Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
A ignorância política dos judeus, que os ajudava tão bem no cumprimento de seu papel na
esfera de negócios do Estado e na manutenção de seus preconceitos contra o povo e em favor da
autoridade, cegava-os diante dos perigos políticos do antissemitismo, embora aguçasse-lhes a
sensibilidade diante de toda forma de discriminação social. Era-lhes difícil discernir entre o
argumento político e a mera antipatia quando os dois se apresentavam concomitantemente.
Mas, no caso dos judeus, ambos se originaram de aspectos opostos do mesmo fenômeno, que
era a emancipação: o antissemitismo político surgiu porque os judeus apesar dela constituíam
um corpo à parte, enquanto a discriminação social resultou da crescente igualdade dos judeus
em relação aos demais grupos.
A igualdade de condições, embora constitua o requisito básico da justiça, é uma das mais
incertas especulações da humanidade moderna. Quanto mais tendem as condições para a
igualdade, mais difícil se torna explicar as diferenças que realmente existem entre as pessoas;
assim, fugindo da aceitação racional dessa tendência, os indivíduos que se julgam de fato iguais
entre si formam grupos que se tornam mais fechados com relação a outros e, com isto,
diferentes. Essa desconcertante consequência foi percebida quando a igualdade deixou de ser
aceita em termos de dogmatização ou de inevitabilidade. Sempre que a igualdade se torna um
fato social, sem nenhum padrão de sua mensuração ou análise explicativa, há pouquíssima
chance de que se torne princípio regulador de organização política, na qual pessoas têm direitos
iguais, mesmo que difiram entre si em outros aspectos; há muitas chances, porém de ela ser
aceita como qualidade inata de todo indivíduo, que é "normal" se for como todos os outros, e
"anormal" se for diferente. Essa alteração do sentido da igualdade, que do conceito político
passou ao conceito social, é ainda mais perigosa quando uma sociedade deixa pouca margem de
atuação para grupos e indivíduos especiais, pois então suas diferenças com relação à maioria se
tornam ainda mais conspícuas.
O grande desafio do período moderno — e seu perigo peculiar — está nisso: pela primeira vez o
homem se confrontou com seu semelhante sem a proteção das condições pessoais que ostentava como diferenciadoras. Foi esse novo conceito de
igualdade que tornou difíceis as relações raciais, pois nesse campo lidamos com diferenças
naturais, que nenhuma mudança política pode modificar. É pelo fato de a igualdade exigir que
eu reconheça que todo e qualquer indivíduo é igual a mim que os conflitos entre grupos
diferentes, que por motivos próprios relutam em reconhecer no outro essa igualdade básica,
assumem formas tão terrivelmente cruéis.
Portanto, quanto mais a condição do judeu se aproximava da igualdade, mais surpreendentes se
revelavam as ambivalências: de um lado, o ressentimento social contra os judeus; de outro — e
ao mesmo tempo — uma atração peculiar por eles. A combinação dessas reações determinou a
história social da comunidade judaica da Europa ocidental. Contudo, tanto discriminação como
atração eram politicamente estéreis. Nem produziam um movimento político contra os judeus,
nem serviam para protegê-los contra seus inimigos. Conseguiram, porém, envenenar a
atmosfera social, perverter as relações sociais entre judeus e gentios, e influenciar a conduta dos
judeus. A formação do estereótipo do judeu foi devida a ambos esses fatos: à especial
discriminação e ao especial favorecimento.
A antipatia social pelos judeus, que assumia diversas formas de discriminação, não causou
grande mal político nos países europeus, pois neles nunca foram alcançadas igualdade social e
econômica genuínas. As novas classes se desenvolviam como grupos, aos quais uma pessoa
pertencia pela ascendência. Não há dúvida de que somente em tal estrutura a sociedade poderia
tolerar que os judeus se estabelecessem como um grupo especial.
A situação teria sido inteiramente diferente se, como nos Estados Unidos, a igualdade de
condição houvesse sido aceita naturalmente; se cada membro da sociedade, vindo de qualquer
camada, tivesse a firme convicção de que, por capacidade ou sorte, podia tornar-se herói de uma
história de conquistas. Em tal sociedade, a discriminação torna-se o único meio de distinção,
uma espécie de lei universal segundo a qual certos grupos podem ser privados da igualdade
cívica, política e econômica. Não relacionada apenas à questão judaica, a discriminação torna-se
o ponto de cristalização de um movimento político, que deseja resolver através da violência e da
lei do populacho todos os conflitos e dificuldades naturais de um país multinacional. Um dos
mais promissores e perigosos paradoxos dos Estados Unidos está na ousadia da prática de
igualdade em meio à população mais desigual do mundo, física e historicamente. Nos Estados
Unidos, o antissemitismo social pode vir a ser, um dia, o núcleo muito perigoso de um
movimento político.[1] Na Europa, contudo, influiu pouco na ascensão do antissemitismo político.
continua página 67...
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Parte I Antissemitismo (3. Os Judeus e a Sociedade)
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[1] Embora até agora não os judeus, mas os negros — historicamente o mais discriminado dos povos da América —
tenham sofrido a carga do preconceito neste hemisfério, isso poderia mudar, se essa discriminação meramente social
se transformasse num movimento político. Nesse caso, os judeus poderiam subitamente tornar-se objeto principal do
ódio, pela simples razão de que eles próprios, ao contrário de todos os outros grupos, deram expressão, em sua
história e religião, ao princípio separatista, o que não ocorre com os negros ou chineses, os quais, portanto, correm
menor risco politicamente, embora possam diferir da maioria populacional fisicamente de modo mais acentuado que os
judeus.
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