terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - m)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

     De modo que esses poucos anos não impunham somente à lembrança de Albertine, que os tornava tão dolorosos; as cores sucessivas, as modalidades diversas, a cinza de suas estações ou de suas horas; dos fins de tarde de junho às noites de inverno; dos luares sobre o mar à aurora ao voltar para casa; da neve de Paris às folhas secas de Saint-Cloud; mas, também a ideia particular que eu me fazia sucessivamente de Albertine; do aspecto físico sob o qual a imaginara em cada um desses momentos, da maior ou menor frequência com que a vira naquela estação; que assim se tornava mais dispersa ou mais compactada; das ansiedades que ela então pudera causar-me devido à espera, do desejo que eu sentia em tal momento por ela, de esperanças formuladas e depois perdidas; tudo isso modificava o caráter da minha tristeza retrospectiva, tanto quanto as impressões de luz ou de perfumes que lhes estavam associadas; completava cada um dos anos solares que eu tinha vivido; e que, só pelas suas primaveras, seus outonos, seus invernos, eram já tão tristes por causa da recordação inseparável dela, duplicando-a com uma espécie de ano sentimental em que as horas não eram definidas pela posição do sol, mas pela espera de um encontro marcado; em que o comprimento dos dias ou os progressos da temperatura eram medidos pelo voo de minhas esperanças, pelo progresso de nossa intimidade, pela transformação gradativa de seu rosto, pelas viagens que ela fizera, pela frequência e pelo estilo das cartas que me escrevera durante certa ausência, sua maior ou menor precipitação em me ver, ao voltar. E, por fim, essas mudanças de tempo, esses dias diferentes, se cada um deles me trazia uma outra Albertine, não era apenas pela evocação de momentos semelhantes. Lembrem-se que desde sempre, antes mesmo que eu a amasse, cada dia fizera de mim um homem diferente, tendo outros desejos porque possuía outras percepções; e que, por ter sonhado na véspera com rochedos e tempestades; se o dia indiscreto de primavera insinuara um odor de rosas na clausura mal fechada de seu sono entreaberto, eu despertava de partida para a Itália. E até no amor, o estado mutável de minha atmosfera moral, a pressão modificada de minhas crenças não tinham, em outro dia, diminuído a visibilidade de meu próprio amor, aumentando-a indefinidamente em outro, embelezando-a num dia até o sorriso, em outro contraindo-a até a tempestade? Somos apenas aquilo que possuímos, não possuímos senão o que nos está de fato presente, e tantas de nossas lembranças, de nossos humores, nossas ideias, partem para viagens longe de nós mesmos, onde os perdemos de vista! Então não mais podemos levá-los em consideração nesse local do ser. Mas eles têm caminhos secretos para voltar a entrar em nós. E em certo momento, tendo eu adormecido sem quase mais lamentar Albertine só podemos ter aquilo de que nos lembramos-, encontrava, ao acordar, toda uma frota de ações que tinham vindo cruzar em mim, na minha mais clara consciência, e distinguia esplendidamente bem. Então, eu lastimava aquilo que via tão bem na véspera não era coisa alguma para mim. O nome de Albertine e sua imagem, haviam mudado de sentido; suas traições tinham readquirido subitamente sua importância. 
     Como é que ela me pudera parecer morta, quando agora, para pensar eu só tinha à minha disposição as mesmas imagens que, quando ela vivia, revia alternadamente?
     Rápida e inclinada sobre as rodas mitológicas de sua capa apertada, nos dias de chuva, na túnica guerreira de borracha que lhe ressaltavam os seios, a cabeça envolta num turbante e coberta de serpentes, ela em terror nas ruas de Balbec; nas noites em que tínhamos levado champanha aos bosques de Chantepie, com a voz provocante e mudada; no rosto aquele atenuado, rubro apenas nas bochechas que, mal o distinguindo na escuridão do carro, aproximava-me da faixa enluarada para a ver melhor; que agora tentava lembrar e rever numa escuridão que jamais terminaria. Pequena está no passeio em direção à ilha, tranquilo rosto gordinho e granuloso junto à pia ela era assim, alternadamente pluviosa e rápida; provocante e diáfana; risonha, anjo da música. Cada uma delas estava assim ligada a um momento, data a que eu me sentia reposto ao tornar a vê-la. E esses momentos do tempo não são imóveis; conservam em nossa memória o movimento que os arrasta, para o futuro; um futuro que também se tornou passado-, arrastando-nos em mente a nós mesmos. Eu jamais havia acariciado Albertine encapotada dos abrigos de chuva, queria lhe pedir que tirasse aquela armadura, o que seria conhecer ela o amor dos campos, a fraternidade da viagem. Mas já não era possível, ela havia morrido. Jamais, também, por medo de depravá-la, eu mostrara compreender, noites em que parecera me oferecer prazeres que, não fosse isto, ela talvez houvesse pedido a outros e que agora excitavam em mim um desejo furioso; os teria sentido iguais junto à outra, porém aquela que amamos teria proporcionado, podia correr o mundo inteiro sem encontrá-la, pois Albertine havia morrido. Por que eu devia escolher entre dois fatos, decidir qual era o verdadeiro, tanto o da morte de Albertine que me viera de uma realidade que eu não havia conhecido sua vida em Touraine - estava em contradição com todas as minhas ideias relativas à ela, meus desejos, minhas saudades, meu enternecimento, minha fúria, ciúme. Uma tal riqueza de lembranças tomadas ao repertório de sua vida, uma profusão de sentimentos evocando, implicando sua vida, pareciam tornar inacreditável que Albertine estivesse morta. Uma tal profusão de sentimentos, pois ainda na memória, conservando-me a ternura, deixava-lhe toda a sua variedade. Não era apenas Albertine que não passava de uma sucessão de momentos, era também eu próprio. Meu amor por ela não fora simples: à curiosidade pelo desconhecido acrescentara-se um desejo sensual, e, ao sentimento de uma doçura quase familiar, ora a indiferença, ora um ciúme furioso. Eu não era somente um único homem nas ruas a desfilar, hora a hora, de um exército compósito onde havia, conforme o instante, sujeitos apaixonados, indiferentes, ciumentos - ciumentos dos quais nem um só o era da mesma mulher. E, sem dúvida, era dali que um dia viria a cura que eu não desejava. Numa multidão, os elementos podem, um a um, ser substituídos por outros sem que o percebamos, que outros mais, por seu turno, eliminam ou reforçam, de modo que por fim se consumou uma mudança, inconcebível se se tratasse de uma só pessoa. A complexidade do meu amor, de minha pessoa, multiplicava e diversificava meus sofrimentos. Entretanto, eles todos podiam se classificar sempre nos dois grupos cuja alternância formara toda a vida de meu amor por Albertine, sucessivamente entregue à confiança e à suspeição ciumenta.
     Se eu tinha dificuldade em imaginar que Albertine, tão viva em mim (revestindo como eu o duplo arnês do presente e do passado), estava morta, talvez também fosse contraditório que essa suspeita de faltas que ela, hoje despojada da carne que com elas gozara, e da alma que pudera desejá-las, não era mais capaz nem responsável, essa suspeita excitasse em mim tanto sofrimento, que teria simplesmente bendito se pudesse ver nele a garantia da realidade moral de uma pessoa materialmente inexistente, em lugar do reflexo, destinado a extinguir-se, das impressões que ela me causara outrora. Uma mulher que já não podia experimentar prazeres com outras não deveria mais excitar o meu ciúme, se ao menos a minha ternura pudesse atualizar-se. Mas isso era impossível, pois ela não poderia encontrar o seu objeto, Albertine, senão nas lembranças em que esta permanecia viva. Visto que somente por pensar nela eu a ressuscitava, suas traições jamais poderiam ser as de uma morta, tornando-se atual o momento em que as cometera, não só para Albertine, mas para aquele dos meus "eus", subitamente evocado, que as contemplava. De forma que nenhum anacronismo podia separar jamais o par indissolúvel em que, a cada nova culpada, de imediato se acasalava um ciumento lamentável e sempre contemporâneo. Nos últimos meses, eu a mantivera trancada em minha casa. Mas agora, na minha imaginação, Albertine estava livre; ela empregava mal essa liberdade, prostituía-se a umas e outras. Outrora eu pensava sem cessar num futuro incerto que se desdobrava à nossa frente, buscava decifrá-lo. E agora, o que estava diante de mim como um duplo do futuro tão preocupante como o futuro, pois também era incerto, tão difícil de decifrar, tão misterioso, mais cruel ainda, porque eu não tinha, como frente ao futuro, a possibilidade, ou a ilusão, de agir sobre ele, e também porque se desenrolava tão longe que minha vida, sem que minha companheira lá estivesse para acalmar os sofrimentos que me causava-, não era mais o futuro de Albertine, era o seu passado. Seu passado, digo mal, pois para o ciúme não existe nem passado, nem futuro, aquilo que se imagina sempre está no presente.
     As mudanças da atmosfera causam outras tantas no homem interpenetram "eus" esquecidos, contrariam o torpor do hábito, devolvem forças à lembranças e a certos sofrimentos. Quantos mais ainda para mim, se o tempo fazia lembrava-me aquele em que Albertine, em Balbec, sob a chuva ameaçada, por exemplo, fora dar sabe Deus por quê, longos passeios sob a malha e de seu impermeável!
     Se ela tivesse vivido, sem dúvida hoje, num tempo semelhante, sairia para fazer uma excursão análoga na Touraine. Desde que já não o podia, não deveria sofrer ante essa ideia; mas, como no caso das pessoas amputadas, a menor mudança de temperatura renovava minhas dores no membro que existia.
     De súbito, era uma lembrança que não me ocorria há muito tempo ficara dissolvida na fluida e invisível extensão da memória, e que se cristalizava. Assim, havia já muitos anos, como alguém falasse do seu peignoir de Albertine na ducha, enrubescera. Naquela época, não sentia ciúmes dela. Mas desde que quisera lhe perguntar se podia recordar aquela conversa e me dizer por que do enrubescido. Isto me preocupava tanto mais porque me haviam dito que as moças amigas de Léa frequentavam aquele estabelecimento balneário do hotel; dizia-se, não só para tomar duchas.
     Mas, com receio de aborrecer Albertine, esperando uma ocasião mais propícia, sempre evitara falar naquilo, e depois de pensar no assunto. E, de repente, algum tempo após a morte de Albertine, percebi essa lembrança, impregnada desse caráter a um tempo irritante e dos enigmas que ficam insolúveis para sempre devido à morte da única pessoa que poderia esclarecê-los. Não poderia eu pelo menos tentar saber se Albertine fez alguma coisa de mal ou que somente parecesse suspeito naquela casa de banho? Enviando alguém à Balbec, talvez conseguisse sabê-lo. Fosse ela viva, sem ou razão, eu não obteria nada. Porém as línguas estranhamente se soltam, revelando facilmente, uma falta quando já não têm a temer o rancor da culpada. Como a prezada imaginação, que permanece rudimentar e simplista (não tem passado passado inumeráveis transformações que melhoram os modelos primitivos das invenções humanas, mal reconhecíveis, quer se trate de um barômetro, do balão, do telefone, etc., nos seus aperfeiçoamentos ulteriores), não nos permite ver senão muito das coisas ao mesmo tempo, essa recordação do estabelecimento das duchas que ocupavam todo o espaço de minha visão interior. Às vezes eu me esbarrava, nas ruas escuras do sono, com um desespero de maus sonhos que não são muito graves por uma primeira razão: é que a tristeza que eles engendram não se prolonga mais que uma hora após o despertar, análoga a esse mal-estar provocado por uma forma artificial de dormir; e também por outra razão: é que só raramente os temos, com dois ou três anos de intervalo. Ainda assim, duvidamos já os ter experimentado, e que não tenham antes esse aspecto de coisas vistas pela primeira vez e que projeta sobre eles uma ilusão, uma subdivisão (pois "desdobramento" não seria dizer o suficiente).
     Decerto, pois eu tinha dúvidas sobre a vida e a morte de Albertine, desde há muito tempo eu deveria entregar-me à indagações. Mas a própria fadiga, a própria covardia que me fizeram submeter-me a Albertine quando ela estava em minha companhia, impediam-me de tomar qualquer iniciativa desde o momento em que não a via mais. E, todavia, da fraqueza arrastada durante anos, surge por vezes um lampejo de energia. Decidi-me a essa indagação, ao menos “inteiramente parcial”. Dir-se-ia que não houvera nada de mais em toda a vida de Albertine. Eu me perguntava sobre quem poderia enviar para tentar uma investigação in loco em Balbec. Aimé pareceu-me bem escolhido. Além de conhecer admiravelmente bem o lugar, pertencia àquela categoria de pessoas do povo; ciosas de seus interesses, fiéis a quem servem, indiferentes a qualquer tipo de moral; e das quais dizemos - porque, se os pagamos bem, em sua obediência à nossa vontade suprimem tudo o que a estorvasse, pois mostram-se tão incapazes de indiscrição, de moleza ou de improbidade, como destituídos de escrúpulos: são excelentes pessoas. Neles podemos ter confiança absoluta. Quando Aimé partiu, pensei como teria sido melhor que isso que ele ia tentar descobrir lá longe, eu pudesse perguntar agora à própria Albertine. E logo senti a impossibilidade dessa pergunta que eu teria desejado, que me parecia que já lhe fazer, tendo trazido Albertine para junto de mim, não graças a um esforço de ressurreição, mas como pelo acaso de um desses encontros que como ocorre nas fotografias sem pose, nos instantâneos deixam sempre a pessoa mais viva, ao mesmo tempo que imaginava a nossa conversação; acabava de abordar por uma faceta nova aquela ideia de que Albertine havia morrido. Albertine que me inspirava essa ternura que sentimos pelos ausentes cuja vista não vem retificar a imagem embelezada, inspirando também a tristeza de que essa ausência fosse eterna e que a pobrezinha estivesse privada para sempre da doçura de viver. E de imediato, por um deslocamento brusco, passei da tortura do ciúme para o desespero da separação.
     O que enchia agora o meu coração era, em vez de suspeitas odiosas, a lembrança emocionada das horas de ternura confiante, passadas com a irmã que sua morte me fizera realmente perder, visto que minha mágoa se relacionava, não ao que Albertine fora para mim, mas ao que meu coração, desejoso de participar das emoções mais gerais do amor, convencera-me pouco a pouco que ela era; então dava-me conta de que aquela vida que tanto me enfadara pelo menos assim o julgava – tinha ao contrário sido deliciosa; nos menores instantes que passara a conversar com ela sobre coisas até mesmo insignificantes, eu sentia agora, acrescentara, amalgamara-se uma volúpia, que então, de fato, não fora por mim, mas que já era causa de que, tais momentos, eu os havia para sempre com tanta perseverança e com exclusão de todo o resto; os menores instantes de que me lembrava, um movimento que ela fizera no carro junto a mim para se sentar à mesa à minha frente em seu quarto, propagavam em mim um remoinho de doçura e de tristeza que os poucos a conquistava totalmente.
     Aquele quarto em que jantávamos jamais me parecera bonito; era à Albertine apenas para que minha amiga ficasse contente por viver ali. As cortinas, as cadeiras e os livros tinham deixado de me ser indiferentes somente a arte que dá encanto e mistério às coisas mais insignificantes: mesmo o poder de relacioná-las intimamente conosco também é atribuído à própria ocasião, eu não prestara atenção nenhuma naquele jantar que havíamos comido juntos de volta do Bois, antes que eu fosse à casa dos Verdurin; e a beleza, na grave doçura para a qual eu agora voltava os olhos cheios de lágrimas. Uma impressão de amor está desproporcionada em relação às outras impressões da vida, mas não podemos percebê-la quando está perdida no meio delas. Não por baixo, no tumulto da rua e na balbúrdia das casas circundantes, é quando afastamos, e das encostas de um morro próximo, a uma distância em que a cidade desapareceu ou forma apenas ao nível da terra um montão confusão; podemos, no recolhimento da solidão e da noite, avaliar, a única, persistente à altura de uma catedral. Eu tentava abraçar a imagem de Albertine através das minhas lágrimas, pensando em todas as coisas sérias e judiciosas que ela me havia dito àquela noite.

continua na página 37...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - m)
Volume 7

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