sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (6a) - a vila de Liébediev

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

6.

     Não sendo grande, a vila de Liébediev era confortável e até bonita. A parte a ser alugada fora pintada recentemente. Pela varanda bastante larga, situada na frente da casa, tinham sido colocados grandes caixotes pintados de verde com pés de laranjeiras, limoeiros e jasmineiros, o que na opinião de Liébediev tornava a aparência ainda mais sedutora. Quando comprara a casa já encontrara algumas dessas árvores, tendo ficado tão encantado com o efeito que elas produziam, que resolveu, na primeira oportunidade, comprar mais algumas, em leilão. Depois que todas as plantas foram trazidas para a vila e colocadas nos lugares definitivos, Liébediev, todos os dias, descia uma porção de vezes os degraus da varanda para ir admirar lá da rua o efeito. E de cada vez aumentava, mentalmente, O preço que decidira pedir ao futuro locatário.
     O príncipe, alquebrado, deprimido e fisicamente incapacitado, dera-se bem com a transferência para a vila. Já no dia de sua chegada a Pávlovsk, isto é, três dias depois do ataque, parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro, as consequências do mal.  
     Agradavam-lhe as fisionomias que o assistiam durante aqueles dias, distraía-se com Kólia que o não largava por preço algum, simpatizava com a família de Liébediev. (O sobrinho deste fora embora para qualquer parte.) O próprio Liébediev não lhe era intolerável; quanto ao General Ívolguin, tratam-o bem ainda em Petersburgo ao lhe receber a visita. Na noite em que chegara a Pávlovsk ficara rodeado na varanda por uma porção de visitas. O primeiro a chegar foi Gánia, e tão mudado que o príncipe quase não o reconheceu: emagreceu muito naqueles seis meses. Vieram depois Vária e Ptítsin, que também possuíam uma vila em Pávlovsk. O General Ívolguin, esse então quase não largava a casa de Liébediev e não era de estranhar que, por assim dizer, fizesse parte dos cacarecos. Liébediev tentou conservá-lo apartado da vila, isto é, no seu pavilhão, querendo com isso evitar que o velho desse em visitar a todo instante o príncipe.
     O general e o príncipe tratavam-se como amigos velhos, como se se conhecessem desde muitos anos. Mesmo antes da transferência, durante aqueles três dias na residência antiga de Liébediev, o príncipe notara que este mais o general estavam frequentemente juntos, sempre absorvidos em longa conversa, às vezes exaltavam-se aos gritos, discutindo, abordando assuntos difíceis, até mesmo científicos, o que evidentemente soerguia Liébediev ao sétimo céu. Isso até dava a impressão de que o general lhe era indispensável.
     Depois da mudança para Pávlovsk, dera Liébediev em atenazar a família tanto quanto fazia com o general. A pretexto de não incomodar o príncipe não permitia que ninguém dos seus o fosse ver. Batia com o pé, corria atrás das filhas, escorraçava-as, inclusive Vera com a criancinha; e para isso bastava desconfiar que quisessem ir para a varanda onde o príncipe estava sempre, apesar de o príncipe lhe pedir que não agisse assim. Mas ele lhe explicava categoricamente em resposta a essas advertências.

- Em primeiro lugar, se o senhor as deixar fazer o que muito bem quiserem, não haverá respeito aqui; e, em segundo lugar, aqui não é o lugar delas.
- Mas por que isso? - protestava o príncipe. - Com essas atenções e vigilâncias você acaba me aborrecendo. É estúpido estar aqui sozinho, já lhe disse muitas vezes; e você me deprime muito mais com esse negócio de andar na ponta dos pés e de viver gesticulando.

     E o príncipe percebeu que, enquanto Liébediev escorraçava com todos os de casa, a pretexto de que o doente necessitava de sossego, ele, por sua vez estava vindo demais; e sempre abria primeiro a porta, metia a cabeça pelo vão, olhava em volta, como a certificar-se de que o príncipe lá estava ou não tinha saído, e então depois, muito devagar pé ante pé, em passinhos furtivos, se aproximava da poltrona a ponto de, às vezes, até assustar o seu inquilino. Estava sempre a perguntar se queria alguma coisa; e quando o Príncipe finalmente, lhe suplicava que o deixasse só, virava-se muito obedientemente pé ante pé, sem uma palavra, demandava a porta, gesticulando muito, como a querer dizer que apenas viera dar uma olhadela, mas que não diria palavra alguma absolutamente que já estava indo embora, que não voltaria. Ainda assim, dez minutos depois, ou, no máximo um quarto de hora, reaparecia.
     O fato de Kólia ter livre acesso perante o Príncipe era a fonte da mais profunda mortificação e até mesmo de indignação para Liébediev. E Kólia descobriu e contou que Liébedíev certa vez, ficara meia hora escutando à porta a conversa do Príncipe.

- Você afinal parece que se apropriou de mim definitivamente, conservando-me sob chave de cadeado - protestou o Príncipe, um dia. - Aqui, na vila, de qualquer maneira eu não quero que isso continue; e deixe que lhe diga, verei quem muito bem eu quiser e irei aonde me aprouver ir.
- Mas nem há a menor dúvida! - afirmou Liébediev com aquelas mãos que nunca ficavam paradas.

     O Príncipe correu-lhe o olhar, da cabeça aos pés.

- Você trouxe para cá o armariozinho que estava preso à cabeceira da sua cama? 
- Não trouxe, não. 
- Então você o deixou lá? 
- Não me foi possível trazê-lo, só se estragasse a parede arrancando-o. Estava encravado com muita firmeza. 
- E não lhe faz falta? 
- Há um aqui. É muito melhor. Já o achei ao comprar a vila. 
- Há!... Quem foi que esteve à minha procura cerca de uma hora, e você não deixou que me viesse ver? 
- Foi.., foi o general. De fato não consenti; ele não deve vir vê-lo. Eu tenho um grande respeito para com esse homem, Príncipe, é um grande homem. Garanto-lhe. 
- Pois bem, queria vê-lo. 
- Em todo o caso... é melhor, ilustríssimo príncipe, não o receber. 
- Mas por quê? Permite que lhe pergunte?! E por que é que você anda na ponta dos pés e se aproxima de mim sempre assim como se viesse sussurrar-me um segredo ao ouvido? 
- Sou abjeto, abjeto!... Sei que sou - respondeu Liébediev inesperadamente, ferindo o peito com vontade. - E não seria o general incômodo para o príncipe? Demasiado hospitaleiro? 
- Como, demasiado hospitaleiro?
- Sim, não atrapalharia? Para começar lhe digo, ele pretende morar comigo e acho que não o impedirei. Mas é o homem dos exageros, imediatamente se julga um parente! Já muitas vezes me tem querido afirmar e até provar nosso parentesco; parece que estamos ligados através de uns tantos casamentos. O senhor, por exemplo, segundo ele, é seu primo, em segundo grau também, pelo lado materno; ainda ontem esteve a me explicar isso. Se o senhor é primo dele, então o senhor e eu somos parentes também, ilustríssimo príncipe. Mas, deixemo-lo; trata-se de uma fraqueza insignificante; e me garantiu, há pouco, que, em toda a sua vida, desde quando era aspirante até o dia 11 de junho do ano passado, nunca se sentava para jantar com menos de duzentas pessoas à sua mesa. E prosseguiu afirmando mais que não se levantavam nunca da mesa, a ponto de jantarem, cearem e tomarem chá quinze horas seguidas durante as vinte e quatro horas do dia, e isso durante trinta anos a fio, sem interrupção, mal havendo tempo para a troca das toalhas da mesa. Se alguém se levantava, vinha outro e se sentava; e que nos dias santos o menos que havia de gente eram umas trezentas pessoas, sendo que no milésimo aniversário da fundação da Rússia ele contara setecentas pessoas. É uma mania, quase uma paixão; e o senhor sabe muito bem que tais asserções são péssimo sintoma. Chega-se a ter medo de conservar em casa um hóspede assim. De forma que estive pensando: não seria tal indivíduo uma companhia inconveniente para o príncipe e para mim?
- Mas você está em ótimas relações com ele, segundo me parece...
- Somos como irmãos. Diverte-me infinitamente! Vá lá que sejamos até parentes, já que ele insiste tanto nisso! Mesmo porque isso é uma honra para mim, pois com toda essa história de banquetes de duzentos talheres e comemorações do milésimo aniversário da Rússia, acabei me convencendo de que ele é de fato uma personalidade notável! E olhe que não estou a fazer piada! O príncipe referiu-se ainda há pouco a segredos; isto é que estou vindo a todo instante como se tivesse algum segredo a contar... Pois olhe que acertou. Certa pessoa... muito sua conhecida, ainda agora mesmo mandou dizer que tem muito empenho em obter uma entrevista com o senhor.., mas em segredo. 
- Em segredo, por quê? De modo algum. Irei hoje mesmo ver essa pessoa, se é que você assim o quer. 
- Eu? Eu não tenho nada com isso, absolutamente! - e Liébediev abriu as mãos para os lados, protestando. - Naturalmente se essa pessoa pede segredo é porque teme alguma coisa. Mas não aquilo que o senhor pensa. Por falar nisso, quer saber de outra coisa? O monstro vem todos os dias perguntar como vai passando o senhor! 
- Deu você em falar tanto de “monstro” que já ando desconfiado. 
- Não precisa desconfiar... Não precisa absolutamente desconfiar! - disse Liébediev querendo logo desistir do assunto. - Apenas lhe quero dar a entender que essa pessoa não está com receio de ninguém e sim de uma certa coisa, o que é muito diferente, muitíssimo diferente. 
- Ora bem, de quê? Diga logo! - perguntou e exigiu o príncipe, com impaciência, olhando para os misteriosos trejeitos de Liébediev. 
- Isso agora é segredo! - e Liébediev riu. 
- Segredo? Por quê? De quem? 
- Não digo. Pois o príncipe ainda agora mesmo não zangou comigo por eu estar aparecendo aqui a cada instante com ares de quem quer contar um segredo? E não me proibiu, não me escorraçou? - e Liébediev, gozando de modo total o fato de haver conseguido excitar a curiosidade do seu ouvinte, levando-o a uma dolorosa impaciência, concluiu de repente: - A tal pessoa está com medo de Agláia Ivánovna. 

     O príncipe ficou sério e se manteve calado durante mais de um minuto, até que disse:

- Meu caro Liébediev, desisto da sua vila. Onde está Gavríl Ardaliónovitch? Onde está o casal Ptítsin? Você também os seqüesfrou? 
- Eles virão! Virão! E, além deles, o General Ívolguin, também. Vou abrir as portas e vou chamar também as minhas filhas. Todos, todos, todos, imediatamente, imediatamente! - sussurrou Liébedíev, amedrontadíssimo, agitando os braços e correndo de uma porta para outra.

     Bem nesse momento, Kólia, vindo da rua, entrou pela varanda e anunciou que alguns amigos - a Sra. Epantchiná e as suas tres filhas - vinham a caminho para visitá-lo.

- Devo deixar entrar os Ptítsin e Gavríl Ardaliónovitch, caso venham, ou não devo? E o general, faço-o entrar até aqui, ou não? - dizia Liébediev. dando pulinhos, excitadíssimo com as notícias.
- Por que não? Deixe entrar quem quiser. Devo-lhe observar. Liébediev, que você adotou uma atitude errada para comigo desde o começo. Você está se equivocando sem parar, sempre. Eu não tenho a menor razão para estar me escondendo de quem quer que seja. - e o príncipe sorriu, ante o que Liébediev achou que também devia rir. 

     Malgrado a agitação em que estava, demonstrava extrema satisfação. As notícias trazidas por Kólia eram reais. Tinha vindo apenas alguns passos na frente dos Epantchín a fim de anunciar a chegada deles; tanto assim que as visitas chegaram ao mesmo tempo, vindas de ambos os lados, os Epantchín surgindo da rua, e os Ptítsin, Gánia e o General Ívolguin lá de dentro. Os Epantchín só agora tinham sabido por Kólia que o príncipe estava doente e que se achava em Pávlovsk.
     Até então a Sra. Epantchiná se mantivera em angustiosa perplexidade. Dois dias antes o general mostrara à família o cartão deixado pelo príncipe. A vista desse cartão acordou em Lizavéta Prokófievna a firme convicção de que o príncipe não tardaria em vir visitá-los em Pávlovsk. Em vão as filhas lhe garantiram que um homem que passara seis meses sem escrever não haveria de se apressar agora e que, com certeza, não lhe faltava com que se entreter, e bastante, em Petersburgo, afora eles. Como poderiam, pois, saber dele? A generala zangou-se seriamente com tais observações e quis até apostar como o príncipe apareceria no dia seguinte, no máximo, mesmo que fosse um pouco tarde e atrasado! No dia seguinte puseram-se a esperá-lo a manhã inteira; esperaram-no para jantar, para o serão, e quando começou a escurecer Lizavéta Prokófievna desandou a implicar com tudo, a brigar com todo o mundo, não fazendo, é lógico, enquanto isso, a menor alusão ao príncipe. Tampouco no terceiro dia foi dita uma palavra sequer, a respeito dele. Quando, ao jantar, Agláia caiu na asneira de observar que mamãe estava furiosa porque o príncipe não tinha vindo, ao que o pai imediatamente redarguira não ser sua a culpa, Lizavéta Prokófievna se levantou da mesa e saiu, encolerizada.
     Por fim, lá pela noitinha, Kólia chegou e fez uma completa descrição das aventuras do príncipe, pelo menos até onde sabia. Lizavéta Prokófievna ficou triunfante, mas Kólia apanhou uma boa raspança: “Você se gruda aqui dias e dias seguidos e a gente tem de aguentá-lo, e você podia ao menos nos ter participado isso tudo, já que ele não se achava capaz de vir”. Kólia esteve a ponto de se queimar com a expressão “e a gente tem de aguentá-lo”, mas adiou isso para uma ocasião mais propícia; se a frase não tivesse sido tão ofensiva, a teria talvez desculpado inteiramente, pois ficara muito contente com a agitação e a ansiedade de Lizavéta Prokófievna ao saber da doença do príncipe.
     Começou ela a insistir sem parar na necessidade de mandar vir uma celebridade médica de Petersburgo, a cuja procura seria bom mandar logo um portador; e que fosse médico célebre deveras e que viesse logo pelo primeiro trem. Mas as filhas a dissuadiram. Não quiseram, contudo, ficar atrás de sua mãe quando esta de repente resolveu ir visitar o doente.

- Pois se ele está em seu leito de morte - dissera Lizavéta Prokófievna, toda zonza - por que estarmos com cerimônias. Trata-se de um amigo da família, ou não? 
- Mas não fica bem a gente ir correndo, sem saber direito como ele está - observara Agláia. 
- Muito bem; então não venham. E até fazem bem, pois do contrário, se Evguénii Pávlovitch chegar, não terá ninguém que o receba.

     A tais palavras, naturalmente, Agláia saiu logo com os demais. Aliás mesmo sem essas palavras, ela agiria do mesmo modo. 
     O Príncipe Chtch... que estava sentado com Adelaída, ante essa conversa logo concordou em acompanhá-las. Tinha-se interessado muito pelo príncipe, ao ouvir falar dele antes, logo que travara relações com os Epantchín. Pareceu-lhe até que o conhecia, que se tinham encontrado alhures, ultimamente, e que tinham passado uma noite Juntos em uma cidadezinha do interior, três meses antes. De fato o Príncipe Chtch... lhes contou uma porção de coisas relativas ao príncipe e se referiu muito amistosamente a ele; era, pois, com verdadeiro prazer que o ia visitar.  
     O General Epantchín não se áchava em casa essa tarde; quanto a Evguénii Pávlovitch, estava demorando um pouco.
     A vila de Liébediev não ficava a mais do que trezentos passos. Lizavéta Prokófievna ficou logo desapontada de encontrar um grupo de gente em visita ao príncipe, sem falar no fato de entre essa gente haver umas duas ou três pessoas com quem positivamente embirrava. O seu segundo desaponto foi a surpresa de encontrar um jovem com a evidente aparência de estar gozando perfeita saúde, todo janota, que lhe veio ao encontro muito risonho, em vez do doente que contara ir deparar em um leito de morte.
     Instantaneamente estacou, admirada, proporcionando intenso prazer a Kólia que bem poderia ter explicado, antes de saírem, que ninguém estava a morrer e que não se tratava de nenhum caso de leito de morte. Mas não o fizera justamente porque manhosamente antevía a raiva da Sra. Epantchiná quando, conforme ele já contava, desse com o príncipe, por quem tinha real afeição, em perfeita saúde. Queria assim lhe gozar a cólera. Kólia, de fato, só fazia disparates, tanto em falar alto as suas opiniões, como em sempre atiçar a irritação de Lizavéta Prokófievna. Estava sempre às turras com ela e, muitas vezes, de modo muito malicioso, apesar da estima que um tinha pelo outro.

- Não perde por esperar, meu amiguinho, não se precipite! Não gaste à toa o seu trunfo - avisou-o Lizavéta Prokófievna. sentando-se na poltrona que o príncipe lhe ajeitava.

O Idiota: Segunda Parte (6a) - a vila de Liébediev
___________________ 


___________________


Nenhum comentário:

Postar um comentário