O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
6.
Não sendo grande, a vila de Liébediev era confortável e até bonita. A parte a ser alugada fora pintada recentemente. Pela varanda bastante larga, situada na frente da casa, tinham sido colocados grandes caixotes pintados de verde com pés de laranjeiras, limoeiros e jasmineiros, o que na opinião de Liébediev tornava a aparência ainda mais sedutora. Quando comprara a casa já encontrara algumas dessas árvores, tendo ficado tão encantado com o efeito que elas produziam, que resolveu, na primeira oportunidade, comprar mais algumas, em leilão. Depois que todas as plantas foram trazidas para a vila e colocadas nos lugares definitivos, Liébediev, todos os dias, descia uma porção de vezes os degraus da varanda para ir admirar lá da rua o efeito. E de cada vez aumentava, mentalmente, O preço que decidira pedir ao futuro locatário.
O príncipe,
alquebrado, deprimido e fisicamente incapacitado, dera-se bem com a
transferência para a vila. Já no dia de sua chegada a Pávlovsk, isto é, três dias
depois do ataque, parecia estar bem, embora sentisse ainda, por dentro, as
consequências do mal.
Agradavam-lhe as fisionomias que o assistiam durante
aqueles dias, distraía-se com Kólia que o não largava por preço algum,
simpatizava com a família de Liébediev. (O sobrinho deste fora embora para
qualquer parte.) O próprio Liébediev não lhe era intolerável; quanto ao General
Ívolguin, tratam-o bem ainda em Petersburgo ao lhe receber a visita. Na noite
em que chegara a Pávlovsk ficara rodeado na varanda por uma porção de visitas.
O primeiro a chegar foi Gánia, e tão mudado que o príncipe quase não o
reconheceu: emagreceu muito naqueles seis meses. Vieram depois Vária e
Ptítsin, que também possuíam uma vila em Pávlovsk. O General Ívolguin, esse
então quase não largava a casa de Liébediev e não era de estranhar que, por
assim dizer, fizesse parte dos cacarecos. Liébediev tentou conservá-lo apartado
da vila, isto é, no seu pavilhão, querendo com isso evitar que o velho desse em
visitar a todo instante o príncipe.
O general e o príncipe tratavam-se como
amigos velhos, como se se conhecessem desde muitos anos. Mesmo antes da
transferência, durante aqueles três dias na residência antiga de Liébediev, o
príncipe notara que este mais o general estavam frequentemente juntos, sempre
absorvidos em longa conversa, às vezes exaltavam-se aos gritos, discutindo,
abordando assuntos difíceis, até mesmo científicos, o que evidentemente
soerguia Liébediev ao sétimo céu. Isso até dava a impressão de que o general
lhe era indispensável.
Depois da mudança para Pávlovsk, dera Liébediev em
atenazar a família tanto quanto fazia com o general. A pretexto de não incomodar
o príncipe não permitia que ninguém dos seus o fosse ver. Batia com o pé, corria
atrás das filhas, escorraçava-as, inclusive Vera com a criancinha; e para isso
bastava desconfiar que quisessem ir para a varanda onde o príncipe estava
sempre, apesar de o príncipe lhe pedir que não agisse assim. Mas ele lhe
explicava categoricamente em resposta a essas advertências.
- Em primeiro
lugar, se o senhor as deixar fazer o que muito bem quiserem, não haverá respeito
aqui; e, em segundo lugar, aqui não é o lugar delas.
- Mas por que isso? - protestava o príncipe. - Com essas atenções e vigilâncias
você acaba me aborrecendo. É estúpido estar aqui sozinho, já lhe disse muitas
vezes; e você me deprime muito mais com esse negócio de andar na ponta dos
pés e de viver gesticulando.
E o príncipe percebeu que, enquanto Liébediev
escorraçava com todos os de casa, a pretexto de que o doente necessitava de
sossego, ele, por sua vez estava vindo demais; e sempre abria primeiro a porta,
metia a cabeça pelo vão, olhava em volta, como a certificar-se de que o príncipe
lá estava ou não tinha saído, e então depois, muito devagar pé ante pé, em
passinhos furtivos, se aproximava da poltrona a ponto de, às vezes, até assustar o
seu inquilino. Estava sempre a perguntar se queria alguma coisa; e quando o
Príncipe finalmente, lhe suplicava que o deixasse só, virava-se muito
obedientemente pé ante pé, sem uma palavra, demandava a porta, gesticulando
muito, como a querer dizer que apenas viera dar uma olhadela, mas que não
diria palavra alguma absolutamente que já estava indo embora, que não voltaria.
Ainda assim, dez minutos depois, ou, no máximo um quarto de hora, reaparecia.
O fato de Kólia ter livre acesso perante o Príncipe era a fonte da mais profunda
mortificação e até mesmo de indignação para Liébediev. E Kólia descobriu e
contou que Liébedíev certa vez, ficara meia hora escutando à porta a conversa
do Príncipe.
- Você afinal parece que se apropriou de mim definitivamente,
conservando-me sob chave de cadeado - protestou o Príncipe, um dia. - Aqui, na
vila, de qualquer maneira eu não quero que isso continue; e deixe que lhe diga,
verei quem muito bem eu quiser e irei aonde me aprouver ir.
- Mas nem há a
menor dúvida! - afirmou Liébediev com aquelas mãos que nunca ficavam
paradas.
O Príncipe correu-lhe o olhar, da cabeça aos pés.
- Você trouxe para cá o armariozinho que estava preso à cabeceira da sua
cama?
- Não trouxe, não.
- Então você o deixou lá?
- Não me foi possível trazê-lo, só se estragasse a parede arrancando-o. Estava
encravado com muita firmeza.
- E não lhe faz falta?
- Há um aqui. É muito melhor. Já o achei ao comprar a vila.
- Há!... Quem foi
que esteve à minha procura cerca de uma hora, e você não deixou que me viesse
ver?
- Foi.., foi o general. De fato não consenti; ele não deve vir vê-lo. Eu tenho um
grande respeito para com esse homem, Príncipe, é um grande homem. Garanto-lhe.
- Pois bem, queria vê-lo.
- Em todo o caso... é melhor, ilustríssimo príncipe, não
o receber.
- Mas por quê? Permite que lhe pergunte?! E por que é que você anda na ponta
dos pés e se aproxima de mim sempre assim como se viesse sussurrar-me um
segredo ao ouvido?
- Sou abjeto, abjeto!... Sei que sou - respondeu Liébediev inesperadamente,
ferindo o peito com vontade. - E não seria o general incômodo para o príncipe? Demasiado hospitaleiro?
- Como, demasiado hospitaleiro?
- Sim, não atrapalharia? Para começar lhe digo, ele pretende morar comigo e
acho que não o impedirei. Mas é o homem dos exageros, imediatamente se julga
um parente! Já muitas vezes me tem querido afirmar e até provar nosso
parentesco; parece que estamos ligados através de uns tantos casamentos. O
senhor, por exemplo, segundo ele, é seu primo, em segundo grau também, pelo
lado materno; ainda ontem esteve a me explicar isso. Se o senhor é primo dele,
então o senhor e eu somos parentes também, ilustríssimo príncipe. Mas,
deixemo-lo; trata-se de uma fraqueza insignificante; e me garantiu, há pouco,
que, em toda a sua vida, desde quando era aspirante até o dia 11 de junho do ano
passado, nunca se sentava para jantar com menos de duzentas pessoas à sua
mesa. E prosseguiu afirmando mais que não se levantavam nunca da mesa, a
ponto de jantarem, cearem e tomarem chá quinze horas seguidas durante as
vinte e quatro horas do dia, e isso durante trinta anos a fio, sem interrupção, mal
havendo tempo para a troca das toalhas da mesa. Se alguém se levantava, vinha
outro e se sentava; e que nos dias santos o menos que havia de gente
eram umas trezentas pessoas, sendo que no milésimo aniversário da fundação
da Rússia ele contara setecentas pessoas. É uma mania, quase uma paixão; e o
senhor sabe muito bem que tais asserções são péssimo sintoma. Chega-se a ter
medo de conservar em casa um hóspede assim. De forma que estive pensando:
não seria tal indivíduo uma companhia inconveniente para o príncipe e para
mim?
- Mas você está em ótimas relações com ele, segundo me parece...
- Somos
como irmãos. Diverte-me infinitamente! Vá lá que sejamos até parentes, já que
ele insiste tanto nisso! Mesmo porque isso é uma honra para mim, pois com toda
essa história de banquetes de duzentos talheres e comemorações do milésimo
aniversário da Rússia, acabei me convencendo de que ele é de fato uma
personalidade notável! E olhe que não estou a fazer piada! O príncipe referiu-se
ainda há pouco a segredos; isto é que estou vindo a todo instante como se tivesse
algum segredo a contar... Pois olhe que acertou. Certa pessoa... muito sua
conhecida, ainda agora mesmo mandou dizer que tem muito empenho em obter
uma entrevista com o senhor.., mas em segredo.
- Em segredo, por quê? De
modo algum. Irei hoje mesmo ver essa pessoa, se é que você assim o quer.
- Eu? Eu não tenho nada com isso, absolutamente! - e Liébediev abriu as mãos
para os lados, protestando. - Naturalmente se essa pessoa pede segredo é porque
teme alguma coisa. Mas não aquilo que o senhor pensa. Por falar nisso, quer
saber de outra coisa? O monstro vem todos os dias perguntar como vai passando
o senhor!
- Deu você em falar tanto de “monstro” que já ando desconfiado.
- Não precisa
desconfiar... Não precisa absolutamente desconfiar! - disse Liébediev querendo
logo desistir do assunto. - Apenas lhe quero dar a entender que essa pessoa não
está com receio de ninguém e sim de uma certa coisa, o que é muito diferente,
muitíssimo diferente.
- Ora bem, de quê? Diga logo! - perguntou e exigiu o
príncipe, com impaciência, olhando para os misteriosos trejeitos de Liébediev.
-
Isso agora é segredo! - e Liébediev riu.
- Segredo? Por quê? De quem?
- Não
digo. Pois o príncipe ainda agora mesmo não zangou comigo por eu estar
aparecendo aqui a cada instante com ares de quem quer contar um segredo? E
não me proibiu, não me escorraçou? - e Liébediev, gozando de modo total o fato
de haver conseguido excitar a curiosidade do seu ouvinte, levando-o a uma
dolorosa impaciência, concluiu de repente: - A tal pessoa está com medo de
Agláia Ivánovna.
O príncipe ficou sério e se manteve calado durante mais de um minuto,
até que disse:
- Meu caro Liébediev, desisto da sua vila. Onde está Gavríl Ardaliónovitch? Onde
está o casal Ptítsin? Você também os seqüesfrou?
- Eles virão! Virão! E, além
deles, o General Ívolguin, também. Vou abrir as portas e vou chamar também as
minhas filhas. Todos, todos, todos, imediatamente, imediatamente! - sussurrou
Liébedíev, amedrontadíssimo, agitando os braços e correndo de uma porta para
outra.
Bem nesse momento, Kólia, vindo da rua, entrou pela varanda e anunciou
que alguns amigos - a Sra. Epantchiná e as suas tres filhas - vinham a caminho
para visitá-lo.
- Devo deixar entrar os Ptítsin e Gavríl Ardaliónovitch, caso venham, ou não
devo? E o general, faço-o entrar até aqui, ou não? - dizia Liébediev. dando
pulinhos, excitadíssimo com as notícias.
- Por que não? Deixe entrar quem quiser.
Devo-lhe observar. Liébediev, que você adotou uma atitude errada para comigo
desde o começo. Você está se equivocando sem parar, sempre. Eu não tenho a
menor razão para estar me escondendo de quem quer que seja. - e o príncipe
sorriu, ante o que Liébediev achou que também devia rir.
Malgrado a agitação
em que estava, demonstrava extrema satisfação.
As notícias trazidas por Kólia eram reais. Tinha vindo apenas alguns passos na
frente dos Epantchín a fim de anunciar a chegada deles; tanto assim que as visitas
chegaram ao mesmo tempo, vindas de ambos os lados, os Epantchín surgindo da
rua, e os Ptítsin, Gánia e o General Ívolguin lá de dentro. Os Epantchín só agora
tinham sabido por Kólia que o príncipe estava doente e que se achava em
Pávlovsk.
Até então a Sra. Epantchiná se mantivera em angustiosa perplexidade. Dois dias
antes o general mostrara à família o cartão deixado pelo príncipe. A vista desse
cartão acordou em Lizavéta Prokófievna a firme convicção de que o príncipe
não tardaria em vir visitá-los em Pávlovsk. Em vão as filhas lhe garantiram que
um homem que passara seis meses sem escrever não haveria de se apressar
agora e que, com certeza, não lhe faltava com que se entreter, e bastante, em
Petersburgo, afora eles. Como poderiam, pois, saber dele? A generala zangou-se
seriamente com tais observações e quis até apostar como o príncipe apareceria
no dia seguinte, no máximo, mesmo que fosse um pouco tarde e atrasado! No dia
seguinte puseram-se a esperá-lo a manhã inteira; esperaram-no para jantar, para
o serão, e quando começou a escurecer Lizavéta
Prokófievna desandou a implicar com tudo, a brigar com todo o mundo, não
fazendo, é lógico, enquanto isso, a menor alusão ao príncipe. Tampouco no
terceiro dia foi dita uma palavra sequer, a respeito dele. Quando, ao jantar,
Agláia caiu na asneira de observar que mamãe estava furiosa porque o príncipe
não tinha vindo, ao que o pai imediatamente redarguira não ser sua a culpa,
Lizavéta Prokófievna se levantou da mesa e saiu, encolerizada.
Por fim, lá pela
noitinha, Kólia chegou e fez uma completa descrição das aventuras do príncipe,
pelo menos até onde sabia. Lizavéta Prokófievna ficou triunfante, mas Kólia
apanhou uma boa raspança: “Você se gruda aqui dias e dias seguidos e a gente
tem de aguentá-lo, e você podia ao menos nos ter participado isso tudo, já que ele
não se achava capaz de vir”. Kólia esteve a ponto de se queimar com a
expressão “e a gente tem de aguentá-lo”, mas adiou isso para uma ocasião mais
propícia; se a frase não tivesse sido tão ofensiva, a teria talvez desculpado
inteiramente, pois ficara muito contente com a agitação e a ansiedade de
Lizavéta Prokófievna ao saber da doença do príncipe.
Começou ela a insistir sem
parar na necessidade de mandar vir uma celebridade médica de Petersburgo, a
cuja procura seria bom mandar logo um portador; e que fosse médico célebre
deveras e que viesse logo pelo primeiro trem. Mas as filhas a dissuadiram. Não
quiseram, contudo, ficar atrás de sua mãe quando esta de repente resolveu ir
visitar o doente.
- Pois se ele está em seu leito de morte - dissera Lizavéta
Prokófievna, toda zonza - por que estarmos com cerimônias. Trata-se de um
amigo da família, ou não?
- Mas não fica bem a gente ir correndo, sem saber
direito como ele está - observara Agláia.
- Muito bem; então não venham. E até fazem bem, pois do contrário, se Evguénii
Pávlovitch chegar, não terá ninguém que o receba.
A tais palavras, naturalmente,
Agláia saiu logo com os demais. Aliás mesmo sem essas palavras, ela agiria do
mesmo modo.
O Príncipe Chtch... que estava sentado com Adelaída, ante essa
conversa logo concordou em acompanhá-las. Tinha-se interessado muito pelo
príncipe, ao ouvir falar dele antes, logo que travara relações com os Epantchín.
Pareceu-lhe até que o conhecia, que se tinham encontrado alhures, ultimamente,
e que tinham passado uma noite Juntos em uma cidadezinha do interior, três
meses antes. De fato o Príncipe Chtch... lhes contou uma porção de coisas
relativas ao príncipe e se referiu muito amistosamente a ele; era, pois, com
verdadeiro prazer que o ia
visitar.
O General Epantchín não se áchava em casa essa tarde; quanto a
Evguénii Pávlovitch, estava demorando um pouco.
A vila de Liébediev não
ficava a mais do que trezentos passos. Lizavéta Prokófievna ficou logo
desapontada de encontrar um grupo de gente em visita ao príncipe, sem falar no
fato de entre essa gente haver umas duas ou três pessoas com quem
positivamente embirrava. O seu segundo desaponto foi a surpresa de encontrar
um jovem com a evidente aparência de estar gozando perfeita saúde, todo
janota, que lhe veio ao encontro muito risonho, em vez do doente que contara ir
deparar em um leito de morte.
Instantaneamente estacou, admirada,
proporcionando intenso prazer a Kólia que bem poderia ter explicado, antes de
saírem, que ninguém estava a morrer e que não se tratava de nenhum caso de
leito de morte. Mas não o fizera justamente porque manhosamente antevía a
raiva da Sra. Epantchiná quando, conforme ele já contava, desse com o príncipe,
por quem tinha real afeição, em perfeita saúde. Queria assim lhe gozar a cólera.
Kólia, de fato, só fazia disparates, tanto em falar alto as suas opiniões, como em
sempre atiçar a irritação de Lizavéta Prokófievna. Estava sempre às turras com
ela e, muitas vezes, de modo muito malicioso, apesar da estima que um tinha
pelo outro.
- Não perde por esperar, meu amiguinho, não se precipite! Não gaste
à toa o seu trunfo - avisou-o Lizavéta Prokófievna. sentando-se na poltrona que o
príncipe lhe ajeitava.
continua página 217...
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Segunda Parte
O Idiota: Segunda Parte (6a) - a vila de Liébediev
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