quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (7a) - O jovem

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

7.

     O jovem que chegou com o general, aparentava uns vinte e oito anos, era alto e elegante, tinha um rosto bonito e inteligente e nos seus olhos grandes e negros havia uma expressão simpaticamente irônica. Agláia não se voltou para o olhar. Continuou a recitar os versos, persistindo em não fixar senão o príncipe e como que recitando só para ele.
     Mas os recém-chegados de certa forma interromperam a situação desagradável em que ele se achava. Vendo-os, ele levantou-se, curvou-se um pouco, lá a distância de onde estava, para o general, fez sinal que não interrompesse a declamação. e se colocou por detrás da poltrona, aproveitando para ficar menos exposto. Depois, apoiando o braço no espaldar da poltrona, ficou à vontade para escutar a balada em uma posição mais conveniente e menos ridícula do que antes.
     Lizavéta Prokófievna, por seu turno, duas vezes se voltou para os recém-chegados, categoricamente lhes fazendo sinal de que ficassem quietos.
     O príncipe se interessou muito por esse seu novo visitante, o jovem que estava com o general. Sabia que devia ser Evguénii Pávlovicht Rádomskii, de quem já ouvira falar tanto, tendo até pensado nele mais de uma vez. A única coisa de que se admirou foi estar essa pessoa em roupas civis, pois, pelo que ouvira, Evguénii Pávlovitch era militar. Um sorriso de afável ironia brincava nos lábios do jovem durante todo o tempo em que o poema era recitado, como se já soubesse alguma coisa a respeito da brincadeira do “pobre cavaleiro”.

“Quem sabe até se não foi ideia dele!” - pensou o príncipe.

     Mas, quanto a Agláia, a coisa era muito outra. A afetação e a pompa com que começara a recitar já iam sendo substituídas por um modo sério e por uma profunda consciência do espírito e significado do poema. Dizia estrofe por estrofe com uma tão nobre simplicidade, que antes do fim da declamação não só tinha despertado a atenção geral como, pela interpretação do elevado espírito da balada, conseguira até justificar, por certo modo, a exagerada gravidade com que se havia postado no centro da varanda. Tal gravidade podia até ser tomada como consequência da profundidade do tema, ou como respeito à beleza dos versos que se propusera interpretar.
     Que fulgor o dos seus olhos! E um tremor quase imperceptível de deslumbramento duas vezes fulgiu no seu semblante admirável. Recitou:

Viveu outrora no seu burgo nobre 
Um cavaleiro austero e taciturno 
Cuja magnificência era ser pobre!

Como sempre, uma noite, após o turno 
Pelas ermas ameias do castelo, 
Se estirou no seu tálamo noturno 

E, dormindo, sonhou sonho tão belo 
- Oh radiosa visão de eucaristia! 
Que artista ou poeta algum, em seu anelo

De interpretar o enigma que envolvia 
Essa visão de uma tamanha essência, 
Nunca o fará em cor ou verso, um dia! 

Sublimando de vez sua existência, 
Passa a adotar um teor extraordinário: 
Se alguma tentação defronta, vence-a 

Pois usa agora apenas um rosário 
Ao invés do gorjal. E nem sequer, 
Nas contingências deste mundo vário,

Lançando-se em batalha - onde as houver, 
Sempre o rosto escondido na viseira, 
Ergue o olhar para um corpo de mulher. 

Com seu sangue, conforme a leal maneira 
Estas três letras N. F. B. 
Grava no escudo oval, com mão certeira. 

Contra a Mourisma, em prol da sua fé, 
Investe então com alma corajosa 
Sempre que alguma pugna audaz se dê, 

Bradando: “Lumen Coeli, Sancta Rosa!”

Eis a vida qual foi, deste Cruzado, 
No Oriente rubro e na África pasmosa! 
Já velho, regressou ao seu condado 
E, sem reconhecer o que era seu, 
Mais um dia em solidão plena morreu... 

     Envolto no marasmo do passado, tarde, ao recordar aquele momento, o príncipe ficava sempre estupefato e atormentado por uma interrogação para a qual não achava resposta: como pudera um tão sincero e nobre sentimento estar associado com uma tal malícia tão indisfarçável e irônica? Da existência dessa zombaria não tinha ele dúvidas; compreendera isso muito bem e tinha em que se fundamentar.
     No decorrer da declamação, Agláia tomara a liberdade de mudar as iniciais A. M. D. para estas outras N. F. B. Lá que tivesse entendido mal, ou ouvido errado, não era possível (aliás mais tarde isso lhe foi provado). Em todo o caso, a atitude de Agláia - um gracejo, naturalmente, embora desapiedado e impensado - fora premeditada. Durante aquele mês, todo o mundo falou (e sempre rindo) do “pobre cavaleiro” Ainda assim, conforme o príncipe se lembrou depois, Agláia pronunciara aquelas letras sem nenhum traço de mofa nem de escárnio, sem mesmo acentuá-las com ênfase a fim de demonstrar seu secreto significado. Pelo contrário, pronunciara aquelas letras com a mesma imutável gravidade, com uma tão inocente e ingênua simplicidade que se podia supor que tais iniciais estivessem na balada e impressas no livro, O príncipe sentiu-se atormentado por um mal-estar- que o deprimiu.
     Lizavéta Prokófievna, é claro, não percebeu nem compreendeu a troca das letras, nem a alusão nelas incluída.
     O General Epantchín só percebeu que estavam recitando um poema.
     Alguns dos ouvintes, porém, compreenderam e ficaram surpreendidos com o arrojo da intenção ante o sentido que nisso estava subentendido; mas ficaram calados e fingiram não ter reparado.
     Mas o príncipe estava pronto a apostar que Evguénii Pávlovitch não só compreendera, como estava tentando evidenciar que compreendera: o seu sorriso era demasiado zombeteiro.

- Que esplêndido! - elogiou a Sra. Epantchiná, arrebatada pelo entusiasmo, logo que a declamação acabou. - De quem é esse poema? 
- De Púchkin, mamãe - informou Adelaída. - Não nos envergonhe! Será possível? 
- É de espantar que eu não seja mais ignorante ainda, com estas minhas filhas! - respondeu Lizavéta Prokófievna, amargamente. - Mas é uma desgraça! Logo que chegarmos a casa me mostrem esse poema de Púchkin.
- Creio que não temos lá nenhum Púchkin! 
- Eu me recordo de haver visto dois volumes muito gastos rodando pelos cômodos! - acrescentou Aleksándra. 
- Temos que mandar uma pessoa, Fiódor ou Aleksiéii, pelo primeiro trem, comprar um, na cidade. Será melhor mandar Aleksiéii. Agláia, vem cá me dar um beijo! Declamaste esplendidamente; mas se recitaste com sinceridade - acrescentou diminuindo o tom de voz – me entristeces; se quiseste gracejar com ele, não posso deixar de censurar teus sentimentos e até seria melhor que tivesses permanecido calada. Estás compreendendo bem? Podes ir, criatura. E ainda tenho mais alguma coisa a te dizer daqui a pouco, caso nos eternizemos nesta visitinha.

     Neste ínterim o príncipe cumprimentava o General Epantchín que por sua vez lhe apresentava Evguénii Pávlovitch Rádomskií.

- Peguei-o pelo caminho, ainda na estação. Ao saber que eu vinha para cá e que todos estavam aqui. 
- E soube também que o senhor se encontrava em Pávlovsk - atalhou Evguénii Pávlovitch - então, como desde muito tenho pensado obter não somente uma apresentação mas também a sua amizade, não quis perder este ensejo. O senhor está passando bem? Disseram-me que... 
- Estou ótimo, e sinto muito prazer em conhecê-lo. Já me falaram muito a seu respeito e já conversei diversas vezes sobre o senhor com o Príncipe Chtch... - respondeu o príncipe, estendendo-lhe a mão.
 
     Cortesias recíprocas foram trocadas. Apertaram a mão um do outro e se olharam bem. Não tardou que a conversa se generalizasse. Míchkin notou (dera agora para notar tudo, de modo rápido e vivo; e possivelmente notava até mesmo coisas que nem existiam) que os trajes civis de Evguénii Pávlovitch haviam despertado a curiosidade geral, e até surpresa; tanto que logo as restantes impressões e novidades ficaram esquecidas e apagadas. Esse pasmo até levava a conjeturar que tal mudança implicava em algo muito importante.
     Adelaída e Aleksándra examinavam Evguénii Pávlovitch com certa perplexidade.
     O Príncipe Chtch..., seu parente, mostrava-se um pouco preocupado e o general falava com certa emoção contida.
      Agláia foi a única que observou Evguénii Pávlovitch sem se alterar, durante alguns instantes, embora demonstrando curiosidade também ela; parecia apenas decifrar qual dos trajes lhe ia melhor, civil se o militar. E logo se virou, não prestando mais atenção.
     Lizavéta Prokófievna tampouco se abalançou em fazer comentários ou perguntas, não obstante ser ela quem decerto reparara logo na transformação. Pareceu ao príncipe que ela implicava um pouco com Evguénii Pávlovitch. Como a interpretar a impressão geral, Iván Fiódorovitch exclamava com alvoroço:

- Até me assustei! Palavra, que fiquei surpreendido quando - dei com esse nosso amigo vestido assim em Petersburgo. Cheguei a acreditar que não fosse ele. E por que assim tão depressa, eis o enigma! Diz ele que não se devem quebrar cadeiras!

     Pela conversa que se seguiu o príncipe ficou sabendo que Evguénii Pávlovitch vinha participando desde muito tempo a sua decisão de deixar temporariamente o serviço do exército; mas falava disso sempre com tanta leviandade que ninguém tomara a sério tais palavras. Era seu feitio falar tudo com ar brincalhão, mesmo quando os assuntos eram sérios; de forma que era impossível acreditar nele, o que talvez lhe conviesse. - Será apenas por algum tempo, por alguns meses. Um ano, no máximo - ria Rádomskii.

- Mas por que isso? Não chego a compreender. Principalmente você que desfrutava uma situação de p- ordem – continuou argumentando o General Epantchín.
- E onde arranjaria eu tempo para visitar os meus domínios, senão assim? O senhor mesmo não me aconselhou a ir ver direito as minhas propriedades? E mesmo pretendo dar um pulo até ao estrangeiro...

     E logo o assunto foi cortado. Ainda assim uma excessiva e predominante inquietação, cujo motivo o príncipe não atinava, parecia pairar na atmosfera. Então o “pobre cavaleiro” ainda continuava em cena? - perguntou Evguénii Pávlovitch acercando-se de Agláia. E, para maior atarantamento do príncipe, esta o olhou admirada e altiva, como a lhe dar a entender que o “cavaleiro pobre” era um assunto com que ele nada tinha de ver, não chegando ela, portanto, a compreender por que lhe fazia uma tal pergunta.
     Enquanto isso, Kólia continuava os seus debates com Lizavéta Prokófievna:

- Mas é muito tarde, muitíssimo tarde para mandar alguém à cidade a estas horas. Pela milésima vez multiplicada por três lhe faço ver que é demasiado tarde para mandar comprar na cidade um volume de Púchkin.
- Realmente já está muito tarde para ir à cidade agora - interveio Evguénii Pávlovitch, afastando-se de Agláia. - A estas horas as lojas em Petersburgojá devem estar fechadas. Já passa das oito - declarou, consultando o relógio.
- Se a senhora passou até agora sem este livro por que não há de poder esperar por amanhã? - fez Adelaída. 
- E nem é chique pessoas da melhor sociedade estarem a se interessar por literatura - acrescentou Kólia. - Pergunte só a Evguénii Pávlovitch. É muito mais correto viver refestelado em um cabriolé amarelo, de rodas encarnadas.
- Você está dando para falar por símbolos, outra vez, Kólia! - observou Adelaída.  
- Mas ele só sabe falar charadísticamente - cascalhou Evguénii Pávlovitch. - Anda procurando em revistas frases inteiras. O meu prazer de ouvir a conversa de Nikolái Ardaliónovitch vem de longe, mas desta vez não se trata de nenhuma charada. Nikolái Ardaliónovitch está aludindo em cheio ao meu char- à-banc amarelo de rodas vermelhas. Mas já o troquei; você está atrasado.

     O príncipe escutava Rádomskii falar. E verificava quanto as suas maneiras eram excelentes, modestas e vivazes. Estava particularmente satisfeito em ouvi- lo responder com perfeita equanimidade e bonomia às troças de Kólia.

- Que é isso? - perguntou Lizavéta Prokófievna, dirigindo-se a Vera, a filha de Liébediev que estava parada diante dela com alguns volumes grandes, quase novos e finamente encadernados em suas mãos.
- Isto é Púchkin - disse Vera. - O nosso Púchkin. Papai me disse que viesse oferecer à senhora. 
- Como é isso? Como pode ser isso? - disse Lizavéta Prokófievna, espantada. - e Liébediev surgiu, empurrando a filha - Ao preço do custo. Trata-se do nosso Púchkin para uso da família. Trata- se da edição Annénkov, que já não se compra hoje em dia; ao preço do custo! Ofereço com veneração, e só o quero vender para satisfazer à insigne impaciência dos honorabilíssimos sentimentos literários de Vossa Excelência.
- Bem, se é que o vende, obrigada. E fique desde já sabendo que não terá prejuízo. Peço-lhe, porém, uma coisa só; que não represente o maluco, aqui, por favor. Já me disseram que é muito lido, mas a nossa conversa fica para outro dia. Irá levá-los, pessoalmente, não é? 
- Com veneração e... o maior respeito! - careteou Liébediev, com extraordinário júbilo, tomando os livros das mãos da filha.
- Está bem. Veja lá, não vá perdê-los. Pegue-os; fico com eles, mesmo sem “o maior respeito”. Mas somente com uma condição: a de só receber sua visita na porta, o que não quer dizer tampouco que seja hoje - acrescentou ela examinando-o cuidadosamente. É melhor até mandar sua filha em seu lugar. Mande-a logo mais. Vera, de você eu gosto, está ouvindo? - Vera, todavia, já estava falando com o pai a propósito de um outro assunto. 
- Por que é que o senhor, papai, não avisa ao príncipe que aquela gente está aí, querendo falar com ele? Se o senhor demora eles acabam entrando à força. Escute o escarcéu que estão fazendo! Liév Nikoláievitch – e agora se aproximara do príncipe - chegaram quatro homens que querem falar com o senhor. Já vieram há muito tempo, estão furiosos e papai não os quer deixar vir aqui.

O Idiota: Segunda Parte (7a) - O jovem
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