quarta-feira, 18 de junho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (5b) - Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
5.

continuando...

      Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna completamente confusa. Perguntar-se-á: por quê? É que ela estava evidentemente em um estado de espírito mórbido. Sua apreensão subiu ao ponto extremo com a história do ouriço. Que significaria esse ouriço? Que convenção estaria nisso subentendida? Que representaria ele? Qual seria a mensagem cifrada? E ainda por cúmulo, Iván Fiódorovitch que aconteceu estar presente durante a conversa, estragou todo o negócio com a sua resposta. Na sua opinião não havia hieróglifo nem mensagem de qualquer espécie, o ouriço “era simplesmente um ouriço e nada mais do que um ouriço - no máximo significando um amistoso desejo de esquecer o amuo recente e recomeçar; em uma palavra, tudo era travessura, mas inocente e perdoável”.
     Devemos notar, entre parênteses, que ele conjeturara direito.
     O príncipe tinha voltado para casa depois de ter sido ridicularizado e despedido por Agláia, tendo ficado sentado a um canto, mais de meia hora, no mais negro dos desesperos quando, inesperadamente, surgiu Kólia com o ouriço. E o céu logo clareou. Foi como se o príncipe tivesse ressuscitado. Deu em perguntar uma porção de coisas a Kólia, suspenso em cada palavra dita por ele, repetindo as perguntas mais de dez vezes, rindo como uma criança e continuamente apertando as mãos dos dois garotos engraçados que o examinavam com tanta franqueza.
     A conclusão de tudo era que Agláia o perdoara e que poderia ir vê-la outra vez. Iria à noite, e isso para ele não era o fato principal, mas o único.

- Que crianças que vocês são, Kólia! E... e... que belo é que vocês sejam assim crianças! - exclamara, por fim, jubiloso.
 - O fato puro é que ela está apaixonada pelo senhor, príncipe, isso é que é tudo! - respondera Kólia com autoridade, categoricamente.

     O príncipe enrubesceu, mas desta vez não respondeu nada, tendo Kólia simplesmente rido e batido palmas. Um minuto depois ria o príncipe também; e desde então começou a olhar para o relógio cada cinco minutos, para ver como o tempo custava a passar, achando que demorava para chegar a noite. Mas o temperamento da Sra. Epantchíná sobrepujou qualquer senso de conveniência; por fim, não pôde deixar de desafogar a sua excitação paroxística.
     A despeito dos protestos do marido e das filhas, imediatamente mandou chamar Agláia, com o fim de lhe fazer a fatal pergunta e arrancar-lhe uma resposta perfeitamente clara e decisiva. “Para pôr um fim nisso tudo, de uma vez para sempre, para ficar livre e não ter de voltar ao assunto de novo! Se esperar até amanhã, morro sem vir a saber!” E foi então que eles se deram conta do absurdo ponto a que tinham levado as coisas. Não puderam extrair de Agláia senão fingida admiração, cólera, risadas e gracejos para com o príncipe e para quantos a interrogavam.
     Lizavéta Prokófievna permaneceu nos seus aposentos até ao anoitecer, só descendo para o chá na hora em que o príncipe era esperado. Aguardava a vinda dele em pânico e quase caiu com um ataque quando ele apareceu. O príncipe, por sua parte, entrou timidamente, como que procurando um lugar conveniente, olhando para os olhos de todo o mundo, e com o ar de querer indagar de todos eles por que era que Agláia não estava já na sala, fato que logo o deixou preocupado.
     Essa noite não estava presente nenhuma outra visita. A família estava só. O Príncipe Chtch... ainda se achava em Petersburgo, ocupado com os negócios do tio de Evguénii Pávlovitch. “Se esse, ao menos, estivesse aqui, para dizer qualquer coisa, fosse o que fosse” - disse Lizavéta Prokófievna a si própria, deplorando aquela ausência. Iván Fiódorovitch mostrava-se com um ar espantado; as irmãs permaneciam sérias e, de propósito, ou não, caladas. Lizavéta Prokófievna ficou sem saber como iniciar a conversa.
     Finalmente, vigorosamente criou ânimo e descompôs a estrada de ferro, encarando o príncipe como em um resoluto desafio. Pobre Míchkin! Agláia não descia e ele estava em palpos de aranha. Perdendo a cabeça e mal podendo pronunciar as palavras, exprimiu a opinião de que melhorar a linha seria excessivamente prático; mas Adelaída riu de repente, e ele ficou outra vez esmagado. Foi nesse instante que Agláia surgiu.
     Calmamente e com dignidade, fez uma cerimoniosa curvatura para o príncipe e solenemente se foi sentar no lugar mais à vista, junto à mesa redonda. De lá olhava para o príncipe, indagadoramente. E todo o mundo percebeu que era chegado o momento em que todas as dúvidas seriam dissipadas. Foi então que ela lhe perguntou firmemente e com ar quase de reprimenda:

- Recebeu o meu ouriço? 
- Recebi - respondeu o príncipe, com o coração sucumbido; e ficou escarlate. 
- Então explique logo o que pensa a respeito. Isso é essencial para a paz de espirito de mamãe e de toda a família.
- Agláia, minha filha, Agláia... - começou o general subitamente alvoroçado. 
- Mas que despropósito, menina! - disse Lizavéta Prokófievna, alarmada, sem saber direito por quê. 
- Não vejo em que seja isso um despropósito, mamãe! - respondeu logo a filha, desabridamente - Eu hoje mandei ao príncipe um ouriço, e quero saber a opinião dele. Então, príncipe?
- Mas que espécie de opinião, Agláia Ivánovna?
- Sobre o ouriço.
- Quereis dizer, suponho eu, Agláia Ivánovna, que desejais saber como eu recebi.., o ouriço... ou, melhor, como encarei o fato de.. me mandardes.., o ouriço, isto é... Em tal caso, a meu ver, creio que, de fato...

     Faltou-lhe o ar e emudeceu. 

- Bem, não disse lá grande coisa - sentenciou Agláia, depois de esperar cinco segundos. - Muito bem. Concordo em que ponhamos de lado o ouriço. Mas ficarei muito contente se puder pôr um fim a uma série de mal-entendidos que se veem acumulando entre nós. Quero saber pessoalmente se pretende me pedir em casamento, ou não?  
- Deus do Céu! - rompeu do peito de Lizavéta Prokófievna.

     O príncipe sobressaltou-se e recuou; Iván Fiódorovitch ficou petrificado, as irmãs fecharam os semblantes.

- Não minta, príncipe. Diga a verdade. Por sua causa venho sendo perseguida por estranhas perguntas. Há qualquer fundamento para que tais perguntas se deem? Então?!...
- Eu não vos fiz o meu pedido, Agláia Ivánovna - o príncipe subitamente reanimado. - Mas sabeis quanto vos amo e quanto creio em vós.., mesmo agora.
- O que eu estou perguntando é.. se está pedindo, ou não está pedindo a minha mão!
- Estou - respondeu Míchkin com o coração opresso.

     Seguiu-se um movimento geral de pasmo.

- A coisa não é absolutamente assim, meu caro amigo - atalhou Iván Fiódorovitch, violentamente agitado - Isto... isto é quase impossível, se é que é assim, Agláia. Perdoe, príncipe, perdoe,. meu caro amigo!... Lizavéta Prokófievna! - e se voltou pedindo o auxílio da esposa - Tu deves tomar parte nisto...
- Eu não! Recuso-me! - exclamou Lizavéta Prokófievna sacudindo as mãos.
- Deixe que eu fale, mamãe. Neste caso eu valho alguma coisa; o momento capital da minha sorte está sendo decidido (esta foi a expressão usada por Agláia). Eu quero decidir por mim mesma e fico contente de o fazer perante todos aqui. Permita que lhe pergunte, príncipe: se “acaricia tal intenção”, de que modo se propõe a assegurar a minha felicidade? 
- Para falar a verdade, não sei, Agláia Ivánovna; como responder-vos a esta pergunta... Responder o quê? E, além do mais, é isso necessário? 
- Parece-me que está embaraçado e com falta de ar. Descanse um pouco e refaça o seu espírito. Beba um copo de água, embora daqui a pouco lhe tragam um pouco de chá.
- Eu vos amo, Agláia Ivánovna, eu vos amo muitíssimo, não amo senão a vós e... Não gracejeis, imploro-vos.., eu vos amo muitíssimo.
- Trata-se de um assunto importante, aliás, e não somos crianças; devemos encará-lo praticamente... Tenha a bondade de explicar qual é a sua fortuna!
- Agláia, que é isso? Que é que você está fazendo? Não se trata disso, absolutamente não se trata disso -   murmurou Iván Fiódorovitch, desapontado. 
- Que vergonha! - disse Lizavéta Prokófievna em um balbucio audível, ao que Aleksándra, também em um balbucio, rematou. - Ela está fora do seu juízo. 
- A minha fortuna?... Isto é, quanto tenho em dinheiro? - disse o príncipe, aparvalhado.
- Justamente!
- Atualmente... eu tenho cento e trinta e cinco mil rublos - afirmou o príncipe, corando. 
- E é tudo? - disse Agláia, alto, com franca admiração, sem nenhum fingido rubor - Não tem importância, todavia, principalmente vivendo com economia. Pensa entrar para algum cargo?
- Eu estava pensando em me preparar para os exames, a ver se me torno um preceptor...
- Muito apropriado; e nem há dúvida que isso aumentará a sua renda. Pretende então vir a ser um gentil-homem da câmara?
- Gentil-homem da câmara? Nunca pensei nisso, mas...

     Mas a essa altura as duas irmãs não puderam resistir e caíram na gargalhada. Adelaída já havia desde antes reparado pelos traços contraídos do rosto de Agláia sintomas de iminente e irreprimível risada que ela estava a prender com quanta força tinha. Olhou Agláia ameaçadoramente para as irmãs que ainda riam, mas um segundo depois também ela desandou em um acesso de gargalhada frenética e quase histérica. Por fim se levantou e saiu correndo da sala.

- Eu já estava vendo que tudo era brincadeira e nada mais! - exclamou Adelaída.
- Desde o começo, desde a história do ouriço.
- Não, isso não permitirei. De modo algum - e exasperada, fervendo de raiva, Lizavéta Prokófievna se precipitou atrás de Agláia.

     As irmãs correram lá para dentro, imediatamente, atrás dela. O príncipe ficou sozinho na sala, com o chefe da família.

- Isso agora... Poderia você imaginar uma coisa destas, Liév Nikoláievitch? exclamou abruptamente o General Epantchín, mal sabendo o que deveria dizer. - Sim, seriamente, diga-me! 
- Vejo que Agláia Ivánovna está se rindo de mim - disse Míchkin, tristemente.
- Espere um pouco, meu rapaz. Vou até lá e você espere aí um pouco, porque... afinal de contas, você, no mínimo, Liév Nikoláievitch, deve me explicar já agora como foi que tudo isso aconteceu, e que significa isto encarado em conjunto, por assim dizer?! Você há de concordar, meu rapaz - eu sou o pai dela! Seja como for, sou pai... E todavia não compreendo nada; que você ao menos me ponha a par. 
- Eu amo Agláia Ivánovna, ela sabe disso... e eu acho que o sabe há muito tempo.

     O general encolheu os ombros. 

- Estranho, estranho!... E você gosta mesmo muito dela?
- Muito.  
- Pois tudo isso me parece muito estranho. Isto é uma surpresa e um tal golpe que eu... Quer saber de uma coisa, meu rapaz, não se trata de fortuna (embora eu esperasse que você tivesse um pouco mais), mas é a felicidade de minha filha... De fato... está você em condições de assegurar... a felicidade dela? E... e... que significa isso? É brincadeira ou é verdade, da parte dela? Não quanto a você, mas quanto a ela, me refiro eu agora.

     Nisto se ouviu a voz de Aleksándra, lá da porta, chamando o pai.

- Espere um pouco, meu rapaz, espere um pouco! Espere um pouco e fique aí a cogitar. Voltarei já – disse apressadamente, quase que em alarma, avançou lá para dentro em resposta ao chamado.

     Encontrou a mulher e a filha, uma nos braços da outra, misturando as lágrimas. Eram lágrimas de felicidade, de ternura e reconciliação. Agláia estava beijando as mãos da mãe, as faces e os lábios. Permaneciam apertadas em um grande amplexo. 

- Olhe para isto, Iván Fiódorovitch. Aqui está ela, como realmente é - dizia Lizavéta Prokófievna.

     Agláia escorregou aquele seu rosto feliz, banhado de lágrimas, até ao seio materno, e depois olhou para o pai; riu alto, atirou-se sobre ele, abraçou-o calorosamente, beijando-o várias vezes. Depois se atirou de novo sobre sua mãe, e escondeu o rosto completamente no seio dela, sem que ninguém o pudesse ver. E logo desatou a chorar outra vez. Lizavéta Prokófievna cobria-a com a ponta da sua manta.

- Que é que nos estás fazendo, tu, cruel menina, é só o que eu quero saber! - dizia, mas jubilosamente, como se já agora pudesse respirar mais livremente.
- Como sou cruel! Como sou cruel! - concordava ela. - E ruim! Não valho nada. Dize isso a papai. Oh! Sim, ele está aqui. Papai, estás aqui? Estás ouvindo? - e riu por entre as lágrimas. 
- Minha querida! Meu ídolo! - o general beijava-lhe as mãos, todo resplandecente de felicidade. Agláia não retirou a mão. - Assim, pois, tu então amas esse jovem?
- Não! Não posso suportar o teu jovem. Não o tolero! - exclamou Agláia, se inflamando repentinamente, e erguendo a cabeça. - E se tu, papai, ousas outra vez... Eu já disse, papai, eu quero dizer, papai, estás ouvindo, eu quero significar que...

     E certamente que seus modos eram veementes. Ficou vermelha e os seus olhos cintilaram. O pai quedou estático e sem jeito. Mas Lizavéta Prokófievna lhe fez um sinal por detrás da filha e ele tomou tal sinal como significando: “Não faças perguntas.” 

- Se assim é, meu anjo, seja como quiseres, é a ti que cabe decidir; ele ficou esperando lá, sozinho. Deveremos nós dar-lhe a entender que se deva ir embora?

     Iván Fiódorovitch, por seu turno, piscou para a esposa.

- Não, não, isso não é necessário. E nem seria delicado. Tu vais até ele, tu mesmo, papai. E eu entrarei logo a seguir. Desejo pedir perdão a esse bom rapaz, porque feri os seus sentimentos.
- Sim, e de um modo terrível - concordou Iván Fiódorovitch, muito sério.
- Bem, então... o melhor é ficarem aqui e eu entro sozinha. Logo imediatamente depois entram todos. Mas venham imediatamente, mal eu esteja chegando; será melhor.   
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (5b) - Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna
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