sexta-feira, 20 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Noite de Valburga (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo V

Noite de Valburga 
.
continuando...

     Realmente, o Dr. Behrens achava-se no salão, rodeado pela multidão dos pensionistas, que lhe estendiam pequenos copos com asas. À sua frente havia a mesinha redonda do centro, coberta por uma toalha branca. Nela se via uma terrina, da qual o conselheiro tirava, com uma concha, a fumegante bebida. Também ele dera à sua aparência um cunho levemente carnavalesco, acrescentando ao avental de médico, que levava como sempre, uma vez que a sua atividade não conhecia descanso, um autêntico fez turco, carmesim, com uma borla negra a balouçar-se junto à orelha. Essa combinação parecia-lhe disfarce suficiente; bastava para levar aos limites da excentricidade e da pândega a sua aparência já em si fora do comum. O longo avental branco exagerava o tamanho do conselheiro. Quando se fazia abstração da curvatura da nuca, endireitando-a mentalmente e fazendo o corpo alcançar a sua altura verdadeira, a silhueta do homem, com a cabecinha de singulares colorido e aspecto, parecia aumentada. Pelo menos ao jovem Hans Castorp, esse rosto jamais se afigurara tão esquisito como nesse dia, quando contrastava com o ridículo fez vermelho; essa fisionomia achatada, com o nariz arrebitado, com a pele azulada, que dava a impressão de estar quente, com os olhos azuis lacrimosos e saltados sob as sobrancelhas de um louro quase branco, e com o bigodinho claro a torcer-se obliquamente por cima da boca arqueada, de lábios grossos. Procurando evitar o vapor quente que, turbilhonando, saía da terrina, o médico fazia a beberagem parda – um falso ponche açucarado – manar num arco que se estendia da concha até o copo apresentado. Acompanhava isso com incessantes discursos na sua gíria alegre, de modo que contínuas gargalhadas associavam-se à distribuição da bebida. 

– “No topo monta Dom Urião” – explicou Settembrini em voz baixa, apontando para o conselheiro áulico. Em seguida, a corrente separou-o de Hans Castorp. Também o Dr. Krokowski estava presente. Baixote, atarracado e enérgico, tinha o casaco de alpaca preta suspenso dos ombros, com as mangas pendendo vazias, a ponto de produzir o efeito de um dominó; mantendo a taça à altura dos olhos, conversava jovialmente com um grupo de mascarados de sexo trocado. Ouviram-se sons de música. A paciente com a cara de anta tocou ao violino, acompanhada pelo rapaz de Mannheim, o Largo de Haendel e depois uma sonata de Grieg, de caráter nacional e adequado ao ambiente de salão. Houve aplausos benevolentes, até nas duas mesas de bridge que tinham sido armadas, e em torno das quais se haviam instalado pessoas fantasiadas, com garrafas em baldes de gelo ao lado. As portas estavam abertas. Também no vestíbulo achavam-se pensionistas. Um grupo cercava a mesa redonda, com a terrina de ponche, olhando o conselheiro empenhado em introduzir um novo jogo de salão. Desenhava ele com os olhos fechados, de pé, inclinado por cima da mesa, mas deitando a cabeça para trás, para que todos pudessem ver que realmente não abria os olhos. Nas costas de um cartão de visita, esboçava a lápis uma figura, às cegas. Eram os contornos de um porco o que a sua manopla desenhava sem a ajuda dos olhos; um porquinho visto de perfil, um tanto simplificado, mais esquemático do que naturalístico, porém incontestavelmente a essência de um porquinho, que o conselheiro ia traçando sob essas condições difíceis. Exigia muita habilidade, e ele dispunha dela. O olhinho rasgado entrou, pouco mais ou menos, onde devia entrar, talvez um pouco perto do focinho, mas, de qualquer maneira, em seu lugar; o mesmo se deu com a orelha pontuda e com as perninhas que pendiam da arredondada pança; prolongando a linha das costas, igualmente redondas, o rabinho formava um saca rolhas muito elegante. Todos exclamaram “ah!”, quando a obra estava concluída, e apressaram-se a imitar a proeza, tomados da ambição de igualar o mestre. Mas eram muito poucos os que sabiam desenhar, com os olhos abertos, um porquinho apresentável, e ainda menos às cegas. Que monstros não resultaram das suas tentativas! Não havia nenhuma relação entre os traços. O olhinho colocado fora da cabeça; as patinhas dentro da pança, que por sua vez ficava vastamente aberta; o rabinho enrolava-se em algum lugar longe do corpo, sem nenhuma relação orgânica com a figura principal, formando um arabesco independente. Houve ondas de risadas. O grupo aumentou. Foi atraída a atenção dos jogadores de bridge, que se aproximaram, curiosos, com as cartas abertas em leque na mão. A assistência controlava os olhos de quem experimentava, para certificar-se de que ninguém estivesse fazendo trapaça, como alguns tentavam, na sensação da sua impotência. Os espectadores riam-se aberta ou secretamente, enquanto o candidato cometia seus erros cegos, e rebentavam de júbilo quando ele, abrindo os olhos, contemplava a sua obra absurda. Uma confiança falaz em, si próprios impelia todos a participar da competição. O cartão, apesar de bem grande, encheu-se rapidamente em ambos os lados, de maneira que os desenhos entravam uns nos outros. O conselheiro sacrificou um segundo cartão, que tirou da sua carteira, e sobre o qual o Promotor Paravant, segundo um plano premeditado, tentou desenhar o porquinho num só traço, com o único resultado de malograr de forma muito pior do que os outros; os rabiscos que saíram de seu lápis não somente não se pareciam com nenhum porco, mas tampouco recordavam, nem de longe, qualquer coisa deste mundo. Novos gritos, novas gargalhadas e tumultuosas felicitações. A seguir foram buscar cardápios na sala de refeições, para que diversas pessoas, cavalheiros e senhoras, pudessem desenhar ao mesmo tempo. Todos os competidores tinham seus vigilantes e seus espectadores, cada um dos quais esperava a sua vez de se apossar do lápis que estava sendo usado. Havia apenas três lápis, que eram arrebatados. Todos eles pertenciam a pensionistas. O conselheiro, ao ver que o jogo estava bem encaminhado, desapareceu acompanhado do assistente.

     No meio da multidão, Hans Castorp observava por cima do ombro de Joachim o trabalho de um dos desenhistas; tinha o cotovelo apoiado nesse ombro e o queixo agarrado com toda a mão, enquanto a outra se fincava no quadril. Falava e ria. Também queria desenhar. Reclamou em voz alta e recebeu um lápis, um pedaço bem curtinho, que mal se podia segurar entre o polegar e o indicador. Protestou contra esse toco, com os olhos fechados erguidos para o teto; resmungou em voz alta e praguejou contra a insuficiência do lápis, enquanto a mão apressada rabiscava no cartão uma espantosa monstruosidade, que por fim se estendia até sobre a toalha. – Isso não vale! – exclamou em meio às merecidas risadas. – Como se pode com um troço... Que vá para o diabo! – E atirou na terrina de ponche o toco assim acusado. – Quem tem um lápis decente? Quem me empresta um? Tenho de desenhar outra vez. Um lápis! Um lápis! Quem tem outro lápis? – gritou, voltando-se para todos os lados, com o antebraço esquerdo ainda firmado na mesa, e agitando no ar a mão direita. Não pôde obter nenhum. Eis que deu meia-volta e atravessou a peça, continuando a gritar. Foi em direção a Clávdia Chauchat, que, como ele sabia, se achava perto do reposteiro diante da salinha e dali observava sorrindo o alvoroço em torno da mesa de ponche.
     Atrás de si, Hans Castorp ouviu chamar, em palavras sonoras e estrangeiras: – Eh! Ingegnere! Aspetti! Che cosa fa, ingegnere! Un po' di ragione, as! Ma è matto questo ragazzo! – Mas abafou essa voz com a sua própria. Viu-se então como o Sr. Settembrini levantou a mão acima da cabeça – gesto usado em seu país, de um sentido difícil de se expressar em poucas palavras, e que ele acompanhou de um “Eh!” prolongado –, depois do quê abandonou o ambiente carnavalesco... Hans Castorp, porém, achando-se no meio do pátio ladrilhado, fitou de muito perto o azul verde cinzento desses olhos providos de epicanto, acima das maçãs salientes, e disse:

– Tu não tens, por acaso, um lápis?

     Estava pálido como a morte, tão pálido como naquele dia quando, manchado de sangue, após o passeio solitário, fora assistir à conferência. Os nervos que controlavam os vasos capilares de seu rosto funcionavam de tal maneira que a pele exangue emurcheceu, lívida e fria, fazendo com que o nariz parecesse mais pontiagudo e a parte abaixo dos olhos adquirisse uma cadavérica cor de chumbo. O nervo simpático, por sua vez, mandava o coração de Hans Castorp martelar num ritmo tão acelerado que já não se podia falar de uma respiração regular. Calafrios percorriam o corpo do jovem, devido a um trabalho das glândulas sebáceas, que se eriçavam junto com os folículos pilosos. 
     A mulher do tricórnio de papel contemplou-o de alto a baixo com um sorriso que não revelava nenhum vestígio de compaixão ou desassossego diante do aspecto transtornado de Hans Castorp. O sexo feminino ignora, aliás, tal compaixão e desassossego diante dos terrores que traz consigo a paixão, esse elemento que, evidentemente, lhe é muito mais familiar do que ao homem, o qual, por natureza, não se dá com ele. Daí acontece que a mulher nunca o vê numa situação dessas sem sentir vontade de escarnecer e de mostrar uma alegria maliciosa. Por outro lado, o homem protestaria contra qualquer testemunho de compaixão e de desassossego. 

– Eu? – respondeu àquele “tu” a enferma dos braços desnudos... – Sim, pode ser. – No seu sorriso e na sua voz talvez transparecesse um pouco da emoção que se produz, quando, depois de prolongadas relações mudas, se profere a primeira palavra; é uma emoção sutil que secretamente inclui o passado inteiro no momento presente. – Tens muita ambição... és muito... ardoroso – continuou zombando na sua pronúncia exótica, com o “r” estrangeiro e o “e” demasiado aberto. A voz levemente velada, agradavelmente rouca, dava às palavras uma acentuação esquisita que as fazia parecer completamente novas. Enquanto isso, remexia a bolsinha de couro, vendo se descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma minúscula lapiseira de prata, frágil e fininha, artigo de fantasia inútil para trabalho sério. O lápis de outrora, o primeiro, fora diferente, mais prático e mais autêntico. 
Voilà – disse ela, pondo diante dos olhos de Hans Castorp a pequena lapiseira, que segurava pela ponta, entre o polegar e o indicador, balouçando-a ligeiramente.  

     Como ela fingisse oferecê-la e negá-la ao mesmo tempo, ele, então, fez menção de pegá la, sem a receber; quer dizer, levou a mão à altura do objeto, bem próximo dele, com os dedos prontos para apanhá-lo, mas sem concluir o ato. Do fundo das órbitas cor de chumbo, seu olhar fixava-se alternadamente na lapiseira e no rosto tártaro de Clávdia. Seus lábios exangues estavam abertos e permaneciam assim sem que ele se servisse deles para falar, quando disse: 

– Estás vendo? Eu já sabia que tinhas um lápis. 
Prenez garde, il est un peu fragile – respondeu ela. – C’est à visser, tu sais.

     E enquanto as duas cabeças se avizinhavam por cima da lapiseira, explicou-lhe ela o mecanismo, que nada tinha de anormal. Fazendo-se girar a rosca, aparecia uma mina de grafite, delgada qual uma agulha, provavelmente dura e pouco própria para escrever.
     Permaneciam inclinados um para o outro. Como ele trajasse smoking, podia escorar o queixo no colarinho engomado.

– Pequenino, mas com carinho – disse Hans Castorp, com a testa quase tocando a dela, mas falando em direção ao lápis, sem mover os lábios e portanto suprimindo as consoantes labiais.
– Ah! És também espirituoso? – tornou ela com uma rápida risada, endireitando-se e abandonando-lhe a lapiseira. (Deus sabe do que ele se servia para fazer espírito, já que, manifestamente, não tinha nenhuma gota de sangue na cabeça.) – Pois então, vai, não percas tempo! Desenha, desenha uma figura, faze um figurão! – Tinha-se a impressão de que ela, de forma igualmente espirituosa, procurava afastá-lo. 
– Não. Tu ainda não desenhaste. Deves desenhar também – disse Hans Castorp, sem pronunciar as labiais. Ao mesmo tempo recuou um passo, como para fazê-la seguir. 
– Eu? – perguntou ela novamente com uma surpresa que parecia referir-se antes a outra coisa do que à sua proposta. Sorrindo, mas um tanto perturbada, permaneceu imóvel durante um momento. Depois, porém, obedecendo ao magnetismo do recuo de Hans Castorp, deu alguns passos em direção à mesa de ponche. 

     Verificou-se, entretanto, que o interesse pelo jogo decaíra nesse ínterim e estava nas últimas. Havia ainda quem desenhasse, mas já não encontrava espectadores. Os cartões jaziam cobertos de garatujas. Todos tinham manifestado a sua incapacidade. A mesa achava-se quase deserta, tanto mais que uma contracorrente começava a agir. Os pensionistas acabavam de notar a saída dos médicos, e de repente alguém sugeriu que se dançasse. Logo se puseram a tirar a mesa do centro da sala. Vigias foram colocados nas portas da sala de correspondência e da saleta de música, com a ordem de dar um sinal para interromper o baile, caso reaparecessem o “Velho”, Krokowski ou a Superiora. Um rapaz eslavo atacou com fervor o teclado do pequeno piano de nogueira. Os primeiros pares começaram a girar pelo interior de um círculo irregular, formado por poltronas e cadeiras, nas quais estavam sentados os espectadores.
     Hans Castorp fez um vago gesto de mão, como para dizer adeus à mesa que se afastava. Apontou com o queixo para alguns assentos livres que descobrira na saleta, e para um cantinho bem abrigado à direita do reposteiro. Não falou, talvez porque a música lhe parecesse muito barulhenta. Colocou, para Mme. Chauchat, uma poltrona forrada de pelúcia, no lugar que antes assinalara pantomimicamente. Para si mesmo apossou-se de uma cadeira de vime, de braços redondos, e que gemeu e rangeu, quando nela se sentou. Inclinou-se para Mme. Chauchat, apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, com a lapiseira na mão e com os pés para trás, embaixo da cadeira. Ela, por sua vez, afundou-se no estofamento coberto de pelúcia; seus joelhos achavam-se muito levantados, mas, apesar disso, cruzou as pernas e balançou um dos pés, cujo tornozelo, acima da margem do sapato de verniz preto, desenhava-se sob a seda igualmente preta da meia. À sua frente estavam sentadas outras pessoas, que se levantavam para dançar e cediam o lugar a outras, cansadas. Era um constante vaivém. 

– Estás com um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter o direito de olhá-la, e ouviu como ela respondia: 
– Novo? Então conheces o meu vestuário? 
– Tenho ou não tenho razão? 
– Tens, sim. Mandei fazê-lo aqui, recentemente, no Lukacek, na aldeia. Ele trabalha muito para as senhoras daqui. O vestido te agrada? 
– Muito – respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os olhos. – Queres dançar? – acrescentou. 
– E tu, gostarias? – perguntou ela, sorrindo, com as sobrancelhas alçadas, ao que ele replicou: 
– Gostaria, sim, se tivesse vontade. 
– És mais levadinho do que eu pensava – observou ela, e quando ele se riu desdenhosamente, acrescentou: – Teu primo já se foi? 
– Pois é, é meu primo – confirmou Hans Castorp sem necessidade. – Eu também notei que ele não está mais aqui. Acho que já se recolheu.
C’est un jeune homme très étroit, très honnête, très Allemand
Étroit? Honnête? – repetiu ele. – Entendo o francês muito melhor do que falo. Queres então dizer que ele é um pedante. Achas que os alemães são pedantes, nous autres Allemands? 
Nous causons de votre cousin. Mas c'est vrai, vocês são um pouco bourgeois. Vous aimez l’ordre mieux que la liberté, toute l’Europe le sait
Aimer... aimer... Qu’est-ce que c’est? Ça manque de définition, ce mot-là. Um ama, outro possui, comme nous disons proverbialement – afirmou Hans Castorp e prosseguiu: – nos últimos tempos meditei às vezes sobre a liberdade. Isto é: ouvi esta palavra com tanta frequência, que me fez refletir. Je te le dirai en français o que pensei a respeito. Ce que toute l’Europe nomme la liberté est peut-être une chose assez pêdante et assez bourgeoise en comparaison de notre besoin d'ordre – c'est ça
Tiens! C’est amusant. C’est ton cousin à qui tu penses en disant des choses étranges comme ça
– Não, c'est vraiment une bonne âme, uma natureza singela, cujo espírito não corre nenhum perigo, tu sais. Mais il n'est pas bourgeois, il est militaire
– Não corre perigo? – repetiu ela com alguma dificuldade... – Tu veux dire: une nature tout à fait ferme, sûre d'elle-même? Mais il est sérieusement malade, ton pauvre cousin
– Quem te disse isso? 
– Aqui a gente anda bem informada sobre os outros. 
– O Dr. Behrens te disse isso? 
Peut-être en me faisant voir ses tableaux
C’est-à-dire: en faisant ton portrait
Pourquoi pas? Tu l’as trouvé réussi, mon portrait
Mais oui, extrêmement. Behrens a três exactement rendu ta peau, oh vraiment, très fidèlement. J’aimerais beaucoup être portraitiste, moi aussi, pour avoir l’occasion d'étudier ta peau comme lui. 
Parlez allemand, s’il vous plaît! 
– Oh, eu falo alemão também quando falo francês. C’est une sorte d’étude artistique et médicale – en un mot: il s’agit des lettres humaines, tu comprends. E então, não queres dançar? 
– Não. Acho isso pueril. En cachette des médecins. Aussitôt que Behrens reviendra, tout le monde va se précipiter sur les chaises. Ce sera fort ridicule
– Tens tanto respeito a ele? 
– A quem? – disse ela, pronunciando a interrogação com uma brevidade exótica. 
– A Behrens. 
Mais va donc avec ton Behrens! Além disso falta espaço para dançar. Et puis sur le tapis... Vamos ver como dançam os outros. 
– Pois sim, vamos – concordou ele, e pôs-se a olhar, sentado junto dela, com o rosto pálido; os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô observaram os saracoteios dos enfermos disfarçados, no salão e na biblioteca. A Irmã Muda saltitava com o Joãozinho Azul; a Srª. Salomon, fantasiada de cavalheiro engalanado, de casaca e colete branco, com uma camisa engomada de peito saliente, com um bigode pintado e com um monóculo, girava nos saltinhos altos dos seus sapatos de verniz, que, inaturalmente, saíam por baixo das calças de homem; seu par era o pierrô, cujos lábios luziam num vermelho de sangue no rosto caiado, e cujos olhos se pareciam com os de um coelho albino. O grego de mantilha requebrava suas pernas harmoniosas, revestidas de ceroulas violeta, em torno de Rasmussen, decotado e resplandecente de lantejoulas escuras. O promotor público, no seu quimono, a Srª. Wurmbrand e o jovem Gänser dançavam juntos, a três, mantendo-se abraçados, ao passo que a Stöhr bailava com a sua vassoura, que apertava contra o coração, e cujas crinas acariciava como se fossem a cabeleira hirsuta de um homem. – Vamos, sim – repetiu Hans Castorp mecanicamente. Falavam baixinho, no meio dos sons do piano. 
– Vamos sentar-nos aqui e olhar como num sonho. Para mim, isto é um sonho, sabes? estarmos sentados assim – comme un rêve singulièrement profond, car il faut dormir très profondément pour rêver comme cela... Je veux dire: c’est un rêve bien connu, rêvé de tout temps, long, éternel, oui, être assis près de toi comme à présent, voilà l’éternité.
Poète! – disse ela. – Bourgeois, humaniste et poète – voilà l’allemand au complet, comme il faut
– Je crains que nous ne soyons pas du tout et nullement comme il faut – replicou ele. – Sous aucun égard. Nous sommes peut-être des filhos enfermiços da vida, tout simplement. 
Joli mot. Dis-moi donc... Il n’aurait pas été fort difficile de rêver ce revê-là plus tôt. C’est un peu tard que monsieur se résout à adresser la parole à son humble servante
Pourquoi des paroles? – disse ele. – Pourquoi parler? Parler, discourir, c’est une chose bien républicaine, je le concède. Mais je doute que ce soit poétique au même degré. Un de nos pensionnaires, qui est un peu devenu mon ami, Monsieur Settembrini... 
Il vient de te lancer quelques paroles
Eh bien, c’est un grand parleur, sans doute, il aime même beaucoup à réciter de beaux vers – mais est ce un poète, cet homme-là
Je regrette sincèrement de n’avoir jamais eu le plaisir de faire la connaissance de ce chevalier
Je le crois bien
Ah! Tu le crois
Comment? C’était une phrase tout à fait indifférente, ce que j’ai dit là. Moi, tu le remarques bien, je ne parle guère le français. Pourtant, avec toi je préfère cette langue à la mienne, car pour moi parler français c’est parler sans parler, en quelque manière – sans responsabilitê, ou comme nous parlons en rêve. Tu comprends
A peu près
Ça suffit... Parler – continuou Hans Castorp – pauvre affaire! Dans l’éternité, on ne parle point. Dans l’éternité, tu sais, on fait comme en dessinant un petit cochon: on penche la tête en arrière et on ferme les yeux
Pas mal, ça! Tu es chez toi dans l’éternité, sans aucun doute, tu la connais à fond. Il faut avouer que tu es un petit rêveur assez curieux
Et puis – disse Hans Castorp —, si je t’avais parlé plus tôt, il m’aurait fallu te dire “vous”
Eh bien, est-ce que tu as l’intention de me tutoyer pour toujours
Mais oui. Je t’ai tutoyé de tout temps et je te tutoierai éternellement
C’est un peu fort, par exemple. En tout cas, tu n'auras pas trop longtemps l’occasion de me dire “tu”. Je vais partir. 

continua pág 220...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Noite de Valburga (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] “Vale” é uma palavra latina que significa “adeus”. É usada no final de um texto quando o autor se despede dos leitores. O trocadilho aqui se refere à palavra “carnaval” (Karneval = carne + vale). (N. do E.)
[2] Cenas do Fausto de Goethe. As demais citações de Settembrini são extraídas da mesma obra, particularmente da seção intitulada “Noite de Valburga”. (N. do E.)  

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