segunda-feira, 23 de junho de 2025

Massa e Poder - O Tesouro

Elias Canetti



O TESOURO


      Também o tesouro, como todos os montes, foi reunido. Contrariamente, porém, aos frutos e grãos, ele consiste de unidades que não se podem saborear e que são imperecíveis. Importante é o valor particular que tais unidades possuem, e somente a confiança na durabilidade desse valor é que incita as pessoas a juntar o tesouro. Trata-se de um monte que deve persistir e crescer sem ser perturbado. Se pertence a um poderoso, ele estimula outros poderosos ao roubo. O respeito que empresta a seu proprietário coloca-o em perigo. Muitas lutas e guerras tiveram já por origem um tesouro, e alguns homens teriam vivido mais tempo, possuíssem eles um tesouro menor. Assim é que o tesouro é forçosamente mantido em segredo. Sua singularidade consiste, portanto, na tensão entre o brilho que lhe cumpre irradiar e o segredo que o protege.
     Em sua forma mais palpável, a volúpia do número crescente desenvolveu-se a partir do tesouro. Todas as demais contagens visando resultados cada vez mais elevados — as do gado e de homens, por exemplo — não logram produzir tamanha concentração. A imagem do proprietário contando seu tesouro em segredo não se encontra menos profundamente inscrita no espírito humano do que a esperança de, subitamente, descobrir um tesouro — um tesouro tão bem escondido que não pertence mais a pessoa alguma, mas foi esquecido em seu esconderijo. Exércitos bem disciplinados foram já assolados e decompostos por essa súbita avidez por tesouros, e muitas vitórias foram por ela convertidas em seu oposto. A transformação de um exército, antes ainda de qualquer batalha, num amontoado de caçadores de tesouros é descrita por Plutarco em Vida de Pompeu.

Mal acabara ele de atracar com sua frota em Cartago, 7 mil homens das hostes inimigas passaram-se para o lado de Pompeu; ele próprio levara consigo para a África seis legiões inteiras. Um cômico incidente sucedeu-lhe ali. Alguns soldados encontraram casualmente um tesouro, obtendo assim uma considerável soma em dinheiro. 
Quando o fato tornou-se conhecido, ocorreu a todos os demais soldados que a região devia estar repleta de riquezas, as quais, em desventura, os cartagineses teriam outrora enterrado. Por muitos dias, então, Pompeu nada pôde fazer com seus soldados, ocupados exclusivamente com a caça de tesouros. Sorrindo, ele passeava entre seus homens, observando milhares deles a cavar e revirar a terra. Por m, cansaram-se todos da procura e disseram-lhe que os levasse para onde quisesse, pois já haviam sido suficientemente punidos por sua tolice.

     Paralelamente, porém, a esses montes, irresistíveis por seu ocultamento, há outros que são reunidos publicamente, qual uma espécie de tributo voluntário, na esperança de que, um dia, venham a caber a um único homem, ou a uns poucos. Pertencem a essa categoria todas as formas de loteria, tesouros que se formam rapidamente. Sabe se que, tão logo pronunciado o veredicto da sorte, eles serão entregues ao felizardo. Assim, quanto mais reduzido o número dos contemplados, tanto maior o tesouro, e tanto maior a atração que ele exerce.
     A cobiça que atrela os homens a tais oportunidades pressupõe uma confiança absoluta na unidade do tesouro. Da força dessa confiança é difícil fazer-se uma ideia exagerada. O homem se equipara a sua unidade monetária. Duvidar dessa unidade o ofende; abalá-la faz vacilar sua autoconfiança. Degradando-se essa unidade atinge-se o próprio homem, diminuindo-o. Quando a velocidade desse processo se intensifica, quando o que se tem é uma in ação, os homens desvalorizados juntam-se em formações que se há de equiparar inteiramente às das massas em fuga. Quanto mais as pessoas perdem, tanto mais unas elas se fazem em seu destino. O que para alguns privilegiados isolados, em condições de salvar alguma coisa para si próprios, apresenta o aspecto do pânico, torna-se fuga em massa para todos os demais, privados de seu dinheiro e, portanto, igualados. As consequências desse fenômeno, de importância histórica incomensurável em nosso século, serão tratadas num capítulo especial.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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