O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
8.
Foi o príncipe quem rompeu o silêncio:
- Eu não esperava por nenhum dos senhores. Tenho estado doente. Deve haver
um mês solicitei a Gavríl Ardaliónovitch (e logo se voltou para Antíp Burdóvskii),
conforme fiz saber especialmente ao senhor, que cuidasse do seu caso. Não
quero dar a entender com isto que me oponho a uma explicação pessoal. Mas o
senhor e os seus companheiros devem concordar comigo que em uma ocasião
destas, com visitas que aqui estão... Bem. Sugiro que passemos para uma das
salas, caso desejem ainda assim ter um colóquio comigo. Estou com pessoas
amigas, aqui, e...
- Bem vemos que amigos não lhe faltam - atalhou o sobrinho de Liébediev em
tom de provocação, conquanto sem ousar erguer a voz -, mas permite que eu
faça um reparo? É o seguinte: o senhor nos devia ter tratado com mais um pouco
de consideração e não nos ter feito esperar duas horas na sua antecâmara.
- O mesmo digo eu... Nem parece educação de príncipe. Afinal de contas... É o
senhor porventura algum general?... Mas não sou seu criado! E... e... eu... e... -
balbuciava Antíp Burdóvskii aos arrancos, excitadíssimo, os beiços trêmulos, a
raiva lhe entrecortando ainda mais as palavras. Falando, parecia que estava
explodindo ou se rasgando. Acabou por se atrapalhar tanto que no fim de umas
quatro ou cinco elocuções já ninguém o entendia direito.
- Pois se o homem é
príncipe, rapazes! - advertiu-os por escárnio Ippolít com seu timbre de falsete.
- Se eu fosse tratado assim - garantiu o campeão de boxe - ou melhor, se a coisa
fosse diretamente comigo, eu, como um homem de honra... Ainda bem que o
caso não é comigo, vim só acompanhar ali o Burdóvskii...
- Senhores, somente
ainda agora, não há sequer minutos, foi que vim a saber que estavam aqui -
reiterou-lhes o príncipe.
- Não temos medo, príncipe, dos seus amigos, quaisquer
que sejam eles, pois estamos no nosso direito - declarou outra vez o sobrinho de
Liébediev. - E que direito tinha o senhor, deixe que lhe pergunte - tornou a
guinchar Ippolít, cada vez mais excitado – de submeter o caso de Burdóvskii ao
julgamento de seus amigos? Está mais que claro de antemão qual possa ser a
opinião de seus amigos!
O príncipe conseguiu uma brecha:
- Caso o senhor não queira falar aqui, Sr. Burdóvskii, convido-o a passar para uma
das salas. E torno a repetir que foi precisamente ainda agora mesmo que vim a
saber que estavam aí...
- Mas o senhor... não tem o direito.., não tem o direito... o direi... to! Por que chamou seus amigos?... Por que... se cercou... deles?... - gaguejou outra vez Burdóvskii encarando-o de modo ao mesmo tempo rude e desconfiado. E quanto mais desconfiava daquelas presenças mais se acalorava. – O senhor... não tem... esse di... di... direito!
- Mas o senhor... não tem o direito.., não tem o direito... o direi... to! Por que chamou seus amigos?... Por que... se cercou... deles?... - gaguejou outra vez Burdóvskii encarando-o de modo ao mesmo tempo rude e desconfiado. E quanto mais desconfiava daquelas presenças mais se acalorava. – O senhor... não tem... esse di... di... direito!
Uma vez pronunciadas estas palavras aos repelões, calou abruptamente, como se
o acometesse uma súbita inibição. Fixando os olhos de míope, uns olhos salientes
e injetados de sangue, em Míchkin, ficou como que hirto, em uma indignação
muda, com o corpo em ângulo para a frente. A vista disso o próprio Príncipe,
atarantado, não respondeu nada, ficando a contemplá-lo muito pasmo, sem
prosseguir.
Foi então que Lizavéta Prokófievna lhe disse, sem nenhuma aparente relação
com aquela conjuntura:
- Escute! Olhe, Liév Nikoláievitch! Leia isto aqui. Há de interessá-lo.
E lhe
estendeu logo um semanário humorístico, mostrando um trecho com o dedo. E
que, mal haviam aquelas visitas sido introduzidas, Liébediev dera uns pulinhos de
lado até chegar perto de Lizavéta Prokófievna (de quem andava procurando cair
em boas graças) e sem dizer nada extraíra do bolso lateral do casaco aquele
jornaleco, que abriu diante dos olhos dela mostrando bem um trecho marcado a
lápis de cor. Os poucos períodos que Lizavéta Prokófievna teve tempo de ler,
além de surpreendê-la emocionaram-na fortemente.
O príncipe vacilou:
- Em vez de ler isso agora diante de todos.., não seria melhor eu ler sozinho, logo
mais.., depois?
- Não, não! Deve ser lido alto. Leia você, Kólia! - e arrancando
impacientemente o pasquim das mãos do príncipe, quase sem lhe haver dado
tempo de o segurar, o entregou a Kólia. - Bem alto, para que todos ouçam.
Lizavéta Prokófievna era uma criatura impulsiva e não havia quem lhe pudesse
tolher os ímpetos. Em uma decisão lhe vindo, não tornava a refletir,
levantava todas as âncoras e zarpava para o mar pouco se importando com o
tempo. Iván Fiódorovitch mexeu-se, inquieto. Imediatamente todos ficaram
perplexos, guardando. Kólia segurou o jornal e começou a ler alto o trecho que
Liébediev, em um arremesso, veio mostrar qual era.
FILHOS DE PROLETÁRIOS E REBENTOS DE NOBRES OU EPISÓDIOS DE
UMA ESPOLIAÇÃO DE HOJE E DE SEMPRE PROGRESSO! REFORMA!
JUSTIÇA!
O Idiota, é claro, não deixou de continuar idiotíssimo, mas pelo menos se tornou
um ser humano, o que vale pouco, está-se vendo. P. morreu de repente, sem
deixar testamento e com os negócios, como era de esperar, desorganizados.
Irromperam inúmeros herdeiros vorazes que pouco se importaram com a
tradição de latifundiários tomarem à sua conta, por vez de caridade, o tratamento
de rebentos aristocráticos na Suíça, por causa de idiotia. O rebento, conquanto
imbecil, lá deu um jeito de enganar o seu médico obtendo continuar a ser tratado
grátis por mais dois anos, conforme nos atestaram, escondendo a notícia da
morte de seu benfeitor. Mas o médico não era assim tão cretino como os seus
clientes. Alarmado com a interrupção do encaixe cambial e principalmente com
o apetite daquele paspalhão de vinte e cinco anos; abotoou- lhe umas polainas,
presenteou-o com uma capa esburacada e caritativamente o recambiou de
terceira classe nach Russland, desembaraçando-se do gajo. A sorte pareceu dar
as costas ao nosso herói. Mas qual o quê! O fado que mata de
fome províncias inteiras arremessou todas as suas dádivas sobre este
aristocrata, nisso imitando aquela nuvem da fábula de Krilóv que passou intata
por sobre os campos ressecados e foi chover em cima do oceano. Quase no
momento exato de sua chegada a Petersburgo, um parente de sua mãe
(pertencente sem dúvida a uma família de comerciantes) deu com o rabo na
cerca, isto é... em Moscou! Um celibatário, negociante da velha guarda e “velho
crente”, que deixou uma fortuna redonda de vários milhões em caixa forte. (Se
ao menos fosse para mim e para os caros leitores!). E tudo foi parar, sem
demandas, nas mãos do nosso rebento, aquele tal baronete que se fora curar de
imbecilidade na Suíça! Bem, isso agora era uma toada mais fina! Uma chusma
de amigos e conhecidos se ajuntou em volta do nosso barão de polainas que
perseguia uma célebre beldade de fácil virtude. Melhorou as relações e, acima
de tudo, era perseguido por perfeitos bandos de jovens donzelas esfomeadas e
sedentas de matrimônio legítimo. E, com efeito, que poderia haver de melhor?!
Um aristocrata, um milionário e um idiota... todas as qualidades juntas de uma só
vez, um esposo que não se encontraria assim sem mais aquela, mesmo
procurado com uma lanterna de Diógenes!”
- Isto.., isto ultrapassa a minha tolerância - bradou Iván Fiódorovitch, subindo ao
cúmulo da indignação.
- Pare com isso, Kólia! - gritou o príncipe com voz suplicante. Ouviram-se
exclamações.
- Leia! Leia, haja o que houver! - ordenou Lizavéta Prokófievna, evidentemente
fazendo um desesperado esforço para continuar se contendo.
- Príncipe, se o
senhor faz parar a leitura. nós brigamos!
Não havia outra solução. Kólia,
inflamado, rubro, agitado, prosseguiu na leitura, com voz perturbada.
“Mas enquanto o nosso milionário feito às pressas flutuava, por assim dizer, no
empíreo, uma nova revelação veio à cena. Certa manhã um visitante surgiu, com
uma fisionomia serena, vestido modestamente, mas um homem de bem,
evidentemente de tendências progressistas. Em uma linguagem cortês mas digna
e sensata, em breves palavras lhe explicou a razão da sua visita. Tratava-se de
um notável advogado. Recebera instruções de um certo moço e viera a seu
mando. Este moço era, nem mais nem menos, o filho do falecido P., apesar de
usar um outro nome. O libertino P. tinha, em sua mocidade, seduzido uma moça
virtuosa, serva doméstica, mas de educação europeia (aproveitando- se, sem
dúvida, daqueles direitos senhoriais dos tempos de servidão) e notando
a próxima e inevitável consequência dessa ligação, se apressou em lhe arranjar.
como marido, um certo homem honrado e de caráter que se ocupava em
comércio e outros serviços, e que, havia muito, se apaixonara pela moça. Tratou
logo o patrão de ajudar o jovem casal. Mas tal ajuda, dado o caráter nobre do
marido, logo foi suspensa. O tempo passou e o barine pouco a pouco esqueceu a
moça e o filho que ela tivera dele, vindo depois, como já é sabido, a morrer sem
deixar nada explícito quanto a esse filho. Enquanto isso, esse seu filho, que
crescia sob um outro nome, visto ter nascido depois de um casamento legítimo,
tendo sido adotado devido ao honorabilíssimo caráter do esposo de sua mãe,
esposo esse que, por sua vez, também veio a falecer, mais ou menos nesse
mesmo tempo, se viu à mercê de seu próprio fado, com a mãe doente, de cama,
padecendo, e isso em uma das mais afastadas províncias da Rússia. Ganhava a
sua vida na capital, com o seu trabalho honrado de todos os dias, dando aulas em
casas de famílias de negociantes. E, desta maneira, se foi aguentando,
primeiramente na escola, e depois frequentando cursos de leitura proveitosa,
tendo em mira o seu futuro adiantamento. - Mas o que é que se pode ganhar
dando aulas a dez copeques por hora a meia dúzia de pobres, e ainda por cima
com a progenitora de cama, inválida, a sustentar e cuja morte afinal de contas, lá
em uma remota província, em nada lhe alterava a situação? E eis que se levanta,
agora, a questão: qual devia ser, para o nosso pobre rebento, por justa decisão a
tomar? Com toda a certeza o leitor esperaria que - ele dissesse a si mesmo:
“Gozei toda a minha vida das mercês de P., algumas dezenas de milhares de
rublos seguiram para a Suíça, por conta de minha educação, de minhas
governantas e do meu tratamento como imbecil. E agora nado eu nos meus
milhões, ao passo que o nobre filho de P. está gastando os seus altos talentos em
dar lições, sem ser culpado do desregramento de seu libidinoso pai que o
esqueceu. Tudo quanto foi gasto comigo devia ser gasto com ele. As enormes
somas despendidas comigo, não são, nem eram, na realidade, minhas. O que
houve foi um engano da fortuna; essas somas deviam ter ido para o filho de P.,
deviam ter sido gastas em benefício dele, e não no meu, como foi feito pelo
fantástico capricho do frívolo e desmemoriado P. Se, porém, eu fosse nobre, delicado e justo, devia entregar metade da minha
fortuna ao filho dele; mas, como antes de mais nada eu sou esperto, e estou mais
do que farto de saber que não pode haver demanda judicial, absolutamente não
darei a ele a metade dos meus milhões. Em todo o caso, seria vil e vergonhoso,
da minha parte (o rebento esqueceu que mesmo isso não
seria prudente), não devolver eu, agora, ao filho de as dezenas de milhares de
rublos gastas por P. com a minha cretinice. Isso seria justo e direito! Pois que
teria sido de mim se P. não me tivesse educado e tivesse olhado por seu filho, em
lugar de mim?”
“Mas não! Não é deste modo, próprio de cavalheiro, que tal gente encara essas
coisas. A despeito das representações do advogado do jovem, o qual se
encarregou dessa causa apenas por amizade e quase que contra a vontade do
interessado, como que a força, a despeito de lhe serem apontadas quais as
obrigações da honestidade, da honra, da justiça e mesmo da prudência, o
paciente da Suíça permaneceu inflexível e - que é que o leitor está pensando? -
tudo isso não é nada; e agora chegamos ao que é realmente imperdoável e que
não pode ser desculpado sob rótulo de doença alguma! O interessante vem agora:
este tal milionário, que já tinha aproveitado as polainas do professor, não pôde
compreender que aquele nobre caráter que se matava dando aulas. não estava
pedindo caridade, não estava pedindo auxílio, e sim pugnando pelo que de direito
lhe era devido, muito embora não se tratasse de uma demanda judicial. Nem
mesmo a isso recorreu, sendo os seus amigos que por conta própria a isso se
obrigaram. Com ar majestoso, julgando com o poder dos seus milhões ser capaz
de esmagar as pessoas impunemente, o nosso rebento tirou do bolso uma nota de
cinquenta rublos e a mandou ao nosso excelente rapaz, em um gesto de caridade
insultante. Sei que o leitor propende a não acreditar nisso. O leitor dana-se, sofre,
solta exclamações de indignação; mas foi isso, leitor amigo, o que ele fez! O
dinheiro, é lógico, lhe foi remetido de volta imediatamente. arremessado, por
assim dizer, às suas fuças! Qual o recurso deixado então? Não cabe demanda
judicial, só há um recurso: a publicidade. Esta história é, pois, apresentada ao
público sob garantia de absoluta autenticidade. Um dos nossos mais conhecidos
escritores humorísticos alinhavou um excelente epigrama sobre o caso e que
merece destaque como rascunho da vida russa, tanto na província como na
capital:
“Nem todo idiota é bocó:
Vou provar esta asserção
Citando um exemplo só.
Com seus ataques insanos,
Com seus ataques insanos,
Metido em um capotão,
No espaço de cinco anos,
O bom Liév ficou
O bom Liév ficou
Simulando ser bocó,
Mas quando à Rússia voltou,
O nosso imbecil primário
Achou prontinha uma herança!
E o que é mais extraordinário,
Do estudante que logrou...
Nem ao menos teve dó!...
Este epigrama provou
E ainda prova, por si só,
Que este idiota Milionário
Nada tinha de bocó!”
continua página 239...
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Segunda Parte
O Idiota: Segunda Parte (8a) - Foi o príncipe
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