quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - l)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

     Já não era bastante cerrar as cortinas; procurava tapar os olhos e os ouvidos de minha memória, para não rever a faixa alaranjada do poente, para não ouvir aqueles pássaros invisíveis que respondiam de uma árvore à outra, a cada lado de mim, enquanto eu beijava ternamente aquela que agora estava morta. Tentava evitar as sensações davam a umidade das folhas à tardinha, a subida e a descida das estradas no lombo de burro. Mas essas sensações já tinham se apoderado outra vez; levando-me para bem longe do momento presente, para que a ideia de que havia morrido adquirisse todo o recuo, todo o impulso necessário para me fazer novo. Ah, eu nunca mais entraria numa floresta, não passearia mais. Mas seriam as grandes planícies menos cruéis para mim? Quantas vezes ao ir buscar Albertine, havia eu atravessado a grande planície de Cricqueville; quantas vezes a recruzara de volta com ela, ora nos tempos brumosos, em que a inundação do nevoeiro nos dava a ilusão de estarmos rodeados por um lago imenso; noites límpidas em que o luar, desmaterializando a terra, fazendo-a parecer a dois passos de nós, como só o é, durante o dia, nas lonjuras, encerrava os bosques, com o firmamento a que os assimilara, na ágata arborizada único azul! 
     Françoise devia estar feliz com a morte de Albertine, e é preciso fazer justiça: por uma espécie de decência e de tato, ela não simulava tristeza. Mas as palavras não escritas de seu código antigo, e sua tradição de camponesa medieval que como nas canções de gesta, eram mais velhas que seu ódio por Albertine e à Eulalie. Assim, num daqueles fins de tarde, como eu não escondesse bem o sofrimento, ela percebeu minhas lágrimas, ajudada pelo instinto de antiga camponesa, que naquela época a levava a capturar e fazer sofrer os animais, apenas alegria em torcer o pescoço dos frangos e a cozinhar vivos com aspargos quando eu estava doente, a observar o meu aspecto como se fossem feridas ela houvesse causado a uma coruja e, a seguir, anunciá-lo em tom fúnebre um presságio de infelicidade. Mas o seu "costumário" de Combray não lhe permitia tomar de modo leviano as lágrimas, o desgosto, coisas que ela julgava tão forte como tirar a roupa de flanela ou comer contra a vontade.

- Oh, não! O senhor não deve chorar dessa maneira, isto vai lhe fazer mal! -

     E, querendo estancar minhas lágrimas, mostrava-se tão inquieta como se se tratasse de ondas de sangue. Infelizmente assumi um ar frio, que cortou de imediato as efusões que ela esperava e que, de resto, talvez teriam sido sinceras. Talvez Albertine lhe importasse tão pouco quanto Eulalie e, agora que minha amiga não podia tirar mais nenhum proveito de mim, Françoise deixara de odiá-la. Entretanto, fez questão de me mostrar que percebia perfeitamente que eu estava chorando e que, seguindo apenas o funesto exemplo dos meus parentes, não queria "mostrar".

- Não é preciso chorar, senhor - disse-me ela num tom desta vez calmo, e antes para me mostrar a sua clarividência do que para testemunhar piedade. E acrescentou: - Isso deveria acontecer; ela era feliz demais, a pobrezinha, e não soube reconhecer sua felicidade.

     Como o dia custa a morrer nessas tardes desmesuradas de verão! Um pálido fantasma da casa fronteira continuava indefinidamente a aquarelar sua brancura persistente no céu. Por fim se fazia noite no apartamento, eu esbarrava nos móveis do vestíbulo, mas na porta da escada, em meio ao negror que eu julgava totalmente a parte envidraçada estava translúcida e azul, de um azul de flor, de asa de inseto, de um azul que teria me parecido belo se eu não tivesse percebido que era um derradeiro reflexo, cortante como a lâmina do aço, um golpe supremo que o dia me assestava ainda em sua crueldade infatigável.
     No entanto, a escuridão completa acabava por chegar, mas então bastava uma estrela vista ao lado da árvore do pátio para me recordar nossas partidas de carro, depois do jantar, em direção aos bosques de Chantepie, alcatifados de luar. E, mesmo nas ruas, acontecia-me isolar no encosto de um banco, recolher a pureza natural de um raio de lua em meio às luzes artificiais de Paris - dessa Paris sobre a qual, fazendo regressar um momento, pela imaginação, a cidade à natureza, ele obtinha que reinasse, com o silêncio infinito dos campos evocados, a lembrança dolorosa dos passeios que eu ali fizera com Albertine. Ah, quando acabaria a noite? Mas, à primeira brisa da aurora, eu estremecia, pois ela me trouxera de novo a doçura daquele verão no qual, de Balbec a Incarville, de Incarville a Balbec, tantas vezes nos tínhamos acompanhado um ao outro até o amanhecer. Só me restava uma esperança para o futuro; esperança bem mais dilacerante que o temor-; era a de esquecer Albertine. Sabia que iria esquecê-la mais cedo ou mais tarde, pois esquecera Gilberte e a Sra. de Guermantes, esquecera de todo a minha avó. E o nosso mais justo e mais cruel castigo, diante do esquecimento completo, pacífico igual ao dos cemitérios, pelo qual somos desligados daqueles que não mais amamos, é que vislumbramos esse mesmo esquecimento como inevitável em relação àqueles a quem amamos ainda. Para falar a verdade, sabemos que é um estado indolor, um estado de indiferença. Mas, não podendo pensar ao mesmo tempo no que eu era e no que seria, pensava com desespero em todo esse tegumento de beijos e de sons amigos, do qual era preciso em breve despojar-me nunca mais. O impulso dessas lembranças tão ternas, vindo quebrar-se de encontro à ideia de que Albertine havia morrido, oprimia-me pelo entre choque fluxos tão contrários que eu não podia permanecer imóvel; erguia-me de súbito estacava, apavorado; a mesma madrugada que eu via no momento em que acabava de deixar Albertine, ainda radioso e quente de seus beijos, vinha por sobre as cortinas a sua lâmina, agora sinistra, cuja brancura fria, impelia compacta, entrava dando-me uma espécie de punhalada.
     Dali a pouco os ruídos da rua iam recomeçar, permitindo ler na qualitativa de suas sonoridades o grau de calor, aumentado sem cessar, repercutiriam. Mas, nesse calor que horas mais tarde haveria de embriagar com cheiro das cerejas, o que eu achava - como num remédio em que a substituição de uma das partes componentes por outra basta para torná-lo, de eufórico em um depressivo - não era mais o desejo das mulheres, mas a angústia da partida de Albertine.
     Aliás, a lembrança de todos os meus desejos se impregnara tanto de sofrimento, quanto a lembrança dos prazeres. Essa Veneza onde eu julgava que sua presença me seria importuna (sem dúvida porque sentia confusamente me seria necessária ali), agora que Albertine já não existia, preferia eu não ir com Albertine me parecera um obstáculo interposto entre mim e todas as coisas que para mim era ela quem as continha todas, e era dela, como de um vaso, podia recebê-las. Agora que esse vaso estava destruído, eu já não sentia como para agarrá-las; não havia mais uma só de que eu não me afastasse, abatido, proibindo não desfrutá-la. De modo que minha separação dela não me abria nenhum campo dos prazeres possíveis, que eu supusera fechado pela sua presença. Além do mais, o obstáculo que sua presença talvez houvesse de fato para mim, no que diz respeito a viajar e gozar a vida, somente disfarçara, sempre acontece, os outros obstáculos, que reapareciam intactos agora que havia desaparecido. Desse modo é que, antes, quando alguma visita amável, impedia-me de trabalhar, se no dia seguinte eu ficava sozinho, nem por isso trabalhava. Quando uma doença, um duelo, um cavalo arrebatado, nos fazem ver a morte de perto, como teríamos gozado imensamente a vida, a volúpia e os países desconhecidos de que iremos ser privados. E, uma vez que o perigo passa, o que vemos é a mesma vida morna onde nada disso existia para nós.
     É claro que essas noites tão curtas duram pouco. O inverno acabaria, e então eu não mais precisaria temer a lembrança dos passeios que fiz com ela até a aurora bem cedinho. Mas as primeiras geadas, não me dariam elas, conservado em seu gelo, o gérmen de meus primeiros desejos, quando a meia-noite eu mandava buscá-la, e tão longo me parecia o tempo até o seu toque da campainha, que agora eu poderia esperar eternamente em vão? Não me dariam o gérmen de minhas primeiras inquietações, quando por duas vezes achei que ela não viria? Naquele tempo eu só a via raramente; mas até esses intervalos existentes entre suas visitas, que a faziam aparecer ao fim de várias semanas, o anseio de uma vida ignorada que eu não tentava possuir, asseguravam-me a retirada, impedindo que se aglomerassem, e formassem um bloco em meu coração, as veleidades constantemente interrompidas de meu ciúme. Esses intervalos, tão calmantes, podiam ter sido naquele tempo, quanto, retrospectivamente, eram impregnados de sofrimento desde que o que ela pudera fazer de desconhecido, durante eles, deixara de me ser indiferente, sobretudo agora que nenhuma visita dela viria nunca mais; de modo que essas noites de janeiro em que ela vinha e que por isso me foram tão suaves, insuflaram-me agora, em sua noitada acerba, uma inquietude que à época eu não conhecia, e me devolveriam, porém tornado pernicioso, o primeiro gérmen do meu amor. E pensando que veria recomeçar aquele tempo frio que, desde Gilberte e meus jogos nos Champs-Élysées, havia-me parecido tão triste; e pensando que voltariam nas noites de nevada iguais àquela, em que eu havia esperado Albertine em vão durante muito tempo, então, como um enfermo que se coloca bem, no ponto de vista do corpo, para os seus pulmões, eu, moralmente, naqueles instantes, o que temia acima de tudo, para o meu sofrimento, para o meu coração, era a volta das grandes friagens, e dizia comigo que o mais duro de passar seria talvez o inverno. Ligada como estava a todas as estações a lembrança de Albertine, para que eu a perdesse seria preciso esquecê-las todas, arriscando-me a recomeçar a conhecê-las, como um velho hemiplégico precisa reaprender a ler; seria preciso que renunciasse a todo o universo.
     Apenas, dizia comigo, uma verdadeira morte de mim mesmo seria capaz (mas ela é impossível) de me consolar da sua. Eu não pensava que a morte de nós mesmos não fosse impossível nem extraordinária; ela se consuma à nossa revelia, se necessário contra a nossa vontade, todos os dias, e eu sofreria com a repetição de toda espécie de dias que não só a natureza, mas também circunstâncias fictícias ou uma ordem mais convencional, introduzem numa estação. Em breve, retornaria a data em que eu fora a Balbec, no outro verão, e onde o meu amor, que ainda não era inseparável do ciúme e que não se incomodava com o que Albertine fazia o dia inteiro, deveria sofrer tantas mudanças antes de se tornar aquele amor tão diverso dos últimos tempos, tão particular, que esse ano final, em que principiara a mudar e onde havia terminado o destino de Albertine, me aparecia pleno, diferente, vasto como um século. Depois, seria a lembrança dos dias mais tardios, mas nos anos anteriores; os domingos de mau tempo, onde contudo o mundo inteiro saíra, no vazio da tarde, em que o ruído do vento e da chuva teria me convidado antigamente a ficar como o "filósofo nas águas-furtadas"; com que ansiedade eu veria aproximar-se a hora em que Albertine, tão pouco esperada, viera visitar-me, beijara-me pela primeira vez, interrompendo-se por causa de Françoise que tinha vindo trazer a lâmpada, naquele tempo duplamente morto em que Albertine é que estava curiosa de mim, em que a minha ternura por ela podia legitimamente manter tantas esperanças! Mesmo numa estação mais avançada, aquelas noites gloriosas em que as copas e os pensionatos, reabertos como capelas, banhados numa poeira de ouro, deixam a rua coroar-se com essas semideusas que, conversando não longe de nós com suas iguais, passam-nos a febre de penetrar em sua existência mitológica, só me recordava a ternura de Albertine que, a meu lado, constituía um empecilho para me apagar delas.
     Aliás, à recordação das horas, mesmo puramente naturais, ajuntam, forçosamente, a paisagem moral que as transformava em algo único. Quando de tarde, eu ouvisse a corneta do cabreiro, num começo de bom tempo, quase esse mesmo dia haveria de misturar alternadamente à sua luz a ansiedade de que Albertine estava no Trocadero, talvez com Léa e as duas moças, depois a doméstica e familiar, quase comum, de uma esposa que então me parecia estorvo e que Françoise me traria de volta. Eu julgara envaidecer-me com recado telefônico de Françoise, que me transmitira a homenagem obediente de Albertine voltando com ela. Enganara-me. Se ele me havia embriagado, fora me fizera sentir que aquela que eu amava me pertencia, só vivia para mim, e à distância, sem que dela precisasse me ocupar, considerava-me o seu esposo regressando a um sinal meu. E, assim, esse recado telefônico tinha sido parcela de doçura, vinda de longe, emitida daquele quarteirão do Trocadero, acontecia haver para mim fontes de felicidade que me dirigiam calmantes, bálsamos apaziguadores que me devolviam enfim uma tão doce liberdade de espírito, que eu - entregando-me sem a restrição de um só cuidado à música de Wagner não precisava mais que esperar a chegada certa de Albertine, sem com inteira falta de impaciência, em que eu não soubera reconhecer a felicidade; essa felicidade de que ela voltaria, de que me obedecia e me pertencia, era pelo amor e não pelo orgulho. Pois agora me seria indiferente ter à minha direção cinquenta mulheres que voltassem a um sinal meu, não do Trocadero nas Índias. Porém, naquele dia, ao perceber Albertine que, enquanto eu estava só no quarto tocando música, vinha docilmente para junto de mim, respirei um nada como poeira solar, uma dessas substâncias que, assim como outras salutares ao corpo, fazem bem à alma. Depois, meia hora mais tarde, a chegada de Albertine; depois, o passeio com Albertine, chegada e passeio que julgara tediosos porque, para mim, estavam acompanhados de certeza, mas devido a essa mesma certeza, a partir do momento em que Françoise me telegrafou dizendo que a traria, tinham feito escorrer uma calma dourada sobre as seguintes, convertendo-se numa espécie de segundo dia, bem diverso do primeiro porque tinha um fundo moral bem diferente, um fundo moral que dele fazia original, que vinha acrescentar-se à variedade daqueles que eu conhecera até o dia que eu jamais poderia imaginar - como não poderíamos imaginar o pôr de um dia de verão, se tais dias não existissem na série daqueles que já vivemos de que eu não podia absolutamente dizer que me recordava, pois àquela calma ajuntava agora um sofrimento que eu não havia sentido naquela época. Bem tarde, porém, quando aos poucos atravessei, em sentido inverso, os tempos pelos quais passara antes de amar tanto Albertine, quando meu coração cicatrizado pôde se separar sem mágoa da Albertine morta, então, quando afinal pude me lembrar sem sofrer daquele dia em que Albertine fora com Françoise fazer compras, em vez de ficar no Trocadero lembrei-me com prazer daquele dia como pertencendo a uma estação moral que eu não havia conhecido até então; lembrei-me dele, por fim, exatamente como nos lembramos de certos dias de verão que achamos quentes demais quando os vivemos, e dos quais afinal de contas extraímos o valor sem mistura de ouro fino e azul indestrutível.

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