sexta-feira, 20 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Agora eu me encarregaria)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

      Agora eu me encarregaria de uma missão para provocar o rompimento entre Robert e sua amante, com tanta boa vontade como, poucas horas antes, para que ele partisse a fim de ir viver só com ela. No primeiro caso, Robert me julgaria um amigo traidor; no outro, sua família teria me considerado o seu mau gênio. No entanto, eu continuaria sendo o mesmo homem a algumas horas de distância.
     Voltamos para o salão. Não vendo retornar Saint-Loup, a Sra. de Villeparisis trocou com o Sr. de Norpois esse olhar dubitativo, trocista e sem muita piedade que se tem ao indicar uma esposa ciumenta em excesso ou uma mãe carinhosa demais (que dão aos outros o espetáculo da comédia) e que significa:

"Olha, deve ter havido tempestade."

     Robert foi à casa da amante levando-lhe o esplêndido colar que, segundo tinham combinado, não lhe deveria dar. Mas deu no mesmo, afinal, pois ela não o quis e, mesmo depois, ele não conseguiu fazer com que aceitasse. Alguns amigos de Robert pensavam que essas provas de desinteresse que ela dava seriam um cálculo para prendê-lo ainda mais. Entretanto, ela não ligava para o dinheiro, a não ser talvez para poder gastá-lo sem conta. Eu a vi fazer caridades insensatas, a torto e a direito, a pessoas que ela julgava pobres. "Nesse momento", diziam a Robert os seus amigos, para compensar, com suas palavras mal-intencionadas, uma ação desinteressada de Rachel, "nesse momento ela deve estar no passeio das Folies Bergere. Essa Rachel é um enigma, uma verdadeira esfinge." De resto, quantas mulheres interessadas, visto serem mantidas, não as vemos nós, por uma delicadeza que floresce em meio a essa existência, criar por si mesmas mil pequenos limites à generosidade dos amantes! 
     Robert ignorava quase todas as infidelidades da amante e fazia o espírito trabalhar sobre o que não passava de nadas insignificantes em face à verdadeira vida de Rachel, vida que só principiava todos os dias quando ele acabava de deixá-la. Ignorava quase todas essas infidelidades. Poderiam ter lhe contado tudo sem abalar sua confiança em Rachel; pois, devido a uma encantadora lei da natureza, que se manifesta no seio das mais complexas sociedades, é que se vive na perfeita ignorância daquilo que se ama. De um lado do espelho, o enamorado se diz: 

"É um anjo, jamais se dará a mim, não tenho mais que morrer, e no entanto ela me ama; ela me ama tanto que talvez... mas não, não seria possível!"

     E, na exaltação do seu desejo, na angústia da espera, quantas jóias não depõe aos pés dessa mulher, como não corre ele a pedir dinheiro emprestado a fim de lhe poupar preocupações! Entretanto, do outro lado da divisória através da qual essas conversas não passarão mais que as dos passeantes diante de um aquário, o público diz: 

"Não a conhece? Parabéns: ela roubou, arruinou não sei quantos homens, não há nada pior que essa mulher. É uma pura trapaceira. E espertalhona!"

     E talvez o público não esteja absolutamente enganado no que concerne a este último epíteto, pois mesmo o homem descrente, que não está verdadeiramente apaixonado por essa mulher e a quem ela apenas agrada, diz a seus amigos:

"Não, meu caro, não se trata absolutamente de uma cocote; não digo que não tenha tido dois ou três caprichos na vida, mas não é uma mulher que se paga, ou então seria cara demais. Com ela, é cinquenta mil francos ou nada."  

     Ora, Saint-Loup gastara cinquenta mil francos com ela, possuíra-a uma vez, mas Rachel, achando para isso, aliás, um cúmplice nele mesmo, na pessoa do seu amor-próprio, soube convencê-lo de que ele era daqueles que a tinham tido por nada. Assim é a sociedade, onde cada criatura é dupla, e onde o indivíduo mais transparente, o de pior fama, nunca será conhecido por um outro a não ser no fundo e sob a proteção de uma concha, de um suave casulo, de uma deliciosa curiosidade natural. Havia em Paris dois excelentes homens a quem Saint-Loup não mais cumprimentava e de quem nunca falava sem que a voz lhe tremesse, chamando-os de exploradores de mulheres: é que tinham sido arruinados por Rachel. 

- Só me arrependo de uma coisa - disse-me bem baixinho a Sra. de Marsantes. - É de lhe haver dito que não era gentil. Ele, esse filho adorável, único, como não existe outro igual, ter dito que não era gentil na única vez em que o vejo; preferiria ter recebido uma paulada, pois estou certa de que, seja qual for o seu prazer desta noite, ficará estragado para ele por causa dessa palavra injusta. Mas, senhor, não vou retê-lo mais, visto que está com pressa.  

     A Sra. de Marsantes se despediu com ansiedade. Tais sentimentos se referiam a Robert, ela era sincera. Porém deixou de sê-lo para tornar-se de novo uma grande dama: 

- Fiquei tão interessada, tão feliz, lisonjeada, em conversar um pouquinho com o senhor. Obrigada, obrigada!

     E, com ar humilde, lançava sobre mim olhares agradecidos, arrebatados, como se minha conversação fosse um dos maiores prazeres que tivesse conhecido na vida. Esses olhares encantadores combinavam muito bem com as flores negras do vestido branco de ramagens. Eram de uma grande dama que conhece o seu ofício. 

- Mas não estou com pressa, Senhora - respondi -; além disso, espero o Sr. de Charlus, com quem devo ir-me.

     A Sra. de Villeparisis ouviu estas últimas palavras. Pareceu contrariada com elas. Se não se tratava de uma coisa que não poderia interessar a um sentimento dessa natureza, ter-me-ia parecido que o que alarmava a Sra. de Villeparisis naquele momento era o pudor. Mas essa hipótese nem sequer ocorreu ao meu espírito. Sentia-me contente com a Sra. de Guermantes, com Saint-Loup, a Sra. de Marsantes, o Sr. de Charlus, a Sra. de Villeparisis; não refletia e falava alegremente, a torto e a direito. 

- Deve partir com meu sobrinho Palamede? - perguntou ela.

     Pensando que poderia produzir uma impressão bastante favorável sobre a Sra. de Villeparisis o fato de eu ser ligado a um sobrinho que ela prezava tanto, respondi com alegria: 

- Ele me pediu que saíssemos juntos. Estou encantado. Aliás, somos mais amigos do que a senhora imagina, e estou decidido a fazer tudo para que o sejamos ainda mais.

     De contrariada, a Sra. de Villeparisis passou a mostrar-se inquieta. 

- Não o espere - disse ela com ar de preocupação -; está conversando com o Sr. de Faffenheim. Já não pensa no que lhe disse. Olhe, parta logo, aproveite depressa agora que ele está de costas.

     Essa primeira emoção da Sra. de Villeparisis teria se assemelhado, não fossem as circunstâncias, ao pudor. Sua insistência e oposição poderiam parecer, se apenas consultássemos a sua fisionomia, ditadas pela virtude. De minha parte, não tinha pressa alguma em ir encontrar-me com Robert e sua amante. Mas a Sra. de Villeparisis parecia fazer tanta questão de que eu fosse embora que, pensando que talvez ela tivesse negócios importantes a tratar com o sobrinho, lhe fiz minhas despedidas.
     Ao lado dela, o Sr. de Guermantes, soberbo e olímpico, sentava-se pesadamente. Dir-se-ia que a noção, onipresente em todos os seus membros, de suas grandes riquezas lhe conferia uma densidade especialmente alta, como se tivessem sido fundidas no crisol em um só lingote humano, para produzir esse homem que valia tão caro. No momento em que dele me despedi, ergueu-se cortesmente do assento e senti a massa inerte de trinta milhões de francos que a velha educação francesa fazia mover, erguia e punha de pé à minha frente. Parecia-me ver aquela estátua de Júpiter Olímpico que Fídias, dizem, fundira integralmente em ouro. Tal era a força que a educação dos jesuítas exercia sobre o Sr. de Guermantes, sobre o corpo do Sr. de Guermantes ao menos, pois não reinava da mesma forma sobre o espírito do duque. O Sr. de Guermantes ria dos próprios ditos espirituosos, mas se mantinha impassível diante dos alheios. Na escada, ouvi atrás de mim uma voz que me interpelava:

- É assim que o senhor me espera!

     Era o Sr. de Charlus. 

- Importa-lhe andar comigo um pouco a pé? - perguntou-me secamente ao chegarmos ao pátio. - Vamos caminhar até que eu haja encontrado um fiacre que me convenha. 
- O senhor queria falar de alguma coisa? 
- Ah, sim, de fato, eu tinha certas coisas a lhe dizer, mas já não sei se as direi. Decerto julgo que poderiam ser, para o senhor, o ponto de partida de vantagens inestimáveis. Mas entrevejo também que trariam à minha existência, à minha idade, quando a gente começa a preferir a tranquilidade, muita perda de tempo, incômodos de todo tipo; ora, pergunto-me se o senhor valeria a pena que eu me desse a todo esse trabalho, e não tenho o prazer de conhecê-lo bastante para decidir-me. Também é possível que não se interesse muito pelo que poderia fazer pelo senhor, para que eu sofra tantos aborrecimentos, pois, senhor, repito com toda a franqueza que, para mim, não passa talvez de aborrecimento.

     Protestei que, nesse caso, não era preciso pensar nisso. Essa ruptura de negociações pareceu não lhe agradar. 

- Essa cortesia não significa nada - retrucou num tom duro. - Não há nada mais agradável do que aborrecer-se por uma pessoa que valha a pena. Para os melhores dentre nós, o estudo das artes, o gosto pelas antiguidades, as coleções, os jardins, não passam de ersatz, sucedâneos, álibis. No fundo do nosso tonel, como Diógenes, procuramos um homem. Cultivamos begônias, aparamos teixos como último recurso, porque os teixos e as begônias se deixam manusear. Porém preferiríamos empregar o nosso tempo com um arbusto humano, se estivermos certos de que ele vale a pena. Toda a questão está aí; o senhor deve se conhecer um pouco. Vale a pena ou não? 
- Não gostaria, senhor, por nada deste mundo, de ser motivo de suas preocupações disse-lhe -; mas, quanto ao meu prazer, creia que tudo o que vier de sua parte me dará grande alegria. Estou profundamente comovido de que tenha se interessado por mim, procurando me ser útil. 

     Para meu grande espanto, foi quase com efusão que ele me agradeceu estas palavras. Passando seu braço por baixo do meu com aquela familiaridade intermitente que já me assombrara em Balbec, e que contrastava com a dureza do acento, disse-me: 

- Com a desconsideração própria da sua idade, o senhor poderia às vezes ter palavras capazes de cavar um abismo intransponível entre nós. Ao contrário, essas que acaba de pronunciar pertencem ao gênero que é justamente capaz de me emocionar e fazer muito pelo senhor. 

     Enquanto caminhava de braço dado comigo e dizia estas palavras que, embora mescladas de desdém, eram tão afetuosas, o Sr. de Charlus ora fixava seus olhares em mim com aquela fixidez intensa, aquela dureza penetrante que me haviam impressionado na primeira manhã, em que o vira diante do cassino em Balbec, e até muitos anos antes, perto do espinheiro cor-de-rosa, ao lado da Sra. Swann, que então eu julgava sua amante, no parque de Tansonville, ora fazia-os errarem a seu redor, examinando os fiacres que passavam em grande quantidade àquela hora de repouso, com tamanha insistência que vários paravam, tendo o cocheiro imaginado que desejavam tomá-lo. Mas o Sr. de Charlus os despedia logo. 

- Nenhum me convém - disse ele -; é tudo uma questão de lanternas, do bairro a que regressam. Eu gostaria, senhor - continuou -, que não se equivocasse quanto ao caráter puramente desinteressado e caritativo da proposta que lhe vou fazer.  

     Impressionava-me o quanto a sua dicção se assemelhava à de Swann, ainda mais do que em Balbec.

- O senhor é bastante inteligente, suponho, para não acreditar que ela seja inspirada por "ausência de relações", pelo medo da solidão e do tédio. Não preciso lhe falar da minha família, pois acho que um rapaz de sua idade, pertencente à pequena burguesia - (acentuou esse termo com satisfação) deve conhecer a história da França. São as pessoas da minha sociedade que não leem nada e possuem uma ignorância de lacaio. Antigamente os camareiros do rei eram recrutados entre os grão-senhores; agora os grão-senhores não são mais que camareiros. Mas os jovens burgueses como o senhor leem; o senhor certamente conhece, a respeito dos meus, a bela página de Michelet: "Vejo-os bem grandes, esses poderosos Guermantes. E quem é, junto deles, o pobre reizinho da França, fechado em seu palácio de Paris?" Quanto ao que sou pessoalmente, senhor, é um assunto de que não me agrada muito falar. Mas enfim, talvez o senhor o saiba, pois um artigo retumbante do Times lhe faz alusão, que o imperador da Áustria, que sempre me honrou com a sua benevolência e tem a bondade de manter comigo relações de parentesco, declarou recentemente, numa conversa que se tornou pública, que, se o Sr. Conde de Chambord houvesse tido a seu lado um homem tão profundamente conhecedor, como eu, dos bastidores da política europeia, seria hoje rei da França. Muitas vezes pensei, senhor, que havia em mim, não devido a meus fracos dons, mas sim a circunstâncias que um dia talvez aprenderá, um tesouro de experiências, uma espécie de dossiê secreto e inestimável, que julguei não dever utilizar pessoalmente, mas que seria sem preço para um jovem a quem eu entregaria, em poucos meses, o que levei mais de trinta anos para adquirir e que talvez seja o único a possuir. Não falo do prazer intelectual que o senhor teria em aprender certos segredos que um Michelet dos nossos dias daria anos de sua vida para conhecer, e graças aos quais certos fatos ganhariam a seus olhos um aspecto inteiramente diverso. E não falo apenas dos fatos consumados, mas do encadeamento das circunstâncias - (era uma das expressões prediletas do Sr. de Charlus e, frequentemente, quando a pronunciava, juntava as mãos como quando a gente quer rezar, mas com os dedos rígidos, e como para fazer compreender, com esse complexo, tais circunstâncias, que não especificava, e o seu encadeamento.) - Eu lhe daria uma explicação inédita, não só do passado mas também do futuro. 

     O Sr. de Charlus se interrompeu para me fazer perguntas sobre Bloch, de quem haviam falado, sem que parecesse ouvir, na casa da Sra. de Villeparisis. E, com esse acento que ele sabia tão bem destacar daquilo que dizia, de modo a dar a impressão de que pensava em coisa diferente e de falar maquinalmente por simples polidez, perguntou se meu colega era jovem, bonito, etc. Bloch, se o ouvisse, teria ainda muito mais trabalho do que com o Sr. de Norpois, mas, devido a razões bem diversas, para saber se o Sr. de Charlus era a favor ou contra Dreyfus. 

- Não está errado, se quiser se instruir - disse o Sr. de Charlus após fazer essas perguntas acerca de Bloch -, em ter entre seus amigos alguns estrangeiros.

     Respondi que Bloch era francês. 

- Ah! - exclamou o Sr. de Charlus - pensei que fosse judeu.

     A declaração dessa incompatibilidade me fez acreditar que o Sr. de Charlus era mais antidreyfusista que qualquer das pessoas que eu conhecera. Ao contrário, ele protestou contra a acusação de traição levantada contra Dreyfus. Porém fê-lo sob esta forma: 

- Creio que os jornais dizem que Dreyfus cometeu um crime contra a sua pátria, creio que é isso, não presto muita atenção aos jornais; leio-os como lavo as mãos, sem achar que valha a pena me interessar. Em todo caso, o crime é inexistente, o compatriota do seu amigo teria cometido um crime contra a sua pátria se houvesse traído a Judéia, mas o que é que ele tem a ver com a França?

     Objetei que, se alguma vez houvesse uma guerra, os judeus seriam igualmente convocados como os demais.

- Talvez, e não é certo que não se trate de uma imprudência. Mas, se convocarem senegaleses e malgaxes, não creio que façam muito empenho em defender a França, o que é natural. O seu Dreyfus antes poderia ser condenado por infração às regras da hospitalidade. Mas deixemos isso. Talvez o senhor possa pedir a seu amigo que me consiga assistir a alguma bela festa no Templo, a uma circuncisão, aos cantos judeus. Talvez ele pudesse alugar uma sala e proporcionar-me algum espetáculo bíblico, assim como as meninas de Saint-Cyr representaram episódios tirados dos Salmos por Racine, para distração de Luís XIV. Talvez pudessem até me arrumar algumas cenas para fazer rir. Por exemplo, uma luta entre o seu amigo e o pai deste em que aquele o ferisse como Davi a Golias. Isso comporia uma farsa bem divertida. Ele poderia até, uma vez que principiou, dar boas pancadas na carcaça ou, como diria a minha velha criada, na rabugenta da mãe. Isto seria muito bem-feito e não nos desagradaria, não é, meu amiguinho, pois ambos apreciamos os espetáculos exóticos, e espancar essa criatura extra europeia seria dar um corretivo merecido a um velho camelo. 

     Dizendo essas horríveis palavras quase doidas, o Sr. de Charlus me apertava o braço a ponto de me fazer sentir mal. Lembrava-me da família do Sr. de Charlus citando tantos casos de bondade admiráveis do barão, para com essa velha criada cujo patoá molieresco acabava de evocar, e dizia comigo que seria interessante estabelecer as relações, ao que me parecia pouco estudadas até agora, entre a bondade e a malvadeza em um mesmo coração, por mais diversas que pudessem ser. Adverti-o de que, em todo caso, a Sra. Bloch já não existia e que, quanto ao Sr. Bloch, eu me perguntava até que ponto ele se entregaria a um jogo que poderia muito bem vazar-lhe os olhos. O Sr. de Charlus pareceu zangado. 

- Eis uma mulher que teve grande sorte em morrer -disse ele. - Quanto aos olhos vazados, justamente a sinagoga é cega, não enxerga as verdades do Evangelho. De qualquer forma, pense, neste momento, em todos esses desgraçados judeus que tremem diante da fúria estúpida dos cristãos, que honra seria para eles verem um homem como eu condescender em divertir-se com seus jogos!

     Naquele instante vi o Sr. Bloch pai que passava, sem dúvida indo adiante do filho. Ele não nos via, mas ofereci-me ao Sr. de Charlus para apresentá-lo. Tinha certeza da cólera que ia desencadear em meu companheiro: 

- Apresentá-lo a mim! Mas é preciso que o senhor não tenha muita noção dos valores! Não me conhece tão facilmente assim. No caso presente, a inconveniência seria dupla por causa da juventude do apresentador e da indignidade do apresentado. Quando muito, se um dia me derem o espetáculo asiático que eu esboçava, poderia dirigir a esse velhote horrível algumas palavras carregadas de bonomia. Mas com a condição de que se deixe surrar barbaramente pelo filho. Eu poderia chegar mesmo a exprimir a minha satisfação. -

     Aliás, o Sr. Bloch não prestava nenhuma atenção em nós. Estava ocupado em dirigir grandes cumprimentos à Sra. Sazerat, cumprimentos que ela acolhia muito bem. Aquilo me surpreendia, pois outrora, em Combray, ela ficara indignada pelo fato de meus pais terem recebido o jovem Bloch, de tanto que ela era antissemita.
     Mas o dreyfusismo, como uma corrente de ar, fizera voar o Sr. Bloch até ela alguns dias antes. O pai do meu amigo achara encantadora a Sra. Sazerat e estava particularmente envaidecido pelo antissemitismo dessa dama, julgando-o uma prova da sinceridade de sua fé e da verdade de suas opiniões dreyfusistas e que assim dava mais valor à visita que ela o autorizara a fazer. Nem sequer se ofendera que ela tivesse dito estouvadamente na sua presença: 

- O Sr. Drumont tem a pretensão de pôr os revisionistas no mesmo saco que os protestantes e os judeus. É deliciosa essa promiscuidade! 
- Bernard - dissera ele com orgulho, na volta, ao Sr. Nissim Bernard -, sabes, ela tem o preconceito! -

     Mas o Sr. Nissim Bernard nada respondera, erguendo aos céus um olhar angélico. Entristecendo-se com a desgraça dos judeus, lembrando-se dos amigos cristãos, tornando-se amaneirado e preciosista à medida que os anos passavam, por motivos que veremos mais tarde, dava ideia agora de uma larva pré-rafaelita onde os pelos fossem imundamente implantados, como cabelos afogados numa opala. 

- Todo esse Caso Dreyfus - continuou o barão, sempre segurando o meu braço - só tem um inconveniente: é que destrói a sociedade (não digo a boa sociedade, há muito que a sociedade não merece esse epíteto elogioso) pelo afluxo de senhores e senhoras do Camelo, da Camelaria, da Cameleira, enfim, pessoas desconhecidas que encontro até na casa de minhas primas, porque fazem parte da Liga da Pátria Francesa, antijudaica, não sei o quê, como se uma opinião política desse direito a uma qualificação social.

     Esta frivolidade do Sr. de Charlus o aproximava mais da duquesa de Guermantes. Apontei lhe a semelhança. Como parecesse crer que eu não a conhecia, lembrei-lhe a vesperal da ópera onde ele dera a impressão de querer se esconder de mim. Disse-me com tanto empenho que absolutamente não me vira que teria acabado por acreditar nele, se em breve um pequeno incidente não me levasse a pensar que o Sr. de Charlus, talvez excessivamente orgulhoso, não gostava de ser visto em minha companhia. 

- Voltemos ao senhor – disse - e aos meus projetos a seu respeito. Senhor, existe entre certos homens uma franco-maçonaria de que não posso lhe falar, mas que neste momento conta em suas fileiras quatro soberanos da Europa. Ora, os companheiros de um deles, que é o imperador da Alemanha, querem curá-lo de sua quimera. Isto é uma coisa muito grave e pode nos levar à guerra. Sim, senhor, perfeitamente. O senhor conhece a história daquele homem que julgava manter numa garrafa a princesa da China. Era uma loucura. Curaram-no. Mas, desde que deixou de ser louco, tornou-se imbecil. Há males cuja cura não se deve procurar porque eles nos protegem contra outros mais graves. Um de meus primos tinha uma doença do estômago, não podia digerir coisa alguma. Os mais sábios especialistas do estômago cuidaram dele sem resultado. Eu o levei a um certo médico (de passagem, uma criatura bastante curiosa e sobre a qual haveria muito a dizer). Este adivinhou logo que se tratava de uma doença nervosa, convenceu o enfermo, ordenou-lhe que comesse sem receio o que quisesse que seria sempre bem tolerado. Mas seu primo também sofria de nefrite. O que o estômago digere perfeitamente, o rim acaba por não poder eliminar, e meu primo, em lugar de viver até velho com uma doença imaginária do estômago que o forçava a seguir uma dieta, morreu aos quarenta anos, com o estômago curado, mas o rim perdido. Com um adiantamento formidável sobre sua própria vida, quem sabe se o senhor não será o que poderia ter sido um homem eminente do passado se um gênio benfazejo lhe houvesse revelado, em meio à humanidade que as ignorava, as leis do vapor e da eletricidade. Não seja bobo, não recuse por discrição. Compreenda que, se lhe presto um grande serviço, não imagino que seja menor o que há de me prestar. Há muito que as pessoas da sociedade cessaram de me interessar, só tenho uma paixão, buscar redimir as culpas da minha vida, fazendo com que tire proveito do que sei uma alma ainda virgem e capaz de ser inflamada pela virtude. Tive grandes desgostos, senhor, de que lhe falarei talvez um dia; perdi minha mulher, que era a criatura mais nobre, mais bela, a mais perfeita que se possa imaginar. Tenho parentes jovens que são, não direi indignos, mas incapazes de receber a herança moral de que lhe falo. Quem sabe se o senhor não é aquele em cujas mãos pode ficar essa herança, aquele que eu poderei orientar e erguer tão alto na vida? A minha ganharia por acréscimo. Quem sabe se, ao lhe revelar as grandes questões diplomáticas, voltaria eu mesmo a lhes sentir o gosto e por fim me pusesse a fazer coisas interessantes em que o senhor seria o parceiro. Porém, antes de sabê-lo, seria necessário que o visse várias vezes, com muita frequência, todos os dias.

continua na página 130...
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