A Montanha Mágica
Capítulo V
Noite de Valburga
.
continuando...
Realmente, o Dr. Behrens achava-se no salão, rodeado pela multidão dos pensionistas,
que lhe estendiam pequenos copos com asas. À sua frente havia a mesinha redonda do centro,
coberta por uma toalha branca. Nela se via uma terrina, da qual o conselheiro tirava, com uma
concha, a fumegante bebida. Também ele dera à sua aparência um cunho levemente carnavalesco,
acrescentando ao avental de médico, que levava como sempre, uma vez que a sua atividade não
conhecia descanso, um autêntico fez turco, carmesim, com uma borla negra a balouçar-se junto à
orelha. Essa combinação parecia-lhe disfarce suficiente; bastava para levar aos limites da
excentricidade e da pândega a sua aparência já em si fora do comum. O longo avental branco
exagerava o tamanho do conselheiro. Quando se fazia abstração da curvatura da nuca,
endireitando-a mentalmente e fazendo o corpo alcançar a sua altura verdadeira, a silhueta do
homem, com a cabecinha de singulares colorido e aspecto, parecia aumentada. Pelo menos ao
jovem Hans Castorp, esse rosto jamais se afigurara tão esquisito como nesse dia, quando
contrastava com o ridículo fez vermelho; essa fisionomia achatada, com o nariz arrebitado, com a
pele azulada, que dava a impressão de estar quente, com os olhos azuis lacrimosos e saltados sob
as sobrancelhas de um louro quase branco, e com o bigodinho claro a torcer-se obliquamente por
cima da boca arqueada, de lábios grossos. Procurando evitar o vapor quente que, turbilhonando,
saía da terrina, o médico fazia a beberagem parda – um falso ponche açucarado – manar num
arco que se estendia da concha até o copo apresentado. Acompanhava isso com incessantes
discursos na sua gíria alegre, de modo que contínuas gargalhadas associavam-se à distribuição da
bebida.
– “No topo monta Dom Urião” – explicou Settembrini em voz baixa, apontando para o
conselheiro áulico. Em seguida, a corrente separou-o de Hans Castorp. Também o Dr.
Krokowski estava presente. Baixote, atarracado e enérgico, tinha o casaco de alpaca preta
suspenso dos ombros, com as mangas pendendo vazias, a ponto de produzir o efeito de um
dominó; mantendo a taça à altura dos olhos, conversava jovialmente com um grupo de
mascarados de sexo trocado. Ouviram-se sons de música. A paciente com a cara de anta tocou ao
violino, acompanhada pelo rapaz de Mannheim, o Largo de Haendel e depois uma sonata de
Grieg, de caráter nacional e adequado ao ambiente de salão. Houve aplausos benevolentes, até
nas duas mesas de bridge que tinham sido armadas, e em torno das quais se haviam instalado
pessoas fantasiadas, com garrafas em baldes de gelo ao lado. As portas estavam abertas. Também
no vestíbulo achavam-se pensionistas. Um grupo cercava a mesa redonda, com a terrina de
ponche, olhando o conselheiro empenhado em introduzir um novo jogo de salão. Desenhava ele
com os olhos fechados, de pé, inclinado por cima da mesa, mas deitando a cabeça para trás, para
que todos pudessem ver que realmente não abria os olhos. Nas costas de um cartão de visita,
esboçava a lápis uma figura, às cegas. Eram os contornos de um porco o que a sua manopla
desenhava sem a ajuda dos olhos; um porquinho visto de perfil, um tanto simplificado, mais
esquemático do que naturalístico, porém incontestavelmente a essência de um porquinho, que o
conselheiro ia traçando sob essas condições difíceis. Exigia muita habilidade, e ele dispunha dela.
O olhinho rasgado entrou, pouco mais ou menos, onde devia entrar, talvez um pouco perto do
focinho, mas, de qualquer maneira, em seu lugar; o mesmo se deu com a orelha pontuda e com as
perninhas que pendiam da arredondada pança; prolongando a linha das costas, igualmente
redondas, o rabinho formava um saca rolhas muito elegante. Todos exclamaram “ah!”, quando a
obra estava concluída, e apressaram-se a imitar a proeza, tomados da ambição de igualar o mestre.
Mas eram muito poucos os que sabiam desenhar, com os olhos abertos, um porquinho
apresentável, e ainda menos às cegas. Que monstros não resultaram das suas tentativas! Não
havia nenhuma relação entre os traços. O olhinho colocado fora da cabeça; as patinhas dentro da
pança, que por sua vez ficava vastamente aberta; o rabinho enrolava-se em algum lugar longe do
corpo, sem nenhuma relação orgânica com a figura principal, formando um arabesco
independente. Houve ondas de risadas. O grupo aumentou. Foi atraída a atenção dos jogadores
de bridge, que se aproximaram, curiosos, com as cartas abertas em leque na mão. A assistência
controlava os olhos de quem experimentava, para certificar-se de que ninguém estivesse fazendo
trapaça, como alguns tentavam, na sensação da sua impotência. Os espectadores riam-se aberta
ou secretamente, enquanto o candidato cometia seus erros cegos, e rebentavam de júbilo quando
ele, abrindo os olhos, contemplava a sua obra absurda. Uma confiança falaz em, si próprios
impelia todos a participar da competição. O cartão, apesar de bem grande, encheu-se rapidamente
em ambos os lados, de maneira que os desenhos entravam uns nos outros. O conselheiro
sacrificou um segundo cartão, que tirou da sua carteira, e sobre o qual o Promotor Paravant,
segundo um plano premeditado, tentou desenhar o porquinho num só traço, com o único
resultado de malograr de forma muito pior do que os outros; os rabiscos que saíram de seu lápis
não somente não se pareciam com nenhum porco, mas tampouco recordavam, nem de longe,
qualquer coisa deste mundo. Novos gritos, novas gargalhadas e tumultuosas felicitações. A seguir
foram buscar cardápios na sala de refeições, para que diversas pessoas, cavalheiros e senhoras,
pudessem desenhar ao mesmo tempo. Todos os competidores tinham seus vigilantes e seus
espectadores, cada um dos quais esperava a sua vez de se apossar do lápis que estava sendo
usado. Havia apenas três lápis, que eram arrebatados. Todos eles pertenciam a pensionistas. O
conselheiro, ao ver que o jogo estava bem encaminhado, desapareceu acompanhado do
assistente.
No meio da multidão, Hans Castorp observava por cima do ombro de Joachim o
trabalho de um dos desenhistas; tinha o cotovelo apoiado nesse ombro e o queixo agarrado com
toda a mão, enquanto a outra se fincava no quadril. Falava e ria. Também queria desenhar.
Reclamou em voz alta e recebeu um lápis, um pedaço bem curtinho, que mal se podia segurar
entre o polegar e o indicador. Protestou contra esse toco, com os olhos fechados erguidos para o
teto; resmungou em voz alta e praguejou contra a insuficiência do lápis, enquanto a mão
apressada rabiscava no cartão uma espantosa monstruosidade, que por fim se estendia até sobre a
toalha. – Isso não vale! – exclamou em meio às merecidas risadas. – Como se pode com um
troço... Que vá para o diabo! – E atirou na terrina de ponche o toco assim acusado. – Quem tem
um lápis decente? Quem me empresta um? Tenho de desenhar outra vez. Um lápis! Um lápis!
Quem tem outro lápis? – gritou, voltando-se para todos os lados, com o antebraço esquerdo
ainda firmado na mesa, e agitando no ar a mão direita. Não pôde obter nenhum. Eis que deu
meia-volta e atravessou a peça, continuando a gritar. Foi em direção a Clávdia Chauchat, que,
como ele sabia, se achava perto do reposteiro diante da salinha e dali observava sorrindo o
alvoroço em torno da mesa de ponche.
Atrás de si, Hans Castorp ouviu chamar, em palavras sonoras e estrangeiras: – Eh!
Ingegnere! Aspetti! Che cosa fa, ingegnere! Un po' di ragione, as! Ma è matto questo ragazzo! – Mas abafou
essa voz com a sua própria. Viu-se então como o Sr. Settembrini levantou a mão acima da cabeça – gesto usado em seu país, de um sentido difícil de se expressar em poucas palavras, e que ele
acompanhou de um “Eh!” prolongado –, depois do quê abandonou o ambiente carnavalesco...
Hans Castorp, porém, achando-se no meio do pátio ladrilhado, fitou de muito perto o azul verde
cinzento desses olhos providos de epicanto, acima das maçãs salientes, e disse:
– Tu não tens, por acaso, um lápis?
Estava pálido como a morte, tão pálido como naquele dia quando, manchado de sangue,
após o passeio solitário, fora assistir à conferência. Os nervos que controlavam os vasos capilares
de seu rosto funcionavam de tal maneira que a pele exangue emurcheceu, lívida e fria, fazendo
com que o nariz parecesse mais pontiagudo e a parte abaixo dos olhos adquirisse uma cadavérica
cor de chumbo. O nervo simpático, por sua vez, mandava o coração de Hans Castorp martelar
num ritmo tão acelerado que já não se podia falar de uma respiração regular. Calafrios percorriam
o corpo do jovem, devido a um trabalho das glândulas sebáceas, que se eriçavam junto com os
folículos pilosos.
A mulher do tricórnio de papel contemplou-o de alto a baixo com um sorriso que não
revelava nenhum vestígio de compaixão ou desassossego diante do aspecto transtornado de Hans
Castorp. O sexo feminino ignora, aliás, tal compaixão e desassossego diante dos terrores que traz
consigo a paixão, esse elemento que, evidentemente, lhe é muito mais familiar do que ao homem,
o qual, por natureza, não se dá com ele. Daí acontece que a mulher nunca o vê numa situação
dessas sem sentir vontade de escarnecer e de mostrar uma alegria maliciosa. Por outro lado, o
homem protestaria contra qualquer testemunho de compaixão e de desassossego.
– Eu? – respondeu àquele “tu” a enferma dos braços desnudos... – Sim, pode ser. – No
seu sorriso e na sua voz talvez transparecesse um pouco da emoção que se produz, quando,
depois de prolongadas relações mudas, se profere a primeira palavra; é uma emoção sutil que
secretamente inclui o passado inteiro no momento presente. – Tens muita ambição... és muito...
ardoroso – continuou zombando na sua pronúncia exótica, com o “r” estrangeiro e o “e”
demasiado aberto. A voz levemente velada, agradavelmente rouca, dava às palavras uma
acentuação esquisita que as fazia parecer completamente novas. Enquanto isso, remexia a
bolsinha de couro, vendo se descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma minúscula lapiseira
de prata, frágil e fininha, artigo de fantasia inútil para trabalho sério. O lápis de outrora, o
primeiro, fora diferente, mais prático e mais autêntico.
– Voilà – disse ela, pondo diante dos olhos de Hans Castorp a pequena lapiseira, que
segurava pela ponta, entre o polegar e o indicador, balouçando-a ligeiramente.
Como ela fingisse oferecê-la e negá-la ao mesmo tempo, ele, então, fez menção de pegá
la, sem a receber; quer dizer, levou a mão à altura do objeto, bem próximo dele, com os dedos
prontos para apanhá-lo, mas sem concluir o ato. Do fundo das órbitas cor de chumbo, seu olhar
fixava-se alternadamente na lapiseira e no rosto tártaro de Clávdia. Seus lábios exangues estavam
abertos e permaneciam assim sem que ele se servisse deles para falar, quando disse:
– Estás vendo? Eu já sabia que tinhas um lápis.
– Prenez garde, il est un peu fragile – respondeu ela. – C’est à visser, tu sais.
E enquanto as duas cabeças se avizinhavam por cima da lapiseira, explicou-lhe ela o
mecanismo, que nada tinha de anormal. Fazendo-se girar a rosca, aparecia uma mina de grafite,
delgada qual uma agulha, provavelmente dura e pouco própria para escrever.
Permaneciam inclinados um para o outro. Como ele trajasse smoking, podia escorar o
queixo no colarinho engomado.
– Pequenino, mas com carinho – disse Hans Castorp, com a testa quase tocando a dela,
mas falando em direção ao lápis, sem mover os lábios e portanto suprimindo as consoantes
labiais.
– Ah! És também espirituoso? – tornou ela com uma rápida risada, endireitando-se e
abandonando-lhe a lapiseira. (Deus sabe do que ele se servia para fazer espírito, já que,
manifestamente, não tinha nenhuma gota de sangue na cabeça.) – Pois então, vai, não percas
tempo! Desenha, desenha uma figura, faze um figurão! – Tinha-se a impressão de que ela, de
forma igualmente espirituosa, procurava afastá-lo.
– Não. Tu ainda não desenhaste. Deves desenhar também – disse Hans Castorp, sem
pronunciar as labiais. Ao mesmo tempo recuou um passo, como para fazê-la seguir.
– Eu? – perguntou ela novamente com uma surpresa que parecia referir-se antes a outra
coisa do que à sua proposta. Sorrindo, mas um tanto perturbada, permaneceu imóvel durante um
momento. Depois, porém, obedecendo ao magnetismo do recuo de Hans Castorp, deu alguns
passos em direção à mesa de ponche.
Verificou-se, entretanto, que o interesse pelo jogo decaíra nesse ínterim e estava nas
últimas. Havia ainda quem desenhasse, mas já não encontrava espectadores. Os cartões jaziam
cobertos de garatujas. Todos tinham manifestado a sua incapacidade. A mesa achava-se quase
deserta, tanto mais que uma contracorrente começava a agir. Os pensionistas acabavam de notar
a saída dos médicos, e de repente alguém sugeriu que se dançasse. Logo se puseram a tirar a mesa
do centro da sala. Vigias foram colocados nas portas da sala de correspondência e da saleta de
música, com a ordem de dar um sinal para interromper o baile, caso reaparecessem o “Velho”,
Krokowski ou a Superiora. Um rapaz eslavo atacou com fervor o teclado do pequeno piano de
nogueira. Os primeiros pares começaram a girar pelo interior de um círculo irregular, formado
por poltronas e cadeiras, nas quais estavam sentados os espectadores.
Hans Castorp fez um vago gesto de mão, como para dizer adeus à mesa que se afastava.
Apontou com o queixo para alguns assentos livres que descobrira na saleta, e para um cantinho
bem abrigado à direita do reposteiro. Não falou, talvez porque a música lhe parecesse muito
barulhenta. Colocou, para Mme. Chauchat, uma poltrona forrada de pelúcia, no lugar que antes
assinalara pantomimicamente. Para si mesmo apossou-se de uma cadeira de vime, de braços
redondos, e que gemeu e rangeu, quando nela se sentou. Inclinou-se para Mme. Chauchat,
apoiando os cotovelos nos braços da poltrona, com a lapiseira na mão e com os pés para trás,
embaixo da cadeira. Ela, por sua vez, afundou-se no estofamento coberto de pelúcia; seus joelhos
achavam-se muito levantados, mas, apesar disso, cruzou as pernas e balançou um dos pés, cujo
tornozelo, acima da margem do sapato de verniz preto, desenhava-se sob a seda igualmente preta
da meia. À sua frente estavam sentadas outras pessoas, que se levantavam para dançar e cediam o
lugar a outras, cansadas. Era um constante vaivém.
– Estás com um vestido novo – disse Hans Castorp, para ter o direito de olhá-la, e ouviu
como ela respondia:
– Novo? Então conheces o meu vestuário?
– Tenho ou não tenho razão?
– Tens, sim. Mandei fazê-lo aqui, recentemente, no Lukacek, na aldeia. Ele trabalha muito
para as senhoras daqui. O vestido te agrada?
– Muito – respondeu ele, envolvendo-a mais uma vez no seu olhar, antes de baixar os
olhos. – Queres dançar? – acrescentou.
– E tu, gostarias? – perguntou ela, sorrindo, com as sobrancelhas alçadas, ao que ele
replicou:
– Gostaria, sim, se tivesse vontade.
– És mais levadinho do que eu pensava – observou ela, e quando ele se riu
desdenhosamente, acrescentou: – Teu primo já se foi?
– Pois é, é meu primo – confirmou Hans Castorp sem necessidade. – Eu também notei
que ele não está mais aqui. Acho que já se recolheu.
– C’est un jeune homme très étroit, très honnête, très Allemand.
– Étroit? Honnête? – repetiu ele. – Entendo o francês muito melhor do que falo. Queres
então dizer que ele é um pedante. Achas que os alemães são pedantes, nous autres Allemands?
– Nous causons de votre cousin. Mas c'est vrai, vocês são um pouco bourgeois. Vous aimez l’ordre
mieux que la liberté, toute l’Europe le sait.
– Aimer... aimer... Qu’est-ce que c’est? Ça manque de définition, ce mot-là. Um ama, outro possui,
comme nous disons proverbialement – afirmou Hans Castorp e prosseguiu: – nos últimos tempos
meditei às vezes sobre a liberdade. Isto é: ouvi esta palavra com tanta frequência, que me fez
refletir. Je te le dirai en français o que pensei a respeito. Ce que toute l’Europe nomme la liberté est peut-être
une chose assez pêdante et assez bourgeoise en comparaison de notre besoin d'ordre – c'est ça!
– Tiens! C’est amusant. C’est ton cousin à qui tu penses en disant des choses étranges comme ça?
– Não, c'est vraiment une bonne âme, uma natureza singela, cujo espírito não corre nenhum
perigo, tu sais. Mais il n'est pas bourgeois, il est militaire.
– Não corre perigo? – repetiu ela com alguma dificuldade... – Tu veux dire: une nature tout à
fait ferme, sûre d'elle-même? Mais il est sérieusement malade, ton pauvre cousin.
– Quem te disse isso?
– Aqui a gente anda bem informada sobre os outros.
– O Dr. Behrens te disse isso?
– Peut-être en me faisant voir ses tableaux.
– C’est-à-dire: en faisant ton portrait!
– Pourquoi pas? Tu l’as trouvé réussi, mon portrait?
– Mais oui, extrêmement. Behrens a três exactement rendu ta peau, oh vraiment, très fidèlement.
J’aimerais beaucoup être portraitiste, moi aussi, pour avoir l’occasion d'étudier ta peau comme lui.
– Parlez allemand, s’il vous plaît!
– Oh, eu falo alemão também quando falo francês. C’est une sorte d’étude artistique et médicale – en un mot: il s’agit des lettres humaines, tu comprends. E então, não queres dançar?
– Não. Acho isso pueril. En cachette des médecins. Aussitôt que Behrens reviendra, tout le monde va
se précipiter sur les chaises. Ce sera fort ridicule.
– Tens tanto respeito a ele?
– A quem? – disse ela, pronunciando a interrogação com uma brevidade exótica.
– A Behrens.
– Mais va donc avec ton Behrens! Além disso falta espaço para dançar. Et puis sur le tapis...
Vamos ver como dançam os outros.
– Pois sim, vamos – concordou ele, e pôs-se a olhar, sentado junto dela, com o rosto
pálido; os olhos azuis que tinham a expressão pensativa do avô observaram os saracoteios dos
enfermos disfarçados, no salão e na biblioteca. A Irmã Muda saltitava com o Joãozinho Azul; a
Srª. Salomon, fantasiada de cavalheiro engalanado, de casaca e colete branco, com uma camisa
engomada de peito saliente, com um bigode pintado e com um monóculo, girava nos saltinhos
altos dos seus sapatos de verniz, que, inaturalmente, saíam por baixo das calças de homem; seu
par era o pierrô, cujos lábios luziam num vermelho de sangue no rosto caiado, e cujos olhos se
pareciam com os de um coelho albino. O grego de mantilha requebrava suas pernas harmoniosas,
revestidas de ceroulas violeta, em torno de Rasmussen, decotado e resplandecente de lantejoulas
escuras. O promotor público, no seu quimono, a Srª. Wurmbrand e o jovem Gänser dançavam
juntos, a três, mantendo-se abraçados, ao passo que a Stöhr bailava com a sua vassoura, que
apertava contra o coração, e cujas crinas acariciava como se fossem a cabeleira hirsuta de um
homem. – Vamos, sim – repetiu Hans Castorp mecanicamente. Falavam baixinho, no meio dos
sons do piano.
– Vamos sentar-nos aqui e olhar como num sonho. Para mim, isto é um sonho,
sabes? estarmos sentados assim – comme un rêve singulièrement profond, car il faut dormir très profondément
pour rêver comme cela... Je veux dire: c’est un rêve bien connu, rêvé de tout temps, long, éternel, oui, être assis près
de toi comme à présent, voilà l’éternité.
– Poète! – disse ela. – Bourgeois, humaniste et poète – voilà l’allemand au complet, comme il faut.
– Je crains que nous ne soyons pas du tout et nullement comme il faut – replicou ele. – Sous aucun
égard. Nous sommes peut-être des filhos enfermiços da vida, tout simplement.
– Joli mot. Dis-moi donc... Il n’aurait pas été fort difficile de rêver ce revê-là plus tôt. C’est un peu tard
que monsieur se résout à adresser la parole à son humble servante.
– Pourquoi des paroles? – disse ele. – Pourquoi parler? Parler, discourir, c’est une chose bien
républicaine, je le concède. Mais je doute que ce soit poétique au même degré. Un de nos pensionnaires, qui est un
peu devenu mon ami, Monsieur Settembrini...
– Il vient de te lancer quelques paroles.
– Eh bien, c’est un grand parleur, sans doute, il aime même beaucoup à réciter de beaux vers – mais est
ce un poète, cet homme-là?
– Je regrette sincèrement de n’avoir jamais eu le plaisir de faire la connaissance de ce chevalier.
– Je le crois bien.
– Ah! Tu le crois?
– Comment? C’était une phrase tout à fait indifférente, ce que j’ai dit là. Moi, tu le remarques bien, je ne
parle guère le français. Pourtant, avec toi je préfère cette langue à la mienne, car pour moi parler français c’est
parler sans parler, en quelque manière – sans responsabilitê, ou comme nous parlons en rêve. Tu comprends?
– A peu près.
– Ça suffit... Parler – continuou Hans Castorp – pauvre affaire! Dans l’éternité, on ne parle point.
Dans l’éternité, tu sais, on fait comme en dessinant un petit cochon: on penche la tête en arrière et on ferme les
yeux.
– Pas mal, ça! Tu es chez toi dans l’éternité, sans aucun doute, tu la connais à fond. Il faut avouer que tu
es un petit rêveur assez curieux.
– Et puis – disse Hans Castorp —, si je t’avais parlé plus tôt, il m’aurait fallu te dire “vous”!
– Eh bien, est-ce que tu as l’intention de me tutoyer pour toujours?
– Mais oui. Je t’ai tutoyé de tout temps et je te tutoierai éternellement.
– C’est un peu fort, par exemple. En tout cas, tu n'auras pas trop longtemps l’occasion de me dire “tu”.
Je vais partir.
continua pág 220...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Noite de Valburga (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
________________Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
[1] “Vale” é uma palavra latina que significa “adeus”. É usada no final de um texto quando o autor se despede dos leitores. O trocadilho aqui se refere à palavra “carnaval” (Karneval = carne + vale). (N. do E.)
[2] Cenas do Fausto de Goethe. As demais citações de Settembrini são extraídas da mesma obra, particularmente da seção intitulada “Noite de Valburga”. (N. do E.)
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