domingo, 26 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (8a) - Foi o príncipe

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

8.

     Foi o príncipe quem rompeu o silêncio:

- Eu não esperava por nenhum dos senhores. Tenho estado doente. Deve haver um mês solicitei a Gavríl Ardaliónovitch (e logo se voltou para Antíp Burdóvskii), conforme fiz saber especialmente ao senhor, que cuidasse do seu caso. Não quero dar a entender com isto que me oponho a uma explicação pessoal. Mas o senhor e os seus companheiros devem concordar comigo que em uma ocasião destas, com visitas que aqui estão... Bem. Sugiro que passemos para uma das salas, caso desejem ainda assim ter um colóquio comigo. Estou com pessoas amigas, aqui, e...  
- Bem vemos que amigos não lhe faltam - atalhou o sobrinho de Liébediev em tom de provocação, conquanto sem ousar erguer a voz -, mas permite que eu faça um reparo? É o seguinte: o senhor nos devia ter tratado com mais um pouco de consideração e não nos ter feito esperar duas horas na sua antecâmara. 
- O mesmo digo eu... Nem parece educação de príncipe. Afinal de contas... É o senhor porventura algum general?... Mas não sou seu criado! E... e... eu... e... - balbuciava Antíp Burdóvskii aos arrancos, excitadíssimo, os beiços trêmulos, a raiva lhe entrecortando ainda mais as palavras. Falando, parecia que estava explodindo ou se rasgando. Acabou por se atrapalhar tanto que no fim de umas quatro ou cinco elocuções já ninguém o entendia direito. 
- Pois se o homem é príncipe, rapazes! - advertiu-os por escárnio Ippolít com seu timbre de falsete. - Se eu fosse tratado assim - garantiu o campeão de boxe - ou melhor, se a coisa fosse diretamente comigo, eu, como um homem de honra... Ainda bem que o caso não é comigo, vim só acompanhar ali o Burdóvskii... 
- Senhores, somente ainda agora, não há sequer minutos, foi que vim a saber que estavam aqui - reiterou-lhes o príncipe.
- Não temos medo, príncipe, dos seus amigos, quaisquer que sejam eles, pois estamos no nosso direito - declarou outra vez o sobrinho de Liébediev. - E que direito tinha o senhor, deixe que lhe pergunte - tornou a guinchar Ippolít, cada vez mais excitado – de submeter o caso de Burdóvskii ao julgamento de seus amigos? Está mais que claro de antemão qual possa ser a opinião de seus amigos!

     O príncipe conseguiu uma brecha: 

- Caso o senhor não queira falar aqui, Sr. Burdóvskii, convido-o a passar para uma das salas. E torno a repetir que foi precisamente ainda agora mesmo que vim a saber que estavam aí...   
- Mas o senhor... não tem o direito.., não tem o direito... o direi... to! Por que chamou seus amigos?... Por que... se cercou... deles?... - gaguejou outra vez Burdóvskii encarando-o de modo ao mesmo tempo rude e desconfiado. E quanto mais desconfiava daquelas presenças mais se acalorava. – O senhor... não tem... esse di... di... direito!
 
     Uma vez pronunciadas estas palavras aos repelões, calou abruptamente, como se o acometesse uma súbita inibição. Fixando os olhos de míope, uns olhos salientes e injetados de sangue, em Míchkin, ficou como que hirto, em uma indignação muda, com o corpo em ângulo para a frente. A vista disso o próprio Príncipe, atarantado, não respondeu nada, ficando a contemplá-lo muito pasmo, sem prosseguir.
     Foi então que Lizavéta Prokófievna lhe disse, sem nenhuma aparente relação com aquela conjuntura:

- Escute! Olhe, Liév Nikoláievitch! Leia isto aqui. Há de interessá-lo.

     E lhe estendeu logo um semanário humorístico, mostrando um trecho com o dedo. E que, mal haviam aquelas visitas sido introduzidas, Liébediev dera uns pulinhos de lado até chegar perto de Lizavéta Prokófievna (de quem andava procurando cair em boas graças) e sem dizer nada extraíra do bolso lateral do casaco aquele jornaleco, que abriu diante dos olhos dela mostrando bem um trecho marcado a lápis de cor. Os poucos períodos que Lizavéta Prokófievna teve tempo de ler, além de surpreendê-la emocionaram-na fortemente. 
     O príncipe vacilou: 

- Em vez de ler isso agora diante de todos.., não seria melhor eu ler sozinho, logo mais.., depois? 
- Não, não! Deve ser lido alto. Leia você, Kólia! - e arrancando impacientemente o pasquim das mãos do príncipe, quase sem lhe haver dado tempo de o segurar, o entregou a Kólia. - Bem alto, para que todos ouçam.

     Lizavéta Prokófievna era uma criatura impulsiva e não havia quem lhe pudesse tolher os ímpetos. Em uma decisão lhe vindo, não tornava a refletir, levantava todas as âncoras e zarpava para o mar pouco se importando com o tempo. Iván Fiódorovitch mexeu-se, inquieto. Imediatamente todos ficaram perplexos, guardando. Kólia segurou o jornal e começou a ler alto o trecho que Liébediev, em um arremesso, veio mostrar qual era. 

FILHOS DE PROLETÁRIOS E REBENTOS DE NOBRES OU EPISÓDIOS DE UMA ESPOLIAÇÃO DE HOJE E DE SEMPRE PROGRESSO! REFORMA! JUSTIÇA!  

“Coisas bem estranhas se passam na nossa chamada Santa Rússia, nesta era de reformas e de grandes empresas, era de movimentos nacionais e de centenas de milhões de rublos drenados para o exterior, anualmente, era do encorajamento do comércio e da paralisação da indústria, etc., etc., já que nem é possível enumerar tudo, senhores. Portanto - vamos direito ao fato. Eis aqui uma especiosa anedota acerca de um rebento da nossa decadente nobreza (De Profundis!), um dos tais rebentos cujos avós se arruinaram na roleta, cujos pais se viram obrigados a servir como aspirantes e porta-bandeiras no exército e que, via de regra, morrem nas vésperas de ser denunciados pelo uso indébito dos dinheiros públicos, ao passo que os tais rebentos, isto é, os netos, como o herói da nossa história, ou crescem idiotas, ou se complicam em casas criminosas, sendo aliás absolvidos pelo júri que confia e acredita que se emendarão, ou então acabam perpetrando uma dessas burlas que fazem pasmar o público e desgraçam ainda mais esta nossa época já tão degradada. O rebento a que nos referimos, usando polainas como um forasteiro e tremendo de frio dentro de uma capa sem forro, chegou a uns seis meses a esta nossa Rússia, vindo da Suíça, onde estivera em tratamento por causa de uma idiotia (sic!). Cumpre aqui confessar que era um camarada de sorte e a tal ponto que - sem nada dizer quanto à interessante moléstia que o obrigou a se submeter a um tratamento na Suíça (imaginem lá se existe algum tratamento para a idiotia!) - poderia servir como ilustração do provérbio russo que diz: Isso de sorte é só para certa casta de gente! Deixado criança ainda com a morte do pai - consta ter este sido um tenente que morreu quando estava para ser julgado pelo repentino desaparecimento do dinheiro todo da companhia, vulgar peripécia ou consequência de jogo de cartas, agravado ainda por cima pelo uso excessivo de cnute no lombo dos seus subordinados (decerto os senhores se lembram ainda como isso era nos velhos tempos!) - foi o nosso baronete pegado e educado pela caridade de um riquíssimo latifundiário russo. Esse latifundiário russo - que aqui chamaremos P. - era o amo ou o senhor de quatro mil almas. (Sim, dispunha de quatro mil servos! Compreendem, senhores, o que isso significa? Eu não chego a aquilatar, tenho de ir a um dicionário ver o que quer dizer isso, porque essas coisas de outrora já não me entram no bestunto!) Tratava-se muito provavelmente de um desses mandriões desocupados que malbaratam a existência no estrangeiro. o verão nas estações de águas, o inverno no Château des Fleurs de Paris, sítios esses onde, no transcorrer de seus dias, deixam somas incríveis. Pode-se dizer com segurança que pelo menos um terço do tributo pago outrora pelos servos ia direitinho para as algibeiras do proprietário do Château des Fleurs de Paris (que sujeito afortunado!). Assim pois pôde o caridoso e disponível P. tratar do fidalgote como autêntico príncipe; contratou tutores, governantes (decerto bem bonitas) trazidas por ele pessoalmente de Paris. Mas o último rebento da nobre mansão era idiota. De nada valeu no caso a interferência de governantes oriundas do Château des Fleurs. Aos vinte anos o tal rebento não aprendera língua nenhuma, nem mesmo a sua nativa língua russa; quanto a esta última, em todo o caso isso ainda é desculpável. Por fim deu na veneta do feliz senhor de servos, P., que o idiota talvez recuperasse o juízo na Suíça. O ricaço imaginava que até a inteligência podia ser comprada, tanto mais na Suíça! Cinco anos entre as geleiras passou ele, sob os cuidados de um doutor célebre, nisto sendo gastos muitos milhares. 
O Idiota, é claro, não deixou de continuar idiotíssimo, mas pelo menos se tornou um ser humano, o que vale pouco, está-se vendo. P. morreu de repente, sem deixar testamento e com os negócios, como era de esperar, desorganizados. Irromperam inúmeros herdeiros vorazes que pouco se importaram com a tradição de latifundiários tomarem à sua conta, por vez de caridade, o tratamento de rebentos aristocráticos na Suíça, por causa de idiotia. O rebento, conquanto imbecil, lá deu um jeito de enganar o seu médico obtendo continuar a ser tratado grátis por mais dois anos, conforme nos atestaram, escondendo a notícia da morte de seu benfeitor. Mas o médico não era assim tão cretino como os seus clientes. Alarmado com a interrupção do encaixe cambial e principalmente com o apetite daquele paspalhão de vinte e cinco anos; abotoou- lhe umas polainas, presenteou-o com uma capa esburacada e caritativamente o recambiou de terceira classe nach Russland, desembaraçando-se do gajo. A sorte pareceu dar as costas ao nosso herói. Mas qual o quê! O fado que mata de fome províncias inteiras arremessou todas as suas dádivas sobre este aristocrata, nisso imitando aquela nuvem da fábula de Krilóv que passou intata por sobre os campos ressecados e foi chover em cima do oceano. Quase no momento exato de sua chegada a Petersburgo, um parente de sua mãe (pertencente sem dúvida a uma família de comerciantes) deu com o rabo na cerca, isto é... em Moscou! Um celibatário, negociante da velha guarda e “velho crente”, que deixou uma fortuna redonda de vários milhões em caixa forte. (Se ao menos fosse para mim e para os caros leitores!). E tudo foi parar, sem demandas, nas mãos do nosso rebento, aquele tal baronete que se fora curar de imbecilidade na Suíça! Bem, isso agora era uma toada mais fina! Uma chusma de amigos e conhecidos se ajuntou em volta do nosso barão de polainas que perseguia uma célebre beldade de fácil virtude. Melhorou as relações e, acima de tudo, era perseguido por perfeitos bandos de jovens donzelas esfomeadas e sedentas de matrimônio legítimo. E, com efeito, que poderia haver de melhor?! Um aristocrata, um milionário e um idiota... todas as qualidades juntas de uma só vez, um esposo que não se encontraria assim sem mais aquela, mesmo procurado com uma lanterna de Diógenes!”

- Isto.., isto ultrapassa a minha tolerância - bradou Iván Fiódorovitch, subindo ao cúmulo da indignação.
- Pare com isso, Kólia! - gritou o príncipe com voz suplicante. Ouviram-se exclamações.
- Leia! Leia, haja o que houver! - ordenou Lizavéta Prokófievna, evidentemente fazendo um desesperado esforço para continuar se contendo.  
- Príncipe, se o senhor faz parar a leitura. nós brigamos!

     Não havia outra solução. Kólia, inflamado, rubro, agitado, prosseguiu na leitura, com voz perturbada.

“Mas enquanto o nosso milionário feito às pressas flutuava, por assim dizer, no empíreo, uma nova revelação veio à cena. Certa manhã um visitante surgiu, com uma fisionomia serena, vestido modestamente, mas um homem de bem, evidentemente de tendências progressistas. Em uma linguagem cortês mas digna e sensata, em breves palavras lhe explicou a razão da sua visita. Tratava-se de um notável advogado. Recebera instruções de um certo moço e viera a seu mando. Este moço era, nem mais nem menos, o filho do falecido P., apesar de usar um outro nome. O libertino P. tinha, em sua mocidade, seduzido uma moça virtuosa, serva doméstica, mas de educação europeia (aproveitando- se, sem dúvida, daqueles direitos senhoriais dos tempos de servidão) e notando a próxima e inevitável consequência dessa ligação, se apressou em lhe arranjar. como marido, um certo homem honrado e de caráter que se ocupava em comércio e outros serviços, e que, havia muito, se apaixonara pela moça. Tratou logo o patrão de ajudar o jovem casal. Mas tal ajuda, dado o caráter nobre do marido, logo foi suspensa. O tempo passou e o barine pouco a pouco esqueceu a moça e o filho que ela tivera dele, vindo depois, como já é sabido, a morrer sem deixar nada explícito quanto a esse filho. Enquanto isso, esse seu filho, que crescia sob um outro nome, visto ter nascido depois de um casamento legítimo, tendo sido adotado devido ao honorabilíssimo caráter do esposo de sua mãe, esposo esse que, por sua vez, também veio a falecer, mais ou menos nesse mesmo tempo, se viu à mercê de seu próprio fado, com a mãe doente, de cama, padecendo, e isso em uma das mais afastadas províncias da Rússia. Ganhava a sua vida na capital, com o seu trabalho honrado de todos os dias, dando aulas em casas de famílias de negociantes. E, desta maneira, se foi aguentando, primeiramente na escola, e depois frequentando cursos de leitura proveitosa, tendo em mira o seu futuro adiantamento. - Mas o que é que se pode ganhar dando aulas a dez copeques por hora a meia dúzia de pobres, e ainda por cima com a progenitora de cama, inválida, a sustentar e cuja morte afinal de contas, lá em uma remota província, em nada lhe alterava a situação? E eis que se levanta, agora, a questão: qual devia ser, para o nosso pobre rebento, por justa decisão a tomar? Com toda a certeza o leitor esperaria que - ele dissesse a si mesmo: “Gozei toda a minha vida das mercês de P., algumas dezenas de milhares de rublos seguiram para a Suíça, por conta de minha educação, de minhas governantas e do meu tratamento como imbecil. E agora nado eu nos meus milhões, ao passo que o nobre filho de P. está gastando os seus altos talentos em dar lições, sem ser culpado do desregramento de seu libidinoso pai que o esqueceu. Tudo quanto foi gasto comigo devia ser gasto com ele. As enormes somas despendidas comigo, não são, nem eram, na realidade, minhas. O que houve foi um engano da fortuna; essas somas deviam ter ido para o filho de P., deviam ter sido gastas em benefício dele, e não no meu, como foi feito pelo fantástico capricho do frívolo e desmemoriado P. Se, porém, eu fosse nobre, delicado e justo, devia entregar metade da minha fortuna ao filho dele; mas, como antes de mais nada eu sou esperto, e estou mais do que farto de saber que não pode haver demanda judicial, absolutamente não darei a ele a metade dos meus milhões. Em todo o caso, seria vil e vergonhoso, da minha parte (o rebento esqueceu que mesmo isso não seria prudente), não devolver eu, agora, ao filho de as dezenas de milhares de rublos gastas por P. com a minha cretinice. Isso seria justo e direito! Pois que teria sido de mim se P. não me tivesse educado e tivesse olhado por seu filho, em lugar de mim?” 
“Mas não! Não é deste modo, próprio de cavalheiro, que tal gente encara essas coisas. A despeito das representações do advogado do jovem, o qual se encarregou dessa causa apenas por amizade e quase que contra a vontade do interessado, como que a força, a despeito de lhe serem apontadas quais as obrigações da honestidade, da honra, da justiça e mesmo da prudência, o paciente da Suíça permaneceu inflexível e - que é que o leitor está pensando? - tudo isso não é nada; e agora chegamos ao que é realmente imperdoável e que não pode ser desculpado sob rótulo de doença alguma! O interessante vem agora: este tal milionário, que já tinha aproveitado as polainas do professor, não pôde compreender que aquele nobre caráter que se matava dando aulas. não estava pedindo caridade, não estava pedindo auxílio, e sim pugnando pelo que de direito lhe era devido, muito embora não se tratasse de uma demanda judicial. Nem mesmo a isso recorreu, sendo os seus amigos que por conta própria a isso se obrigaram. Com ar majestoso, julgando com o poder dos seus milhões ser capaz de esmagar as pessoas impunemente, o nosso rebento tirou do bolso uma nota de cinquenta rublos e a mandou ao nosso excelente rapaz, em um gesto de caridade insultante. Sei que o leitor propende a não acreditar nisso. O leitor dana-se, sofre, solta exclamações de indignação; mas foi isso, leitor amigo, o que ele fez! O dinheiro, é lógico, lhe foi remetido de volta imediatamente. arremessado, por assim dizer, às suas fuças! Qual o recurso deixado então? Não cabe demanda judicial, só há um recurso: a publicidade. Esta história é, pois, apresentada ao público sob garantia de absoluta autenticidade. Um dos nossos mais conhecidos escritores humorísticos alinhavou um excelente epigrama sobre o caso e que merece destaque como rascunho da vida russa, tanto na província como na capital:

“Nem todo idiota é bocó: 
Vou provar esta asserção 
Citando um exemplo só. 

Com seus ataques insanos, 
Metido em um capotão, 
No espaço de cinco anos,

O bom Liév ficou 
Simulando ser bocó, 
Mas quando à Rússia voltou,

O nosso imbecil primário 
Achou prontinha uma herança! 
E o que é mais extraordinário,

Do estudante que logrou... 
Nem ao menos teve dó!... 
Este epigrama provou 

E ainda prova, por si só, 
Que este idiota Milionário 
Nada tinha de bocó!” 

O Idiota: Segunda Parte (8a) - Foi o príncipe
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