segundos e o rosto de Gánia se contraiu terrivelmente. A sua estupefação, o abatimento cômico que o atarantava desaparecera; mas estava agora tão pavorosamente pálido, com os lábios tão crispados, e tão solenemente calado, com um olhar mau e duro fitando a sua visitante, que a fez rir ainda mais.
Havia um outro observador que mal se tinha restabelecido do espanto que Nastássia Filíppovna lhe produzira; mas, apesar de estarrecido no mesmo lugar, em plena sala, pôde notar o pavor e a transformação de Gánia. Esse observador era o príncipe. Instintivamente, mesmo intimidado como estava, deu um passo à frente e disse a Gánia:

- Beba um pouco de água. Não fique assim.

Dissera isso compelido pelas circunstâncias, sem nenhuma intenção ou motivo segundo. Mas o efeito dessas palavras em Gánia foi formidável. Todo o seu ódio se voltou para o príncipe. Segurou-o pelo ombro e o encarou, calado, com ódio e desejo de vingança, mas impossibilitado de lhe dizer qualquer desaforo. Isso causou uma emoção geral.
Nina Aleksándrovnaf soltou uma exclamação curta e fraca, enquanto Ptítsin dava uns passos à frente. Kólia e Ferdichtchénko, que tinham chegado à porta, estacaram, atônitos Apenas Vária, com aquele seu feitio teimoso, olhava em silêncio. provocadoramente, de propósito, em pé, como estava, ao lado da mãe, os braços cruzados sobre o peito.
Contendo-se, Gánia sorriu nervosamente. E tendo recuperado quase a naturalidade, disse:

- Ora essa. O senhor é médico, príncipe? Pois não é que nos surpreendeu? Nastássia Filíppovna, posso apresentá-lo? Trata-se de uma rara personalidade, embora eu só o conheça desta manhã para cá.

Nastássia Filíppovna olhou espantada para o príncipe.

- Príncipe? Ele é príncipe? Ora, imaginem que eu o tomei ainda agora por um criado, e até lhe disse que viesse participar a minha chegada. Ah! Ah! Ah!

- Não houve ofensa. Não houve ofensa! - entrou dizendo Ferdichtchénko, rapidamente se dirigindo para ela, aproveitando enquanto riam. - Não houve ofensa. Se non e vero...

- E eu que estive quase a descompô-lo, príncipe! Perdoe-me, por favor. Ferdichtchénko, que esteve você fazendo para chegar aqui a tal hora? Não contava de modo algum encontrá-lo aqui. Príncipe o quê? Míchkin? - perguntava ela a Gánia que com o príncipe ainda preso pelo ombro, forcejava por apresentá-lo.

- Nosso inquilino - esclareceu Gánia.

Era notório que o estava apresentando e quase o empurrando para cima de Nastássia Filíppovna como uma curiosidade, como um meio de fugir à situação falsa em que estava colocado. E ao príncipe foi fácil colher no ar a palavra “idiota” pronunciada às suas costas, provavelmente por Ferdichtchénko, à guisa de informação complementar para Nastássia Filíppovna.

- Diga-me por que não me corrigiu ainda agora quando cometi a seu respeito tão tremendo equívoco? - perguntou Nastássia Filíppovna, observando-o da cabeça aos pés, sem cerimônia alguma. E ficou à espera da resposta, impacientemente, certa de que seria um despautério qualquer e tão estúpido que os faria rirem.

- Porque fiquei surpreendido! Dei convosco tão inesperadamente! - balbucíou o príncipe.

- Como soube que era eu? Onde me viu antes? Mas, espere um pouco. Acho que realmente já o vi em qualquer parte... Mas diga por que foi, afinal, que ficou tão assombrado? Que é que há em mim, de mais, para causar espanto?

- Agora é que eu quero ver... - insistiu Ferdichtchénko, com um risinho afetado. - Ó Deus, as coisas que eu diria em resposta a isso! Vá, príncipe, não nos faça pensar que é um rematado paspalhão!

- No seu lugar, eu também diria o mesmo - observou o príncipe rindo para Ferdichtchénko. - É que hoje o vosso retrato me deixou muito impressionado. - dirigia-se finalmente a Nastássia Filíppovna. - Ainda por cima, acontece que estive falando com os Epantchín a vosso respeito. E, o que é mais, já esta manhã. no trem, antes mesmo de chegar a Petersburgo, Parfión Rogójin já me falara sobre vós... E eis que, ainda agora ao abrir a porta, juro que estava pensando em vós, não sei por quê... E não é que subitamente...

- E como reconheceu que era eu?

- Pela fotografia e...

- E o quê?

- Correspondeis exatamente ao que eu imaginara... Foi como se já vos tivesse visto também, não sei onde. Esta a sensação que tive.

- Onde? Onde?

- Senti como se tivesse visto os vossos olhos em alguma parte... Mas isso é impossível, é bobagem minha... Estive sempre ausente daqui. Talvez, em sonho!...

- Bravo, príncipe! - gritou Ferdichtchénko. - Agora retiro o meu se non é vero. - arrependendo-se, porém, do elogio, acrescentou: - Mas tudo isso não passa de inocência... As poucas frases pronunciadas pelo príncipe foram em voz perturbada, sendo obrigado a parar para tomar fôlego. A menor coisa lhe causava emoção.

Nastássia Filíppovna olhou-o com interesse e já sem rir. Nisto uma outra voz ruidosa ribombou por detrás do grupo, que se tinha fechado em volta do príncipe e de Nastássia Filíppovna, parecendo abrir uma passagem fendendo o grupo ao meio. E, diante de Nastássia Filíppovna, surgiu o chefe da casa, o General Ívolguin em pessoa. Vestia sobrecasaca e a camisa tinha um peitilho postiço alvíssimo. A bigodeira acabara de ser pintada.
Isso, para Gánia, era mais que insuportável. De que lhe valera, ambicioso e frívolo, além de hipersensitivo em grau mórbido, ter procurado durante aqueles dois últimos meses, a todo custo, alcançar um meio de vida mais apresentável e distinto? Faltando-lhe experiência, embarafustara errado pelo caminho que se propusera. Era o déspota do lar, tendo assumido em desespero de causa uma atitude de completo cinismo. Mas não pudera manter essa posição diante de Nastássia Filíppovna, que o deixara propositadamente na incerteza até ao derradeiro momento.
O “pobretão impaciente”, como depois viera a saber que ela o chamava, tinha jurado por quantas juras sabia que a faria pagar amargamente por isso: mas ao mesmo tempo. como uma criança, sonhara reconciliar todos esses equívocos. E por cúmulo, agora, tinha de beber mais esta taça amarga, e bem nesta hora, ainda por cima. Mais uma tortura não prevista, a mais terrível de todas para um homem fútil: a agonia de ter de corar diante dos parentes e por causa deles, e em sua própria casa. Este o cruel e último quinhão. E pelo seu espírito acima subiu esta pergunta íntima: “A recompensa valerá tudo isto?”
Estava justamente acontecendo, nesse momento, o que durante dois meses fora o seu pesadelo, que o enregelava de terror e abrasava de vergonha. Afinal estavam aí face a face os dois: o pai e ela! Quantas vezes não o atormentara a visão imaginada do velho no dia do casamento! Mas é sempre assim com essa gente fútil.
Não se fartara naqueles dois meses de considerar em um modo global a questão, tendo decidido, custasse o que custasse, afastar o pai, no mínimo, momentaneamente, mandando-o até, se necessário fosse, para fora de Petersburgo, com ou sem anuência materna.
Dez minutos antes, quando Nastássia Filíppovna entrou, ele ficara tão zonzo e embaraçado que nem lhe ocorreu a hipótese de tamanha possibilidade, isto é, de Ardalión Aleksándrovitch aparecer em cena. E não procurara um meio de impedir isso. E eis que, diante de todos, solenemente vestido e garboso para a ocasião o general irrompe na sua sobrecasaca, justamente na hora em que Nastássia Filíppovna estava “apenas procurando um motivo para cobri-lo de ridículo, mais à sua família”.
(Gánia estava mais convencido disso.)
E essa visita, que intento tivera, se não esse? Viera para fazer amizade com a mãe e a irmã, ou para insultá-los a domicilio? E pela atitude de ambas as partes não restavam dúvidas a respeito. Sua mãe e sua irmã estavam sentadas à parte, muito envergonhadas, ao passo que ela, Nastássia Filíppovna, parecia esquecer intencionalmente que elas estavam ali naquela mesma sala, com ela. E se assim se comportava era lógico que tinha um intento com isso.
Ferdichtchénko logo se assenhorou do general, manobrando-o.



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quarta-feira, 27 de julho de 2022

Documentário: Guia Politicamente Incorreto

Canal History Brasil


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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI: Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo.

D. Quixote de la Mancha



Miguel de Cervantes

Vol 1



O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 

Miguel de Cervantes



PRIMEIRA PARTE

LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO XVI


Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo.


O vendeiro, que viu D. Quixote atravessado no asno, perguntou a Sancho que mal trazia. Respondeu-lhe este que nada era, que tinha dado uma queda dum penedo abaixo, e que trazia algum tanto amolgadas as costelas.
Tinha o vendeiro por mulher uma, não da condição costumada nas de semelhante trato, porque naturalmente era caritativa, e se condoía das calamidades do próximo. Acudiu esta logo a curar a D. Quixote, e fez com que uma sua filha donzela, rapariga, e de bem bom parecer, a ajudasse a tratar do hóspede.
Servia também na venda uma moça asturiana, larga de cara, cabeça chata por detrás, nariz rombo, torta de um olho, e do outro pouco sã. Verdade é que a galhardia do corpo lhe descontava as outras faltas; não tinha sete palmos dos pés à cabeça; e os ombros, que algum tanto lhe cargavam, a faziam olhar para o chão mais do que ela quisera.
Esta gentil moça pois ajudou a donzela, e entre ambas engenharam uma cama suficientemente má para D. Quixote, num sótão, que dava visíveis mostras de ter noutro tempo servido de palheiro muitos anos, no qual se alojava também um arrieiro, que tinha a sua cama feita um pouco adiante da do nosso D. Quixote, e ainda que era das enxergas e mantas dos machos, levava ainda assim muita vantagem à do cavaleiro, que só se compunha de quatro tábuas mal acepilhadas, sobre dois bancos desiguais, e dum colchão que em delgado mais parecia colcha, recheado de godelhões, que, se não mostrassem por alguns buracos serem de lã, ao toque e pela dureza pareciam calhaus, dois lençóis como de couro de adarga, e um cobertor cujos fios se podiam contar sem escapar um único.
Nesta amaldiçoada cama se deitou D. Quixote, e logo a vendeira e sua filha o emplastraram de alto a baixo, alumiando-lhes Maritornes (que assim se chamava a asturiana); e vendo a vendeira o corpo de D. Quixote tão pisado em muitas partes, disse que mais pareciam aquilo pancadas, que só queda.

— Não foram pancadas — acudiu Sancho — é que o penedo tinha muitos bicos, e cada um deles lhe fez sua pisadura.

E ajuntou logo:

— Olhe, senhora, se faz isso de modo que sobejam algumas estopas, que não faltará quem delas precise, que também a mim me doem um pouco os lombos.

— Pelo que vejo — disse a vendeira — também vós caístes?

— Não caí — respondeu Sancho — mas do susto que tive de ver cair a meu amo de tal modo me dói o corpo, que é como se me tivessem dado mil bordoadas.

— Podia muito bem ser isso — disse a donzela — que a mim muitas vezes me tem acontecido sonhar que caía duma torre abaixo, e não acabava nunca de chegar ao chão; e quando despertava do sonho, achava-me tão moída e quebrantada, como se tivera caído deveras.

— Assim mesmo é que é, senhora — respondeu Sancho Pança; — também eu, sem sonhar nada, e estando mais acordado do que estou agora, acho-me com pouco menos pisaduras que meu amo o senhor D. Quixote.

— Como se chama este cavaleiro? — perguntou a asturiana Maritornes.

— D. Quixote de la Mancha — respondeu Sancho — é cavaleiro de aventuras, e dos melhores e mais fortes que de longo tempo para cá se tem visto neste mundo.

— Que vem a ser cavaleiro de aventuras? — replicou a serva.

— Tão novata sois no mundo, que o ignorais? — respondeu Sancho — pois sabei, irmã, que cavaleiro de aventuras vem a ser um sujeito que em duas palhetadas se vê desancado, e Imperador. Hoje está a mais desditada criatura do mundo, e a mais necessitada, e amanhã terá duas ou três coroas reais para as dar ao seu escudeiro.

— Então como é que vós, pertencendo a tão bom senhor — perguntou a vendeira — não tendes, ao que parece, pelo menos algum condado?

— Ainda é cedo — respondeu Sancho — porque não há senão um mês que andamos buscando as aventuras, e por enquanto ainda não topamos com alguma que o fosse em bem; muitas vezes se busca uma coisa, e se acha outra. Verdade é que se o meu amo o senhor D. Quixote sara desta queda ou destas feridas, e eu não ficar estropiado, não troco as minhas esperanças pelo melhor título de Espanha.

Todas estas práticas estava D. Quixote escutando muito atento; e, sentando-se na cama conforme pôde, pegando na mão da vendeira, lhe disse:

— Crede, formosa senhora, que vos podeis chamar feliz por terdes albergado neste vosso castelo a minha pessoa, que é tal, que, se eu a não louvo, é pelo que se costuma dizer que o louvor em boca própria é vitupério; porém o meu escudeiro vos dirá quem sou. Só vos digo que hei-de conservar eternamente na memória o serviço que me haveis feito para o agradecer enquanto a vida me durar; e prouvera aos céus que o amor me não tivesse tão rendido e sujeito às suas leis, e aos olhos daquela formosa ingrata, que digo pela boca pequena que os desta formosa senhora se tornariam senhores do meu alvedrio.

Confusas estavam a bodegueira, a filha e a boa de Maritornes, ouvindo os ditos do cavaleiro andante, que elas entendiam como se fossem em grego, ainda que bem percebiam endereçarem-se todos a oferecimentos e requebros; e, por não acostumadas com semelhante linguagem, olhavam para ele, e admiravam-se, parecendo-lhes não ser homem como os outros; e, agradecendo-lhe em estilo tabernático, o deixaram. A asturiana Maritornes curou a Sancho, que o não precisava menos que o amo.
Tinha o arrieiro conchavado com ela que naquela noite se haviam de refocilar juntos, dando-lhe ela a sua palavra de que, em estando sossegados os hóspedes, e os amos adormecidos, iria ter com ele, e satisfazer-lhe o gosto enquanto mandasse.
Conta-se desta moça que nunca jamais promessas daquela casta as deixava por cumprir, ainda que as desse num monte e sem testemunhas, pois timbrava muito de fidalga, e não tinha por afronta estar naquele serviço de moça de locanda, porque dizia ela que desgraças e maus sucessos a haviam reduzido a tal estado.
O duro, estreito, apoucado, e fingido leito de D. Quixote ficava logo à entrada daquele estrelado sótão; e ao pé tinha Sancho arranjado a sua jazida, que só constava duma esteira de junco e duma manta, que mais parecia de estopa tosada, que de lã.
A estes dois leitos seguia-se o do arrieiro, engenhado, como dito fica, das enxergas e mais composturas dos dois melhores machos que trazia, os quais ao todo eram doze, luzidios, anafados e famosos, porque era um dos arrieiros ricos de Arevalo, segundo diz o autor desta história, que dele faz particular menção, pelo ter mui bem conhecido; e até querem dizer que era algum tanto seu parente; além do que Cid Hamete Benengeli foi historiador muito curioso e muito pontual em todas as coisas; e bem se vê que sim, pois nas que ficam referidas (com serem mínimas e rasteiras) não as quis deixar no escuro; de que poderão tomar exemplo os historiadores graves, que nos contam as ações tão acanhadas e sucintamente, que mal se lhes toma o gosto, deixando no tinteiro por descuido, malícia, ou ignorância, o mais substancial. Bem haja mil vezes o autor de Tablante de Ricamonte e o do outro livro, onde se contam os feitos do Conde de Tomilhas; e com que pontualidade se descreve tudo!
Digo pois, que, tanto como o arrieiro visitou a sua récova, e lhe deu a segunda ração, se estendeu nas enxergas, e ficou à espera da sua pontualíssima Maritornes.
Já estava Sancho emplastrado e deitado; e, ainda que procurava dormir, não lho consentia a dor das costelas; e D. Quixote, com o dolorido das suas, tinha os olhos abertos, que nem lebre.
Toda a venda era em silêncio, não havendo em toda ela outra luz senão a de uma lanterna pendurada ao meio do portal.
Esta maravilhosa quietação, e os pensamentos que o nosso cavaleiro sempre trazia dos sucessos que a cada passo se contam nos livros ocasionadores de sua desgraça, trouxe-lhe à imaginação uma das estranhas loucuras que bem se podem figurar, e foi julgar-se ele chegado a um famoso castelo (que, segundo já dissemos, castelos eram em seu entender todas as vendas em que pernoitava), e que a filha do vendeiro era a filha do castelão, a qual, vencida da sua gentileza, se havia dele enamorado, prometendo-lhe que naquela noite, às escondidas dos pais, havia de vir passar com ele um bom pedaço; e tendo por firme e verdadeira toda esta quimera por ele próprio fabricada, entrou a afligir-se e a pensar no perigoso transe em que a sua honestidade se ia ver; propondo porém em seu coração não cometer falsidade à sua senhora Dulcinéia del Toboso, ainda que diante se lhe pusesse a Rainha Ginevra com a sua camareira Quintanhona.
Pensando pois nestes disparates, chegou o tempo e a hora (que para ele foi minguada) de vir a asturiana, a qual em camisa e descalça, com os cabelos metidos numa coifa de algodão, a passo atento e sutil entrou à procura do arrieiro no aposento onde os três jaziam.
Mal era chegada à porta, quando D. Quixote a sentiu; e sentando-se na cama, apesar dos emplastros, e com dores das costelas, estendeu os braços para receber a sua formosa donzela, a asturiana, que toda encolhida e calada ia com as mãos adiante procurando o seu querido. Topou ela com os braços de D. Quixote, o qual lhe travou rijamente da mão, e puxando-a para si, sem que ela ousasse proferir palavra, a fez sentar-se sobre a cama.
Apalpou-lhe logo a camisa; e ainda que ela era de serapilheira, a ele lhe pareceu de delgado e finíssimo bragal. Trazia a moça nos pulsos umas contas de vidro, que a ele se representavam preciosas pérolas orientais. Os cabelos, que algum tanto atiravam para crinas, pareciam-lhe fios de luzentíssimo ouro da Arábia, cujo esplendor ao do próprio sol escurecia; e o bafo, que sem dúvida alguma cheirava a alguns restos de carne da véspera, representou-se-lhe um hálito suave e aromático. Finalmente, na fantasia a ideou tal qual como tinha lido em seus livros acerca da outra Princesa, que veio ver o mal ferido cavaleiro, vencido dos seus amores, com todos os adornos que se aqui declaram.
Tamanha era a cegueira do pobre fidalgo, que nem o tato, nem o cheiro, nem outras coisas, que em si trazia a boa donzela, o desenganavam, com serem tais, que fariam vomitar a quem quer que não fosse arrieiro; antes lhe parecia que tinha nos braços a deusa da formosura. Estreitando-a neles, com voz amorosa e baixa lhe disse:

— Quisera achar-me em termos, formosa e alta senhora, de poder pagar tamanha mercê como esta que me haveis feito com a vista da vossa grande formosura. Porém a fortuna, que se não cansa de perseguir aos bons, quis prostrar-me neste leito, onde me acho tão moído e quebrantado, que, por maior vontade que eu tivesse de vos satisfazer, de modo nenhum o poderia. A esta impossibilidade acresce outra maior; e é a fé que tenho prometido guardar à sem igual Dulcinéia del Toboso, única senhora dos meus mais ocultos pensamentos. A não se me pôr isto diante, não seria eu cavaleiro tão sandeu, que deixasse fugir a venturosa ocasião que a vossa grande bondade me faculta.

Maritornes estava aflitíssima, e tressuando de ver-se tão apertada por D. Quixote, e sem perceber nem atender ao que ele dizia, procurava, sem dizer chus nem bus, desenlear-se da prisão. O bom do arrieiro, que estava bem desperto com os seus danados desejos, desde o instante em que a moça entrou a porta a sentiu, e esteve atentamente escutando quanto D. Quixote dizia; e cioso de que a asturiana o tivesse com outro falseado, foi-se achegando mais à cama de D. Quixote, e esteve muito quedo à espera de ver em que parariam aqueles palavreados que ele não podia entender; porém como viu que a moça forcejava para se ver solta, e D. Quixote trabalhava para a reter, pareceu-lhe mal a história, levantou o braço ao alto, e desfechou tão terrível murro nos estreitos queixos do enamorado cavaleiro, que lhe deixou a boca toda a escorrer em sangue; e não contente com isto, saltou-lhe sobre as costelas, e com os pés as palmilhou à sua vontade, e mais que a trote. O leito, que era um pouco fraco, e de fundamentos mal seguros, não podendo sofrer o contrapeso do arrieiro, deu consigo em terra.
Àquele ruído despertou o vendeiro, e logo imaginou que haviam de ser pendências de Maritornes, porque, tendo bradado por ela, não lhe respondia. Com esta suspeita ergueu-se, e acendendo uma candeia, se foi para onde tinha sentido a balbúrdia.
A moça, vendo que o amo vinha, e que não era homem para graças, toda medrosa e alvorotada, fugiu para a cama de Sancho Pança, que estava afinal adormecido, e ali se encolheu novelando-se toda.
O vendeiro entrou dizendo:

— Onde estás, traste? isto são por força coisas tuas.

Despertou Sancho; e sentindo aquele vulto quase em cima de si, pensou estar com um pesadelo, e começou a atirar punhadas para uma e outra banda, apanhando não sei quantas a Maritornes. Ela, com a dor, embaraçando-se pouco de decências, retribuiu a Sancho com tantas, que sem vontade lhe espantaram de todo o sono. Vendo-se tratado daquele feitio, e sem saber por quem, levantou-se como pôde, abraçou-se com a rapariga, e entre os dois se travou a mais renhida e engraçada escaramuça do mundo.
O arrieiro, reconhecendo à luz da candeia do bodegão como a sua dama andava, largou a D. Quixote para acudir por ela. Outro tanto fez o dono da casa, mas com propósito diferente, porque o seu foi de castigar a moça, por crer sem dúvida que ela só era a ocasionadora de todo aquele concerto; e assim como se costuma dizer: o gato ao rato, o rato à corda, a corda ao pau, o arrieiro dava em Sancho, Sancho na moça, a moça em Sancho, o vendeiro na moça; e todos com tamanha azáfama, que nem fôlego tomavam.
O bonito foi quando a candeia se apagou. Na escuridão batiam tão sem dó todos para o monte, que onde quer que acertavam a mão não deixavam coisa sã.
Jazia acaso na venda aquela noite um quadrilheiro, dos que chamam da Santa Irmandade velha de Toledo, o qual, ouvindo o desconforme barulho da peleja, agarrou da sua varinha, e da caixa de lata dos seus títulos, e entrou às escuras no aposento, bradando:

— Parem da parte da Justiça! parem da parte da Santa Irmandade!

O primeiro com quem topou foi o esmurrado de D. Quixote que estava no seu leito derribado, de boca para o ar e sem sentidos; e, lançando-lhe às apalpadelas a mão às barbas, não cessava de clamar:

— Acudam à Justiça!

Vendo porém que o vulto se não bolia, supôs que estava morto, e que os mais que na casa eram deviam ser os matadores. Com esta suspeita reforçou a voz, dizendo:

— Feche-se a porta da venda. Sentido que não saia viva alma, que mataram aqui um homem.

Este brado sobressaltou a todos, e cada um deixou a desavença instantaneamente. Retirou-se o vendeiro para o seu quarto, o arrieiro para as suas enxergas, e a moça para o seu rancho. Só os mal-aventurados D. Quixote e Sancho é que se não puderam mover donde jaziam.
Largou então o quadrilheiro a barba de D. Quixote, e saiu a buscar luz, para ver e prender os delinquentes; mas não a achou, porque o vendeiro de propósito havia apagado a lâmpada, quando se retirou para o seu cubículo, e foi-lhe forçoso recorrer à chaminé, onde, com muito trabalho e tempo, o quadrilheiro acendeu outra luz.


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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo VIII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo X
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo XII

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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho


Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 

Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com


Flusser : Filosofia da Caixa Preta (5 - A Fotografia)

Filosofia da Caixa Preta




VILÉM FLUSSER




Ensaios para uma futura filosofia da fotografia




5 - A Fotografia


Fotografias são onipresentes: coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas. Que significam tais fotografias? Segundo as considerações precedentes, significam conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento de seus receptores. Mas não é o que se vê quando para elas se olha. Vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfícies. Mesmo um observador ingênuo admitiria que as cenas se imprimiram a partir de um determinado ponto de vista. Mas o argumento não lhe convém. O fato relevante para ele é que as fotografias abrem ao observador visões do mundo. Toda filosofia da fotografia não passa, para ele, de ginástica mental para alienados.

No entanto, se o observador ingênuo percorrer o universo fotográfico que o cerca, não poderá deixar de ficar perturbado. Era de se esperar: o universo fotográfico representa o mundo lá fora através deste universo, o mundo. A vantagem é permitir que se vejam as cenas inacessíveis e preservar as passageiras ( o que, afinal de contas, seja admitido, já é uma filosofia da fotografia rudimentar).

Mas será verdade? Se assim for, como explicar que existam fotografias preto-e-branco e fotografias em cores? Haverá, lá fora no mundo, cenas em preto-e-branco e cenas coloridas? Se não, qual a relação entre o universo das fotografias e o universo lá fora? Inadvertidamente, o observador ingênuo se encontra mergulhado em plena filosofia da fotografia, a qual pretendeu evitar.

Não pode haver, no mundo lá fora, cenas em preto-e-branco. Isto porque o preto e o branco são situações “ideais”, situações-limite. O branco é presença total de todas as vibrações luminosas; o preto é a ausência total. O preto e o branco são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da Ótica. De maneira que cenas em preto-e-branco não existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas “imaginam” determinados conceitos de determinada teoria, graças à qual são produzidas automaticamente. Aqui, porém, o termo automaticamente não pode mais satisfazer o observador ingênuo do universo da fotografia. Quanto ao problema da crítica da fotografia, eis o ponto crítico: ao contrário da pintura, onde se procura decifrar ideias, o crítico de fotografia deve decifrar, além disso, conceitos.


O preto e o branco não existem no mundo, o que é grande pena. Caso existissem, se o mundo lá fora pudesse ser captado em preto-e-branco, tudo passaria a ser logicamente explicável. Tudo no mundo seria então ou preto ou branco, ou intermediário entre os dois extremos. O desagradável é que tal intermediário não seria em cores, mas cinzento... a cor da teoria. Eis como a análise lógica do mundo, seguida de síntese, não resulta em sua reconstituição. As fotografias em preto-e-branco o provam, são cinzentas: imagens de teorias (óticas e outras) a respeito do mundo.

A tentativa de imaginar o mundo em preto-e-branco é antiga. Faltavam apenas os aparelhos adequados a tal imaginação. Dois exemplos desse maniqueísmo pré-fotográfico: 1. Abstraiam-se do universo dos juízos os verdadeiros e os falsos. Graças a tal abstração, pode ser construída a lógica aristotélica, com sua identidade, diferença e o terceiro excluído. Esta lógica, por sua vez, vai contribuir para a construção da ciência moderna. Ora, a ciência funciona de fato, embora não existam juízos inteiramente verdadeiros ou inteiramente falsos, e embora toda análise lógica de juízos os reduza a zero; 2. abstraiam-se do universo das ações as boas e as más. Graças a tal abstração, podem ser construídas ideologias (religiosas, políticas, etc.). Essas ideologias, por sua vez, vão contribuir para a construção de sociedades sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam de fato, embora não existam ações inteiramente boas ou inteiramente más, e embora toda ação se reduza, sob análise ideológica, a movimentos de fantoche. As fotografias em preto-e-branco são resultados desse tipo de maniqueísmo munido de aparelho. Funcionam.

E funcionam da seguinte forma: transcodificam determinadas teorias (em primeiro lugar, teorias da Ótica) em imagem. Ao fazê-lo, magicizam tais teorias. Transformam seus conceitos em cenas. As fotografias em preto-e-branco são a magia do pensamento teórico, conceitual, e é precisamente nisto que reside seu fascínio. Revelam a beleza do pensamento conceitual abstrato. Muitos fotógrafos preferem fotografar em preto-e-branco, porque tais fotografias mostram o verdadeiro significado dos símbolos fotográficos: o universo dos conceitos.

As primeiras fotografias eram, todas, em preto-e-branco, demonstrando que se originavam de determinada teoria da Ótica. A partir do progresso da Química, tornou-se possível a produção de fotografias em cores. Aparentemente, pois, as fotografias começaram a abstrair as cores do mundo, para depois as reconstituírem. Na realidade, porém, as cores são tão teóricas quanto o preto e o branco. O verde do bosque fotografado é imagem do conceito “verde”, tal como foi elaborado por determinada teoria química. O aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem. Há, por certo ligação indireta entre o verde do bosque fotografado e o verde do bosque lá fora: o conceito científico “verde” se apoia, de alguma forma, sobre o verde percebido. Mas entre os dois verdes se interpõe toda uma série de codificações complexas. Mais complexas ainda do que as que se interpõem entre o cinzento do bosque fotografado em preto-e-branco e o verde do bosque lá fora. De maneira que a fotografia em cores é mais abstrata que a fotografia em preto-e-branco. Mas as fotografias em cores escondem, para o ignorante em Química, o grau de abstração que lhe deu origem. As brancas e pretas são, pois, mais “verdadeiras”. E quanto mais “fiéis” se tornarem as cores das fotografias, mais estas serão mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade teórica que lhes deu origem. (Exemplos: “verde Kodak” contra “verde Fuji”.)

O que vale para as cores vale, igualmente, para todos os elementos da imagem. São, todos eles, conceitos transcodificados que pretendem ser impressões automáticas do mundo lá fora. Tal pretensão precisa ser decifrada por quem quiser receber a verdadeira mensagem das fotografias: conceitos programados. Destarte, o observador ingênuo se vê obrigado, malgré lui, a mergulhar no torvelinho das reflexões filosóficas que procurou eliminar, por considerá-las ginástica mental alienada.

Concordemos quanto ao que pretendemos dizer por deciframento. Que faço ao decifrar um texto em alfabeto latino? Decifro o significado das letras, esses determinados sons da língua falada? Decifro o significado das palavras compostas de tais letras? Decifro o significado das frases compostas de tais palavras? Ou devo procurar, por trás do significado das frases, outros significados, como a intenção do autor e o contexto cultural no qual o texto foi codificado? Para decifrar o significado da fotografia do bosque verde, bastaria ter decifrado os conceitos científicos que codificaram a fotografia, ou devo ir mais longe? Assim colocada, a questão do deciframento não terá resposta satisfatória, já que todo nível de deciframento assentará sobre mais um a ser decifrado. Mas podemos, no caso da fotografia, evitar este regresso ao infinito. Para decifrar fotografias não preciso mergulhar até o fundo da intenção codificadora, no fundo da cultura, da qual as fotografias, como todo símbolo, são pontas de icebergs. Basta decifrar o processo codificador que se passa durante o gesto fotográfico, no movimento do complexo “fotógrafo-aparelho”. Se conseguíssemos captar a involução inseparável das intenções codificadoras do fotógrafo e do aparelho, teríamos decifrado, satisfatoriamente, a fotografia resultante. Tarefa aparentemente reduzida, mas na realidade gigantesca. Precisamente por serem tais intenções inseparáveis, e por se articularem de forma específica em toda e qualquer fotografia a ser criticada.

No entanto, o deciframento de fotografias é possível, porque, embora inseparáveis, as intenções do fotógrafo e do aparelho podem ser distinguidas. Esquematicamente, a intenção do fotógrafo é esta: 1. codificar, em forma de imagens, os conceitos que tem na memória; 2. servir-se do aparelho para tanto; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre. Resumindo: A intenção é a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros. Esquematicamente, a intenção programada no aparelho é esta: 1. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em forma de imagens; 2. servir-se de um fotógrafo, a menos que esteja programado para fotografar automaticamente; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para homens; 4. fazer imagens sempre mais aperfeiçoadas. Resumindo: a intenção programada no aparelho é a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento.

Mas por trás da intenção do aparelho fotográfico há intenções de outros aparelhos. O aparelho fotográfico é produto do aparelho da indústria fotográfica, que é produto do aparelho do parque industrial, que é produto do aparelho socioeconômico e assim por diante. Através de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma única e gigantesca intenção, que se manifesta no output do aparelho fotográfico: fazer com que os aparelhos programem a sociedade para um comportamento propício ao constante aperfeiçoamento dos aparelhos.

Se compararmos as intenções do fotógrafo e do aparelho, constataremos pontos de convergência e divergência. Nos pontos convergentes, aparelho e fotógrafo colaboram; nos divergentes, se combatem. Toda fotografia é resultado de tal colaboração e combate. Ora, colaboração e combate se confundem. Determinada fotografia só é decifrada, quando tivermos analisado como a colaboração e o combate nela se relacionam.

No confronto com determinada fotografia, eis o que o crítico deve perguntar: até que ponto conseguiu o fotógrafo apropriar-se da intenção do aparelho e submetê-la à sua própria? Que métodos utilizou: astúcia, violência, truques? Até que ponto conseguiu o aparelho apropriar-se da intenção do fotógrafo e desviá-la para os propósitos nele programados? Responder a tais perguntas é ter os critérios para julgá-la. As fotografias “melhores” seriam aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre o aparelho: a vitória do homem sobre o aparelho. Forçoso é constatar que, muito embora existam tais fotografias, o universo fotográfico demonstra até que ponto o aparelho já consegue desviar os propósitos dos fotógrafos para os fins programados. A função de toda crítica fotográfica seria, precisamente, revelar o desvio das intenções humanas em prol dos aparelhos. Não dispomos ainda de uma tal crítica da fotografia, por razões que serão discutidas nos próximos capítulos.

Confesso que o presente capítulo, embora se chame “A fotografia”, não considerou algumas das mais importantes características da fotografia. Minha desculpa é que seu propósito era outro: abrir caminho para o deciframento de fotografias. Resumo, pois, o que pretendi dizer: fotografias são imagens técnicas que transcodificam conceitos em superfícies. Decifrá-las é descobrir o que os conceitos significam. Isto é complicado, porque na fotografia se amalgamam duas intenções codificadoras: a do fotógrafo e a do aparelho. O fotógrafo visa eternizar-se nos outros por intermédio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade através das fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeiçoar-se. A fotografia é, pois, mensagem que articula ambas as intenções codificadoras. Enquanto não existir crítica fotográfica que revele essa ambiguidade do código fotográfico, a intenção do aparelho prevalecerá sobre a intenção human
a.


continua pág 26...

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SOBRE O AUTOR 
na edição brasileira de 1985


Nascido em Praga em 1920, Vilém Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolíngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para São Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Linguística e Filosofia foram publicados 1957 no “Suplemento Literário” d’O Estado de São Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicação na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministério das Relações Exteriores para cooperação cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminários e conferências no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espaço em jornal par escrever crônicas diárias sobre filosofia do cotidiano (“Posto Zero”, da Folha de São Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itália e, em 1976, para a França, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e França. Publicou os livros: Língua e Realidade (São Paulo, Herder, 1963); A História do Diabo (São Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (São Paulo, Comissão Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifié (Paris, Institut de l’Enviroment, 1972); Naturalmente (São Paulo, Duas Cidades, 1979); Pós – História (São Paulo, Duas Cidades, 1982); Für eine Philosophie der Fotografie (Göttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Göttingen, European Photography, 1985).




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Flusser, Vilém, 1920 – 
Filosofia da caixa preta – São Paulo : Hucitec, 1985. - 92 p. 

EDITORA HUCITEC
São Paulo, 1985
Direitos autorais 1983 de Vilém Flusser. Título do original alemão: Für eine Philosophie der Fotografie. Tradução do autor. Direitos de publicação em língua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 – 04602 – São Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319. 
Projeto gráfico: Estúdio Hucitec. 
Capa: Fred Jordan. 
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (5 - A Fotografia)
Flusser : Filosofia da Caixa Preta (6 - A Distribuição da Fotografia)

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pequena nota de rodapé...

Ontológico é um adjetivo que define tudo que diz respeito à ontologia, ou seja, que investiga a natureza da realidade e da existência.



terça-feira, 26 de julho de 2022

Moby Dick: 6 - A rua

Moby Dick



Herman Melville




6 - A rua


Se eu tinha ficado estupefato na primeira vez em que vi um indivíduo tão exótico quanto Queequeg circulando no meio de uma sociedade educada de uma cidade civilizada, essa estupefação logo se desvaneceu quando, em pleno dia, dei uma volta pelas ruas de New Bedford.
Em todos os portos importantes, as ruas junto às docas oferecem à vista tipos dos mais bizarros jamais descritos, chegados de terras distantes. Mesmo na Broadway e na Chestnut Street, os marujos Mediterrâneos às vezes esbarram nas damas assustadas; a Regent Street não é desconhecida de Lascares e Malaios; e em Bombaim, no jardim de Apolo, verdadeiros Ianques muitas vezes assustaram os nativos. Mas New Bedford supera Water Street e Wapping. Nestes últimos antros mencionados veem-se apenas marinheiros, mas em New Bedford encontram-se verdadeiros canibais papeando nas esquinas; realmente selvagens; muitos dos quais ainda levam carne sem batismo sobre os ossos. É uma visão muito estranha.
Mas, além dos nativos das ilhas Fiji, de Tonga, de Erromango, de Pannan e de Brigh, e, além dos espécimes selvagens das tripulações de baleeiros que vagueiam despreocupados pelas ruas, você vai ver outras cenas ainda mais curiosas, com certeza mais engraçadas. Toda semana chegam a esta cidade grupos de rapazes ainda inexperientes de New Hampshire e Vermont, todos sedentos de lucros e glórias na pescaria. Na maioria são rapagões robustos, que já desmataram bosques, e agora querem deixar o machado para empunhar a lança da baleia. Muitos desses rapazes estão verdes como as Green Mountains. Em algumas coisas, você diria que têm apenas algumas horas de idade. Veja só! Aquele garoto virando a esquina. Está usando um chapéu de castor e fraque, com um cinto de marinheiro e uma faca embainhada. E lá vem outro usando um chapéu impermeável e capa de bombazina.
Nenhum janota da cidade se compara com um janota do campo – quero dizer, o janota verdadeiramente caipira –, um sujeito que nos dias de canícula faz a colheita de seus dois acres usando luvas de pelica para não bronzear as mãos. Ora, quando um desses janotas do campo resolve ter uma reputação ilustre e se engaja numa grande pesca da baleia, você precisa ver que coisas engraçadas ele faz chegando ao porto. Ao encomendar sua roupa de marinheiro, manda colocar botões de bronze nos coletes; presilhas nas calças de lona. Ai, pobre capiau! Com que violência essas presilhas irão se arrebentar no primeiro vendaval, quando fordes impelidos, junto com as presilhas, os botões e tudo o mais, goela abaixo da procela.
Mas não pense que esta famosa cidade tem apenas arpoadores, canibais e caipiras para mostrar aos visitantes. De jeito nenhum. Ainda assim, New Bedford é um lugar esquisito. Se não fôssemos nós, os baleeiros, esta extensão de terra ainda hoje seria um lugar em condições tão lamentáveis quanto a costa de Labrador. Algumas regiões limítrofes assustam por sua penúria. A própria cidade talvez seja o lugar mais caro para se viver de toda a Nova Inglaterra. É a terra do azeite, é verdade; mas não como Canaã; também é a terra do milho e do vinho. Mas o leite não corre pelas ruas, assim como tampouco as ruas são pavimentadas com ovos frescos na primavera. Mas apesar disso em nenhum lugar dos Estados Unidos se encontram casas mais luxuosas, parques e jardins mais opulentos, do que em New Bedford. De onde vieram? Como foram erigidos aqui, outrora resto macilento de uma região?
Veja os arpões emblemáticos de ferro naquelas mansões altaneiras, e sua pergunta será respondida. É isso mesmo; todas essas lindas casas e jardins floridos vieram dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. Foram arpoadas e carregadas para lá desde o fundo do mar. Poderia Herr Alexandre fazer proeza igual?
Dizem que os pais em New Bedford oferecem baleias como dotes para as suas filhas e presenteiam as sobrinhas com muitas marsopas. É preciso ir a New Bedford para assistir a um casamento ilustre; pois dizem que há reservatórios de óleo em todas as casas, e que todas as noites queimam sem economizar velas de espermacete.
Durante o verão a cidade é muito agradável; repleta de belos plátanos – longas avenidas verdes e douradas. Em agosto, lá no alto, as maravilhosas e majestosas castanheiras, como candelabros, oferecem ao transeunte seus cones afilados e eretos de flores congregadas. Tão onipotente é a arte que em vários bairros de New Bedford sobrepôs terraços de flores em estéreis refugos de rochas, descartadas no último dia da criação.
E as mulheres de New Bedford, essas florescem como suas próprias rosas vermelhas. Mas as rosas só florescem no verão, enquanto o carmim de suas faces é perene como a luz do sol no sétimo céu. Em nenhum outro lugar encontrarás flores assim, exceto em Salem, onde dizem que as moças exalam certo almíscar que os marinheiros apaixonados sentem a milhas do litoral, como se estivessem se aproximando das perfumadas Molucas e não das areias puritanas.


Continua na página 46...

Moby Dick: 3.2 - A Estalagem do Jato 
Moby Dick: 4 - A colcha
Moby Dick: 5 - Café-da-manhã
Moby Dick: 6 - A rua
Moby Dick: 7 - A Capela

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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com o quê se identifica?